Referência:
FORNAZIERI, Aldo. Nota sobre Adelmo Genro Filho. In:GENRO FILHO, Adelmo. Filosofia e práxis revolucionária - Karl Marx, Friedrich Engel, Ernest Bloch e Karl Korsch. São Paulo, Brasil Debates, 1988. 106 pp. [Ref.: T197]
 

         Nota sobre Adelmo Genro Filho

         Quando adotavamos as medidas finais para entregar os materiais de impressão deste livro na gráfica, chegou-nos a notícia da morte de Adelmo.

         "A morte, diz Hegel, se assim quisermos chamar a essa irrealidade, é a coisa mais espantosa, e guardar o que está morto é o que exige uma maior firmeza". Se por um lado, a morte é o resultado final do processo de um indivíduo singular, que vive e age numa sociedade universal, ela é também, a negatividade natural do indivíduo que ocorre no tempo, mas que cancela o tempo absoluto do indivíduo que morre. A morte cancela a existência consciente dos indivíduos, os quais só podem existir no espaço e no tempo. Morrer significa sair da universalidade inquieta da vida consciente e ativa para passar à universalidade quieta, da negatividade abstrata. A esta universalidade quieta, o morto é remetido como originalidade natural, como ente natural que, como tal, deixa de ser uma diferença, deixa de ser uma alteridade e um outro. Volta ao Mesmo, ao Nada. Por isso, na morte natural, que é cancelamento da alteridade existente, não se pode encontrar nenhum consolo e nem reconciliação.

         A morte é como que uma "vingança" da natureza contra os indivíduos, que nascidos dela originariamente, tornaram-se outros do que ela é e superiores a ela. Ao morrer, a dimensão natural do indivíduo retoma à indiferencialidade da natureza. Ao morrer cancela-se também a extensividade ativa e consciente do indivíduo. Na medida em que, no morto, cinde-se o ser individual do agir, ele torna-se uma singularidade vazia e passiva, torna-se a lembrança de um nome carente de realidade. Este nome é somente nome para os outros que o lembram, deixou de ser nome para si mesmo, deixou de ser autoreferência. A grande maioria dos mortos permanecem como uma lembrança quieta na sombra das famílias. Pode-se dizer que esta visão sobre a morte constitui o lado morto do morto ou a morte do indivíduo propriamente natural.

         Se pensarmos o indivíduo somente como indivíduo até o fim - e por um momento é necessário que o pensemos assim - terminaremos por pensá-lo como indivíduo natural. Então o fim é trágico. Não há nenhuma escapatória. Aqui, à pergunta universal que todos nos fazemos "para onde vamos"? Só há uma resposta: "para nenhuma parte".

         Mas em relação à morte de um ente querido nosso, penso que é possível experimentarmos pensamentos e sentimentos, em certa medida, análogos aos que Hegel expressou em relação à contemplação das ruínas históricas. Tanto a morte, como as ruínas históricas, evocam necessariamente uma reflexão sobre a degradação temporal, sobre o irrecorrível desaparecimento dos indivíduos e das coisas. Os sentimentos que experimentamos ante este tribunal do tempo nos provocam uma deprimente tristeza. Constatamos que uma vitalidade consciente, um indivíduo estimado e querido, teve de morrer e nos atormentamos no desconsolo das lembranças. A morte nos proporciona uma pergunta sem resposta: "por que?". A ausência de resposta faz nascer uma dor profunda e diante desta instância incontornável, a melancolia que se apodera de nós, ora nos oprime na sensação vazia do desaparecimento total e ora nos indaga sobre o significado e validade das vidas individuais. Se a sensação vazia do desaparecimento que sentimos, diante do túmulo nos provoca o luto e nos aprisiona à passividade, é na indagação sobre o significado e validade das vidas individuais onde podemos encontrar o caminho que nos conduz a superar as reflexões sentimentais, para devolvermo-nos, a nós mesmos, ao mundo ativo da história. Diante do morto não há consolo. Ele pertence ao domínio do desaparecimento e da finitude. Somente com o nosso retomo ao mundo ativo da história dos homens vivos poderemos reconciliar-nos com a universalidade da vida. Presença e infinitude só existem para a vida consciente. É somente nesta reconciliação com a vida, que nos nega qualquer consolo, o lugar onde poderemos encontrar a valorização do desaparecido; não como desaparecido, mas na expressão de sua universalidade vivida, no produto de sua atividade, que se apresenta como legado e na significação exemplificativa de sua vida.

         Na verdade, o que sobrevive é a produção consciente e socialmente significativa dos indivíduos. Quanto mais universal esta produção for, mais sobrevive, porque foi mais consciente e será mais significativa. Somente os seres individuais conscientes podem ter uma história singular socialmente significativa. Somente os seres humanos podem ter uma biografia. Quanto mais significativa e universal for a vida de um indivíduo, mais significativas e universais serão sua história singular e sua biografia. Uma das lições que a experiência negativa da morte nos ensina, é que somente o espírito, a consciência, é imortal. Aqui podemos escrever outra frase de Hegel: "A vida do espírito não é a vida que se ausenta ante a morte e se mantém pura da desolação, mas é a vida que sabe afrontar a morte e manter-se vida".

         Dito isto, creio que se adotarmos uma concepção hegeliana de indivíduo, na qual o indivíduo torna-se indivíduo pelo seu agir, pela sua atividade, na qual o indivíduo não é indivíduo simplesmente porque é um ser humano existente, mas sim pela dignificação e atividade universais em que traduz a sua vida, então, mesmo que a morte natural cancele a extensividade consciente e ativa dos indivíduos, pode-se falar de um lado vivo de determinados indivíduos mortos. Este lado vivo é aquele que precisamente Hegel se referiu: a produção socialmente significativa ou espiritual dos indivíduos. Isto significa pensar os indivíduos (no caso os desaparecidos) como seres que viveram em um determinado tempo e espaço, que integraram uma sociedade, que agiram e buscaram afirmar e desenvolver a sua individualidade como exemplos significativos para os outros, como uma lição de vida e de existência para os outros. Tais indivíduos, deram-se a si mesmos uma perspectiva universal, da qual eles são a sua realidade. Este fio condutor nos permite pensar a historicidade dos indivíduos e a historicidade humana. A história é o único terreno no qual pode haver reconciliação com o passado, porque nela, dialogamos com os nossos antepassados como seres iguais a nós, pois dialogamos na dimensão espiritual e consciente, falamos de consciência histórica. A nossa historicidade nos permite contar histórias (ou escrevê-las), nos permite falar do passado, trazer para o "aqui" e "agora" o que foi. É trazer para uma realidade presente e viva, uma realidade passada e morta. Somente a historicidade dos seres humanos nos permite que hoje falemos de Adelmo.

         Penso que falar de Adelmo exige assumir a noção de indivíduo acima, exposta com radicalidade. Ele buscou ser sempre aquilo que ainda não era. Não no sentido de ser igual a um outro, mas no sentido de ser original, específico, um outro ainda nunca existido. Esta permanente busca de ser aquilo que ainda não se é, na verdade, constitui o ato de tornar-se si mesmo para si e para os outros. É o movimento de tornar-se um indivíduo. Talvez por isso, Adelmo tornou-se um daqueles homens que não pode ser escondido no anonimato da soma abstrata de todos os outros homens. E tornou-se também um indivíduo que, em grande parte, pode ser compreendido e conhecido.

         Se é verdade que um indivíduo só pode existir e tornar-se indivíduo numa sociedade e em relação à universalidade, o ponto de abrangência da universalidade na vida de Adelmo foi a sua produção teórica e a sua militância política. Marxista desde muito jovem. ele foi compreendendo no decorrer do tempo, que o próprio marxismo vive um impasse teórico, e que deste impasse, deriva um impasse político, com largas repercussões na práxis. Estes impasses não são alheios à vida humana, à sociedade e ao Estado. Os impasses teórico-políticos, embora específicos, correspondem, em grande medida, aos impasses das próprias estruturas da vida social. A originalidade do indivíduo Adelmo, no seu tempo e na sua sociedade, consiste em ter sido um dos poucos marxistas brasileiros a ter compreendido e agido sobre esta realidade. Sem abandonar os pressupostos do marxismo, compreendeu que é necessário questioná-los a partir de uma perspectiva teórica mais abrangente e do ponto de vista de uma práxis revolucionária, fundada na ética. Aliás, a ética, tanto na política, como nas relações entre os indivíduos, foi uma de suas preocupações teóricas mais acesas nos últimos tempos.

         Adelmo não via saídas para o marxismo fora de uma reformulação teórica global e sem uma nova elaboração, que desse conta dos novos problemas humanos e atuais postos pela modernidade. Ele assumiu com tal radicalidade este ponto de vista, que o levou a pedir licença da função de professor da Universidade Federal de Santa Catarina, para dedicar-se inteiramente ao estudo e à elaboração teórica. A compreensão da importância da teoria, levou-o também a compreender a importância de formar uma nova geração de quadros teóricos e intelectuais marxistas. Por isso, além do estudo e da elaboração, elegeu como atividade correlata, o trabalho junto ao Centro de Estudos Políticos e Filosóficos, com sede em Porto Alegre, onde organizou e proferiu cursos e palestras, visando preparar teoricamente novos militantes e novos intelectuais.

         O campo de preocupações teóricas de Adelmo era muito vasto, como convém a todo intelectual marxista sério e capacitado. As suas preocupações abrangiam praticamente todo o leque das denominadas "ciências sociais", além de refletir filosoficamente sobre questões postas pelas "ciências da natureza" e pela tecnologia. Adelmo foi polêmico em seus pontos de vista teóricos. No interior do debate marxista, os alvos principais de suas críticas foram as concepções naturalistas e o dogmatismo. E na política, não por acaso, criticou com veemência o stalinismo. Na política, Adelmo foi um radical, às vezes chegava a ser mordaz, porém nunca desleal. De personalidade forte, era, contudo, gentil, extremamente humano e delicado nas relações com as pessoas. Definia-se como um revolucionário e comunista e sem assumir qualquer postura dogmática ou acrítica, defendia os princípios leninistas sobre as concepções organizativas do Partido Político. Os temas específicos aos quais se dedicava nos últimos tempos, eram justamente, a teoria do Estado e a teoria do Partido, sobre os quais deixou muitas anotações.

         Esta breve nota não pretende ser um inventário de seu pensamento teórico e nem mesmo uma biografia. De qualquer forma, creio que é possível indicar como textos representativos de suas preocupações teóricas e políticas dos últimos tempos, a introdução do presente livro e o texto publicado na Revista Teoria e Política nº 8, com o título "Teoria e Revolução". A introdução ao presente livro, provavelmente foi seu último texto sistemático produzido para publicação, já que foi concluído no início de janeiro deste ano.

         Penso também que é possível estabelecer que somente agora Adelmo tinha acabado de passar por uma fase de amadurecimento teórico e intelectual, a partir da qual poderia desenvolver uma intensa e significativa produção e elaboração. Com isto, pode-se dizer que Adelmo morreu quando sua vida intelectual mais promissora recém começava. Quem conhecia e dialogava intelectualmente com Adelmo, sabe que a morte ceifou uma grande esperança intelectual. Esperança concreta, pois Adelmo havia se preparado de uma forma muito sólida e estava determinado, de uma forma absoluta, a dedicar-se à produção teórica. Cabe acrescentar, que nos últimos tempos, ele estava vivamente interessado em conhecer com profundidade o pensamento de Hegel.

         A militância política de Adelmo se iniciou em Santa Maria (RS), no movimento estudantil. Nesta mesma cidade, formou-se em Jornalismo, na Universidade Federal (UFSM), em 1975. Mas pode-se dizer que sua preocupação com a política teve origens familiares: seu pai, também chamado Adelmo, foi vice-prefeito de Santa Maria pelo antigo PTB e cassado pelo golpe militar de 64; sua mãe, Dona Elly, sempre foi possuidora de um pensamento social progressista e de esquerda; e seu irmão, Tarso Genro, é militante desde muito jovem. Foi perseguido pelo regime de 64 e exilou-se no Uruguai na década de 70.

         Em Santa Maria, Adelmo organizou um círculo informal de marxistas, praticamente, todos estudantes da Universidade Federal, cujo principal objetivo, era intervir no movimento estudantil. Este grupo, além de fazer forte oposição ao governo federal e à reitoria, conseguiu desalojar um dos últimos feudos da direita no movimento estudantil em 1979. Além da militância, uma das características importantes deste círculo foi o estudo teórico do marxismo. Este círculo, mais tarde deu origem a uma consistente corrente marxista que atua no PT e em outros movimentos sociais.

         Adelmo elegeu-se vereador em Santa Maria em 1976, pelo MDB, do qual foi um destacado dirigente do seu setor jovem no estado. Em 1981 quando afirmou que o general Figueiredo não tinha condições de governar o país, após este ter feito gestos obcenos aos estudantes de Florianópolis que o vaiavam, Adelmo foi processado e condenado pela Lei de Segurança Nacional. Em 1982 concorreu a uma cadeira à deputado estadual pelo PMDB, não conseguindo se eleger. Paulatinamente, Adelmo foi se afastando deste partido ao perceber que a trajetória de conciliação conservadora do PMDB, percorria um caminho sem retorno. Aproximou-se do PT, partido ao qual veio a se integrar a partir de 1984. No entanto, nos debates públicos em que participou, Adelmo sempre defendeu a necessidade de organizar um partido revolucionário. Isto é, um partido ideologicamente definido como marxista e comunista, organizado de acordo com os princípios gerais do leninismo. Na concepção de Adelmo, este partido nada tem a ver com os atuais partidos comunistas legalizados, os quais foram merecedores de suas críticas, pelas suas trajetórias conciliadoras com a burguesia.

         No início de 1983 Adelmo transferiu-se para Florianópolis (SC), onde tornou-se professor no curso de Jornalismo da Universidade Federal. Nesta mesma Universidade, pós-gràduou-se a nível de mestrado em Ciências Sociais. A sua tese de mestrado foi publicada pela editora Tchê! com o título "O segredo da pirâmide, para uma teoria marxista do jornalismo". Este livro, provavelmente, se constitui o seu mais importante trabalho teórico. No Brasil, não há outro trabalho similar a este e talvez no mundo todo, se constitua uma das poucas abordagens marxistas do Jornalismo. Em 1987 Adelmo transferiu-se para Porto Alegre, procurando dedicar-se integralmente ao estudo e elaboração teórica. Ajudou a fundar e desenvolveu uma intensa atividade junto ao Centro de Estudos Políticos e Filosóficos. Adelmo publicou ainda: "Hora do Povo: uma vertente para o fascismo", com Sérgio Weigert e Marcos Rolim (São Paulo, Brasil Debates, 1981); "Lênin: coração e mente", com Tarso Fernando Genro (Porto Alegre, Tchê!, 1985); "Marxismo, filosofia profana" (Porto Alegre, Tchê!, 1986); e "Contra o socialismo legalista (Porto Alegre, Tchê!, 1987). Foi um dos fundadores do "Jornal Informação" de Porto Alegre, foi um dos fundadores e pertenceu ao conselho editorial do jornal "Fazendo o Amanhã" de São Paulo, publicou artigos em diversos jornais e ensaios nas revistas "Civilização Brasileira", "Práxis" e "Teoria e Política", da qual foi membro do Conselho Editorial. Adelmo foi casado com Leticia Pasquallini com a qual teve duas filhas, Julia e Bruna. Atualmente vivia com a sua companheira Márcia Ustra Soares. Deixou seus pais, Adelmo e Dona Elly, e seus irmãos Carlos Horácio, Tarso, Julia, Suzana e Maria Elly. Adelmo nasceu no dia 25 de dezembro de 1951 em São Borja (RS) e morreu no dia 11 de fevereiro de 1988 em Florianópolis.

         Aldo Fornazieri