Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. Filosofia para a América Latina? In: Humanidades. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1988, n.16. p.129. [Resenha crítica do livro: ZIMMERMANN, Roque. América Latina o não ser - uma abordagem filosófica a partir de Henrique Dussel (1962-1967). Petrópolis, Editora Vozes, 1987, 264 pp.] [Ref.: T207]
Filosofia para a
América Latina?

         Será que Hegel foi apenas um filisteu alemão? Ou quem sabe um europeu a serviço do hegemonismo ocidental? Do ponto de vista teórico, essa é a questão de fundo sugerida pelo livro de Roque Zimmermann - América Latina o Não-Ser - sobre o pensamento de Henrique Dussel. O stalinismo já tentou reduzir Hegel a um simples representante filosófico do Estado prussiano. Mas essa empresa, diga-se de passagem, não foi bem-sucedida. A filosofia hegeliana continua a inspirar novas reflexões, a lançar desafios à inteligência, a justificar o conservadorismo de alguns e a práxis revolucionária de outros. Numa palavra, continua sendo um pensamento filosófico cuja universalidade ainda frutifica.

         Hegel, aqui, é somente um exemplo e um símbolo, pois é através dele - segundo o próprio Dussel -que se realiza a plenitude da totalização moderna, totalização totalitária e opressiva que deve ser dissolvida pela crítica no plano filosófico e destruída na prática pela ação política. É partindo dessa premissa que Dussel propõe a tarefa de construir uma filosofia especificamente latinoamericana ou terceiro-mundista. Seria necessária, então, a ruptura com toda a filosofia anterior que, desvendada e aniquilada pela crítica, ficaria reduzida a sua insignificância histórica frente aos desafios da atualidade. O conjunto da filosofia ocidental é denunciado como instrumento secular de domínio sobre os povos periféricos e oprimidos. Assim, os posicionamentos anteriores em filosofia não são negados ou invalidados, adverte Zimmermann interpretando o pensamento de Dussel, mas "relegados como inoportunos para este preciso tempo e espaço latino-americano" (p. 18).

         O livro de Roque Zimmermann é um ingênuo e entusiasmado comentário em torno do pensamento de Henrique Dussel, professor argentino considerado principal inspirador da chamada "filosofia da libertação". Trata-se de um movimento intelectual nascido no final da década de 60, como um dos desdobramentos teóricos do engajamento revolucionário dos católicos de esquerda da América Latina.

         Dussel evoluiu de uma postura francamente antimarxista, passando por uma fase em que foi fortemente influenciado por Husserl e Heidegger, para um diálogo com o marxismo, no qual "começa a ter cada vez mais importância a análise crítica de Marx" - diz Zimmermann. (p.32). Os livros e artigos de Dussel já somam milhares e milhares de páginas publicadas em diversos países, embora nem sempre bem articuladas e coerentes, admite seu intérprete. "Nele se encontra- proclama Zimmermann - muito mais do que o raciocínio perfeito, o calor de uma luta, o ardor de um militante (o verdadeiro intelectual orgânico) do qual carece a América Latina." (p. 36)

         A crítica fundamental feita por Dussel ao pensamento ocidental recai sobre a categoria da totalidade, que funcionaria como pressuposto teórico e justificativa ideológica da opressão. "Totalidade, como âmbito fechado, ontológico, eterna repetição do mesmo, princípio originante e justificador da dominação, da conquista, da afirmação do ser como absoluto e, conseqüentemente, como princípio da negação da alteridade." (p. 61) Da crítica à totalidade, ele passa à crítica da ontologia que "quando é levada a 'ontologização', isto é, à ideologia legitimadora do status quo, é promotora da morte e do caos, porque é fechamento do ser e impedimento de um verdadeiro pensar, pensar sobre e a partir de uma realidade". (p. 147) Mas o pensamento de Dussel precisa encontrar uma categoria capaz de indicar a transcendência do ser e a negação da totalidade. Com tal propósito é que surge a noção de exterioridade, "como abertura possível ao outro, não absolutização do ser, princípio metafísico da alteridade". (p. 61) A exterioridade definida como negação abstrata da totalidade - e não como movimento da própria totalidade para o exterior de si mesma, para a alteridade situada como campo das potências e possibilidades concretas - exige o socorro da fé. Através da fé, interpreta Zimmermann, pode-se chegar ao "totalmente outro". Realiza-se, desse modo, a absolutização da transcendência ao invés da absolutização do ser. O pensamento de Dussel permanece no terreno do absoluto, envolvido nos véus do misticismo, mesmo evitando os caminhos da escatologia.

         A "Teologia da Libertação" procura oferecer uma nova interpretação dos dogmas cristãos e, nessa medida, propor uma nova relação dos católicos com a história e a política, cujo eixo central é o compromisso com os explorados e oprimidos. A "Filosofia da Libertação" pretende situar-se num patamar mais elevado do ponto de vista teórico e racional. " Não há, então, em minhas obras, - afirma o próprio Dussel - confusão entre filosofia e teologia." (p. 14)

         No percurso radical da razão a filosofia é o último reduto, embora possa haver filosofias cuja missão é dissolver as raízes históricas da realidade. Não obstante, mesmo nesse caso, trata-se de uma tarefa que, conscientemente ou não, envolve um movimento regressivo de destruição dos fundamentos, ou seja, que deve ir até as raízes últimas para tentar suprimi-las. E depois declara, envergonhada do percurso feito na obscuridade, que nada existe além da superfície do mundo e que é inútil procurar. O itinerário do positivismo de Comte - profeta do capitalismo monopolista - e dos seus herdeiros neopositivistas é precisamente esse. Portanto, a moderna filosofia burguesa propõe a destruição da idéia de totalidade ao invés de preservá-la.

         O misticismo presente na teorização de Dussel e a sua proposta de uma filosofia latino-americana ou terceiro-mundista parecem constituir as debilidades mais flagrantes dessa reflexão ainda em curso. Sob o aspecto político, sua abordagem privilegia a luta anticolonial ou nacional, colocando a luta de classes em segundo plano e, por isso, oferecendo larga margem ao populismo.

         A idéia de que existem certos espaços historicamente favoráveis para que se possa formular uma filosofia avançada ou revolucionária não é nova. Mas disso não se deduz que se deve valorizar ou definir uma filosofia pelo "lugar" que ela pretende representar.

         A interrogação colocada por Zimmermann no final serve como patética indicação dos equívocos de uma filosofia que julga poder aquilatar seu valor e sua missão pelos estreitos critérios do "nacional" e do "popular", ou seja, critérios deduzidos diretamente da luta política. "O povo (povo simples, povo pobre, analfabeto, o sujeito desta filosofia)- indaga Zimmermann, numa tímida investida crítica frente ao volume da obra do próprio Dussel - como fica diante de uma avalanche tão grande de escritos e publicações?" (p. 211)

         Ora, o povo simples, pobre e analfabeto necessita lutar por sua redenção e participar ativamente na redefinição global dos rumos da Humanidade. Entretanto, isso jamais poderá ser levado a bom termo através de uma filosofia que lhe seja imediatamente acessível, pois ela teria de ser também simples e pobre, o que dimensiona pelo avesso a grandeza da tarefa.

         Adelmo Genro Filho

         Ensaísta, professor