Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987. pp. 1-28. [Ref.: T196]

O SEGREDO DA PIRÂMIDE

Para uma teoria marxista do jornalismo

Adelmo Genro Filho


Edição Original:

Edição: Tau Golin
Edição de texto: Cássia Corintha Pinto
Capa: Cristina Pozzobon
Montagem: Luciane Nunes
Fotolito: Vilnei Machado
Editora: tchê! Editora Ltda.
Porto Alegre - RS - Brasil
Editor: Airton Ortiz
Impresso em junho de 1987
© Adelmo Genro Filho

(Texto das orelhas do livro)

         O jornalista Adelmo Genro Filho faz nesta obra uma ampla revisão das abordagens teóricas e práticas do jornalismo, desvendando as limitações dessa atividade tal como foi pensada até agora.

         Adelmo mostra que, até hoje, a prática do jornalismo, embora insinue potencialidades e alternativas, baseia-se num conjunto de impressões empíricas. Os profissionais, de um modo geral, não aprofundam uma reflexão sobre a prática jornalística: "eles colocam seu talento, honestidade e ingenuidade a serviço do capital, com a mesma naturalidade com que compram cigarros no bar da esquina.

         Mostra também que a teoria produzida sobre o tema, em certos enfoques, não vai muito além do simples reconhecimento do valor operativo das técnicas. Em outros, limita-se à crítica ideológica do jornalismo como instrumento de dominação. Na opinião do autor, tais abordagens não revelam, de forma consistente, a natureza do jornalismo.

         Além disso, segundo Adelmo, a impotência teórica não é exclusividade do jornalismo burguês, tal como se pratica nos países capitalistas. Também nos países do "socialismo real" a essência humanizadora do jornalismo não é compreendida, o que explica a manipulação e a pobreza do jornalismo praticado nesses países.

         Porém ao disparar suas críticas tanto ao jornalismo burguês como ao jornalismo do "socialismo real", o autor não está propondo uma "terceira via" no campo ideológico. Amparando-se numa sólida formação marxista e assumindo uma postura antidogmática e criativa, Adelmo atribui ao jornalismo um papel revolucionário: o de ser uma forma de conhecimento que, embora historicamente condicionada pelo capitalismo, apresenta potencialidades que ultrapassam esse modo de produção. Para o autor, o jornalismo deve ser encarado como uma nova "forma de conhecimento" que se distingue e complementa as mediações que a ciência e a arte proporcionam para a compreensão do mundo humano: "A consumação da liberdade humana exige, em especial, o desenvolvimento do jornalismo".

         "O Segredo da Pirâmide" culmina com a revelação de importantes conclusões que a própria prática do jornalismo está exigindo - em relação ao uso do lead e da "pirâmide invertida" - e que a teoria, até o momento, não explicava adequadamente. Adelmo Genro Filho propõe essas explicações e, nesta ousada obra, expõe concepções inovadoras sobre a natureza do fenômeno jornalístico.


         Este trabalho foi apresentado, inicialmente, como dissertaçâo de conclusão do Mestrado em Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Catarina. Nessa ocasião, foram orientadora e c-oorientadora as professoras Ilse Scherer-Warren e Maria José Reis, às quais manifesto meu agradecimento pela sua permanente disposição em colaborar. Cabe-me, no entanto, inteira responsabilidade pelo conteúdo destas reflexões, bem como pelas premissas filosóficas e políticas que nortearam este trabalho.

         Em especial, agradeço aos jornalistas Daniel Herz, Luiz AIberto Scotto, Pedro S. Osório e Airton Kanitz, com os quais debati várias idéias aqui desenvolvidas. Ao Chefe do Departamento de Comunicação da UFSC, Prof. Francisco Castilhos Karam, e ao Coordenador do Curso de Jornalismo, Prof. Hélio Ademar Schuch, meu reconhecimento pelo apoio recebido durante a elaboração deste trabalho. Agradeço também à Profª. Cássia Corintha Pinto, que corrigiu os originais, e a Albertina Buss, que realizou a tarefa de datilografia. Para a presente publicação foram feitas pequenas modificações no texto final da tese.


Prefácio

         Existe uma grande defasagem entre a atividade jornalística e as teorizações que se fazem em torno dela. Esse distanciamento se dá em tal grau que, inclusive, tem gerado falsas e absurdas polêmicas opondo "teóricos" e "práticos". Recentemente, uma campanha movida no Brasil contra a obrigatoriedade do diploma acadêmico para o exercício do jornalismo indicou até que ponto os pragmáticos chegam em seu desprezo pela teoria. Eles consideram que a simplicidade das técnicas jornalísticas dispensa uma abordagem teórica específica e uma formação especializada.

         Por outro lado, é bem verdade que os "teóricos" não têm feito muito no sentido de lançar uma ponte com mão dupla entre a teoria e a prática. Em geral, as teorizações acadêmicas oscilam entre a obviedade dos manuais, que tratam apenas operativamente das técnicas, e as críticas puramente ideológicas do jornalismo como instrumento de dominação.

         Assim, o profissional que procura, realmente, refletir sobre o significado político e social de sua atividade - cujas ambigüidades e contradições ele percebe em seu dia-a-dia -, coloca-se num impasse. Ou ele vai tomar conhecimento das variações em torno de um tema que já domina, ou buscar contato com enfoques teóricos que desprezam as contradições e potencialidades críticas do jornalismo, com as quais ele se depara na prática.

         Por isso, a indevida polarização entre "teóricos" e "práticos" corresponde, no fundo, a uma incomunicabilidade real entre as teorizações existentes e a riqueza da prática. Essa polarização torna-se a expressão de um diálogo, não de surdos, mas de mudos: um não consegue falar ao outro. A prática, por sua limitação natural, jamais soluciona a teoria. Ela apenas insiste, através de suas evidências e contradições, que deve ser ouvida. Mas só pode se expressar racionalmente através da teoria.

         Responsabilidade maior, portanto, cabe à própria teoria que está muda em relação às evidências e contradições da prática, quando deveria transformá-las numa linguagem racional. Isto é, elucidar e direcionar a prática num sentido crítico e revolucionário.

         O objetivo maior do presente trabalho é propor, certamente com limitações, um enfoque teórico capaz de apreender racionalmente tanto as misérias quanto a grandeza da prática que é seu objeto e critério. É a tentativa de iniciar um diálogo, tendo presente que a responsabilidade integral pela iniciativa e pela fecundidade ou não dos conceitos cabe à teoria.

         Trata-se, a rigor, de um ensaio que pretende fornecer elementos para uma teoria do jornalismo, entendido este como uma forma social de conhecimento, historicamente condicionada pelo desenvolvimento do capitalismo, mas dotada de potencialidades que ultrapassam a mera funcionalidade a esse modo de produção. O jornalismo que tratamos aqui, portanto, não é uma atividade ligada exclusivamente ao jornal, embora tenha sido tipificado pelos diários que nasceram a partir da segunda metade do século passado, já com características empresariais e voltados para a diversificação crescente das informações.

         O enfoque teórico, situado na perspectiva da dialética marxista, está alicerçado nas categorias do "singular", "particular" e "universal" - noções de larga tradição no pensamento filosófico, especialmente na filosofia clássica alemã - que atingiram sua plena riqueza de determinações lógicas no pensamento de Hegel, apesar de inseridas dentro de seu sistema idealista. Sob a inspiração da estética de Lukács, que definiu a arte como uma forma de conhecimento cristalizada no "particular" (típico), o jornalismo é caracterizado como uma forma de conhecimento centrada no "singular". Uma forma de conhecimento que surge, objetivamente, com base na indústria moderna, mas se torna indispensável ao aprofundamento da relação entre o indivíduo e o gênero humano nas condições da sociedade futura. Assim, a proposta de um "jornalismo informativo", ideologicamente antiburguês, transforma-se numa possibilidade política efetiva.

         Inicialmente, são criticados alguns pressupostos do funcionalismo que estão subjacentes ao tratamento pragmático que normalmente é dado ao problema das técnicas jornalísticas e, igualmente, à questão da "objetividade e imparcialidade" da informação. Incluída na mesma linhagem teórica do funcionalismo, à chamada Teoria Geral dos Sistemas é apontada como inadequada para a abordagem crítica da comunicação humana em geral e do jornalismo em particular, à medida que reduz a antologia do ser social às propriedades sistêmicas referidas pela cibernética.

         A Escola de Frankfurt, que nos legou uma importante herança teórica de crítica da cultura, da comunicação e da ideologia no capitalismo desenvolvido, é denunciada em sua unilateralidade ao abordar tais questões exclusivamente sob o ângulo da manipulação. Nessa perspectiva, são discutidas idéias do jovem Habermas a respeito do jornalismo e algumas posições de autores contemporâneos situados nessa tradição.

         Mais adiante, uma corrente que se pretende marxista, chamada por nós de "reducionismo ideológico" - que trabalha com as premissas naturalistas do stalinismo - é analisada em seu caráter manipulatório e conseqüências a éticas no terreno político.

         Os últimos capítulos, com base nos pressupostos formulados ao longo do balanço crítico, propõem uma rediscussão dos conceitos de lead, notícia e reportagem, assim como uma revisão do significado da "pirâmide invertida". Finalmente, numa abordagem das relações do jornalismo com a sociedade capitalista e, mais amplamente, com a perspectiva histórica de uma sociedade sem classes, são delineadas suas potencialidades socializantes e humanizadoras.

Adelmo Genro Filho


Introdução

         Este trabalho pretende fornecer alguns elementos e indicações para a construção de uma teoria do jornalismo. Não tem, evidentemente, o fôlego e a sistematicidade do projeto desenvolvido pelo pioneiro Otto Groth, cujo admirável esforço teórico reafirma a tradição do pensamento abstrato entre os alemães. Em 1910, o Dr. Groth começa a escrever sua primeira obra, Die zeitung (O jornalismo), uma enciclopédia do jornalismo em quatro tomos, publicada entre os anos de 1928 e 1930. Em 1948 publica sua segunda obra. A partir de 1960 aparece seu trabalho mais importante e sistemático: Díe unerkannte culturmacht. Gruddlegung der zeitungswiessenschft (O desconhecido poder da cultura. Fundamentação da ciência jornalística). Foram seis volumes produzidos até 1965, quando o autor morreu sem terminar o sétimo.1

         Seu grande objetivo era obter o reconhecimento da "ciência jornalística" como disciplina independente. Essa meta hoje aparece como algo, no mínimo, duvidoso, considerando-se que a tendência atualmente dominante nas ciências sociais é a confluência de disciplinas e perspectivas. No entanto, o principal mérito de Groth, que consiste em ter estudado o jornalismo (ou os "periódicos") como um objeto autônomo entre os demais processos de comunicação social, não teve muitos herdeiros.

         As abordagens que predominaram nas últimas décadas giram em torno da comunicação de massa, da publicidade e das técnicas de informação, sem destacar o jornalismo como um objeto específico a ser desvendado. Em geral, o jornalismo tem sido considerado como simples modalidade da comunicação de massa e mero instrumento de reprodução da ideologia das classes dominantes.

         Otto Groth definiu claramente o objeto sobre o qual erigiu sua teoria:

         "Hay que advertir que para Groth la Ciencia Periodística debe investigar todas las publicaciones que aparezcam periodicamente como un solo fenómeno en sus elementos. Su obra tiene siempre presente la 'unidad confirmada historicamente de revistas y periódicos', por lo que Groth propone para los dos el nombre de ‘periodik’. Este término abarca no solo el periódico sino la prensa en conjunto".2

         Suas reflexões estão dirigidas, fundamentalmente, para o jornalismo escrito. Mas sua teoria jornalística, segundo Belau, em muitos pontos é perfeitamente aplicável ao rádio e à TV.

         Seu método de análise - ao contrário do que afirmam alguns pesquisadores - não é funcionalista, mas tipicamente weberiano.3 Os periódicos, para ele, são uma obra cultural produzida por sujeitos humanos dotados de finalidades conscientes, como parte da totalidade das criações humanas. Vejamos as próprias palavras de Groth:

         "La obra cultural tiene como realización un sentido de realidad sensual y por lo tanto está teleologicamente determinado al hombre, al sujecto. Su estructura está en el todo, y en cada una de sus partes, objetiva y subjetivamente. De esto recibe lo característico de su ser, su autolegalidad. Los fines que fundan así la Cultura derivan de las diferentes demandas humanas y de las normas válidas".4

         Para Groth, o exterior, a forma, a produção técnica, não possuem nenhum valor para a determinação do conceito e a delimitação do objeto da ciência do jornalismo. "Lo que vale en una obra cultural es su ser, su sentido".5 As edições e os exemplares de um periódico não são as peças das quais ele se compõe, mas a manifestação e materialização da idéia que é sua substância. De sua unidade imaterial resulta a continuidade de suas manifestações, pois essa idéia tem vida e destino próprios, colocando a seu serviço as máquinas, os homens, os edifícios, etc.

         Essa idéia cumpre uma finalidade, que é comunicar os acontecimentos em todos os ramos da cultura e da vida em geral ao indivíduo e à sociedade em seu conjunto. O significado do periódico, então, é a comunicação de bens imateriais de todos os tipos, desde que pertençam aos mundos presentes dos leitores, de um modo público e coletivo. O periódico deve servir de mediador, o que não implica apenas uma função social, mas também uma reciprocidade das relações entre os jornalistas, o periódico e os leitores.

         As quatro características fundamentais do jornalismo, apontadas por Groth - periodicidade, universalidade, atualidade e difusão -, consideradas numa perspectiva histórico-social, formam a dimensão que chamaríamos estrutural do fenômeno jornalístico. Não caracterizam a sua essência. Por outro lado, ao afirmar a significação do periódico como medíador na comunicação de bens imateriais, Otto Groth permanece num terreno excessivamente genérico e abstrato. O que é preciso definir é a especificidade desses bens imateriais produzidos por essa estrutura jornalística historicamente determinada. Noutras palavras, qual o tipo de conhecimento produzido pelo jornalismo?

         Aqui já temos, portanto, outra delimitação teórica do objeto, distinta daquela construída por Groth. E um outro método: já não se trata apenas de distinguir a racionalidade de uma comunidade subjetiva de indivíduos que trocam bens simbólicos, mas de compreender como as condições históricas - em primeiro lugar, as condições objetivas - produziram a necessidade dessa reciprocidade subjetiva e, sobretudo, a especificidade dos bens simbólicos que nasceram dela. Trata-se de, sob esse prisma, descobrir as ambigüidades e contradições do fenômeno jornalístico diante da dominação e da luta de classes no capitalismo, buscando inclusive perscrutar as potencialidades que se abrem ao futuro.

         Mas voltemos ao problema do método. É importante insistir sobre a bússola que vai nortear esse trabalho. Já é quase senso comum nas ciências, hoje em dia, a idéia de que o "objeto teórico" (ou "objeto do conhecimento") é distinto do "objeto real", entendido este apenas enquanto manifestação fenomênica. Não obstante, essa premissa é interpretada de maneiras diferentes, dependendo dos pressupostos filosóficos dos quais se parte.

         Há duas interpretações agnósticas sobre a questão que devem ser descartadas. A primeira delas, extrai dessa premissa uma conclusão de fundo neopositivista, isto é, a realidade é tomada simplesmente para efeitos operatórios, como um "construto" relativamente arbitrário. A segunda, a partir da distinção entre "objeto teórico" e "objeto real", assume uma postura francamente idealista, ou seja, o real é entendido como dotado de uma essência inacessível ao conhecimento.

         A posição assumida neste trabalho reconhece que, analiticamente, o "objeto teórico" é distinto do "objeto real" e interpreta essa sentença no sentido que foi claramente indicado por Marx em Para a crítica da economia política.6 Isso quer dizer que o real, para o conhecimento, não aparece imediatamente em sua concreticidade. Não é a objetividade evidenciada diretamente pelos sentidos que constitui o concreto, mas a síntese de suas múltiplas determinações enquanto concreto pensado, embora a concreticidade que o constitua seja o verdadeiro ponto de partida. O percurso do conhecimento vai do abstrato ao concreto, das abstrações mais gerais produzidas pelos conhecimentos anteriores, através das quais o sujeito para apreender a particularidade do objeto, até o momento da síntese realizada pelo conceito para apanhá-lo em suas determinações específicas, isto é, como concreto pensado. É o que afirma, numa linguagem hegeliana, Jean Ladrière:

         "Compreender o fenômeno é, de alguma maneira, efetuar o caminho da manifestação em sentido inverso, remontar o processo de vinda ao manifesto, vincular o manifesto ao seu princípio. Mas a caminhada não está separada do fenômeno, ela é a própria possibilidade mais interior, sempre presente no próprio ato de manifestação".7

         Neste sentido, o "objeto real" é o próprio fenômeno, aquilo que aparece imediatamente aos sentidos e se anuncia na experiência presente, assimilada de forma isolada e fragmentária. E o "objeto teórico" (ou "objeto do conhecimento") é a realidade observada sob o ângulo dos conhecimentos acumulados preliminarmente, ou seja, nos limites em que isso foi possível já vinculada (a realidade) ao seu princípio.

         Assim, dois aspectos merecem ser ressaltados. Primeiro, que o "objeto teórico", tal como o "objeto real", não é algo dado de uma vez para sempre, alguma coisa fixa e inerte, mas um processo de construção paralelo à produção, da própria realidade humana. Segundo, que não existe um fosso intransponível entre um e outro, mas uma transformação constante e progressiva do "objeto real" em "objeto teórico" e vice-versa. É se apropriando do mundo que o homem vai realizando essa transformação e, através dela, revelando a verdade do objeto real por meio da teoria.

         O percurso da teoria, em conseqüência, não pode partir de um conceito exaustivo do objeto (no caso, o jornalismo), para em seguida derivar suas determinações, pois isso seria adiantar como premissa ideal aquilo que se pretende - embora com muitas limitações - desenvolver na totalidade da reflexão. É recomendável, ao que nos parece, que o percurso da exposição não violente a lógica da apreensão teórica, embora não deva ser coincidente com ela, a fim de evitar os tropeços e descaminhos que a teoria foi obrigada a percorrer. O melhor rumo da exposição parece ser um caminho lógico presidido pelas conclusões teóricas já obtidas, não reveladas inteiramente de antemão, embora delineadas previamente a fim de que sirvam como vetor para a compreensão.

         Avancemos, então, em direção ao nosso objeto pela via delicada da aproximação excludente. O objeto deste trabalho não é a comunicação em geral, o que poderia enfeixar todo um conjunto heterogêneo de processos físicos, biológicos e sociais, abordados sob a ótica da Cibernética e da Teoria da Informação. Tampouco se pretende dar conta do conjunto de relações humano-sociais indicado sob o título genérico de Comunicação Social, mas apenas de uma de suas determinações históricas, a saber, o "jornalismo informativo", tomado como modelo do próprio conceito de jornalismo.8

         A escassez de estudos teóricos sobre o jornalismo (tendo presente a exceção de Otto Groth) nos obriga a discutir a questão no contexto de categorias e referências mais amplas. Assim, o critério usado para o balanço dos conhecimentos existentes está alicerçado em duas premissas: os pressupostos teóricos assumidos e a adoção privilegiada - para efeitos da crítica - de certas correntes de pensamento que, a nosso juízo, produziram conceitos relativamente abrangentes sobre o jornalismo. Discutiremos aspectos de três grandes correntes: o "funcionalismo norte-americano", a "Escola de Frankfurt" e uma espécie de concepção sobre o jornalismo que se autoproclama marxista, que será chamada de "reducionismo ideológico". Esta concepção está inserida na tradição stalinista e encontra seu complemento teórico nas teses de Althusser.9

         A "escola francesa" de Jacques Kaiser, que seria considerada mais tarde como precursora do estruturalismo10 , e os estudos semiológicos inspirados na lingüística estrutural de Saussure, na lingüística de Jakobson, na lingüística transformacional de Chomsky, na psicanálise de Lacan e na antropologia de Lévi-Strauss não serão discutidos. A partir da década de 60, na Europa, e principalmente na França, esboçou-se nos pesquisadores universitários "o sonho megalômano de uma decodificação geral dos sistemas de signos; e como toda a manifestação humana é um sistema de signos... Imaginou-se uma ciência geral da narrativa, que se encaixaria numa ciência geral das artes, que se encaixaria numa ciência geral da linguagem, abarcando sociedade e inconsciente".11 Pela natureza desse enfoque, que privilegia o mundo enquanto "linguagem", "textos", "articulação de signos", o jornalismo é investigado, via de regra, como produção ideológica que emana das estruturas subjacentes em que se organiza a mensagem. Em conseqüência, para os objetivos do nosso trabalho que é situar o jornalismo como fenômeno histórico-social concreto e não apenas como organização formal da linguagem que manifesta conteúdos explícitos ou implícitos, tais enfoques apresentam um insanável vício de origem, que é a parcialidade na apreensão do fenômeno.

         Inicialmente faremos um balanço crítico no qual as nossas hipóteses irão sendo apresentadas. Os capítulos finais abordarão a "pirâmide invertida", o lead12 , as relações entre jornalismo e arte e, finalmente, as perspectivas históricas do jornalismo. Na questão das relações entre jornalismo e ideologia, por uma opção epistemológica, e também política, o conteúdo das notícias é tomado em seus opostos extremos ("funcional" ou "crítico-revolucionário"), embora seja necessário reconhecer que a dialética social estabelece todo um leque de gradações e ambigüidades. Para abordar o jornalismo como modalidade de conhecimento, são utilizadas três categorias de larga tradição no pensamento filosófico desde a Antigüidade e, em especial, na filosofia clássica alemã: o singular, o particular e o universal. Elas foram aplicadas por Lukács, com relativo êxito, na formulação de uma estética marxista. Nossa intenção é aplicá-las para a constituição de uma teoria do jornalismo.13

         Nossa abordagem postula a aplicação do método dialético-materialista, tomada esta expressão não no sentido do "reducionismo economicista" ou do "naturalismo dialético"14 - o que conduz a um enfoque de matiz positivista - mas numa perspectiva marxista que toma as relações práticas de produção e reprodução da vida social como ponto nodal da autoprodução humana na história. Ou seja, trata-se de uma maneira de considerar a realidade histórico-social que compreende as determinações subjetivas como algo real e ativo, uma dimensão constituinte da sociedade, mas que só pode ser apanhada logicamente em sua dinâmica como momentos de uma totalidade que tem na objetivação seu eixo central. Em síntese, um enfoque que toma a práxis como categoria fundamental.

         A dificuldade maior é que inexiste uma tradicão teórica integrada e solidamente constituída sobre o jornalismo, como já foi indicado, em que pesem alguns avanços significativos em problemáticas paralelas ou áreas limítrofes. A Teoria da Informação, por um lado, e a Comunicação de Massa, por outro, envolvem investigações relativamente recentes e bastante desencontradas. O fundamento comum, enunciado e discutido pelos estudiosos de ambas as áreas, é ainda por demais incipiente para que se possa reconhecer a existência de uma inequívoca unidade teórica. Persiste, entre a Teoria da Informação e as investigações filosóficas, sociológicas e semiológicas da comunicação humana, uma terra de ninguém, um vácuo atormentado por dúvidas e imprecisões.

         Entre o formalismo da primeira e a generalidade dos demais enfoques, não é de se admirar, portanto, que o jornalismo - fenômeno que nasceu no bojo da comunicação de massa - seja tão carente de explicações teóricas e tão farto em considerações empiristas e moralizantes. O que tem acontecido é que as abordagens sociológicas ou filosóficas contornam, ou simplesmente ignoram, as questões formais propostas pela Teoria da Informação. Esta, por seu lado, tende a exercer uma espécie de "redução ontológica" da sociedade para inseri-la em seus modelos.

         A chamada "Teoria Geral dos Sistemas", pela metodologia abrangente e reducionista que propõe, é um dos pólos desse dilema teórico.15 Os mal-entendidos que se produziram com a participação de Lucien Goldmann num debate com cientistas de diversas áreas sobre "o conceito de informação na ciência contemporânea"16 , indicam o reverso da medalha, isto é, a dificuldade dos enfoques "humanistas" em incorporar o aspecto objetivo e matemático implicado no conceito de informação.

         Assim, pode-se perceber que a ausência de uma teorização axiomática sobre o jornalismo não ocorre por acaso, mas num contexto de reflexões heterogêneas e até paradoxais sobre o problema da comunicação. Tampouco essa lacuna é destituída de conseqüências políticas e sociais: em geral, os posicionamentos nascidos dessa indigência teórica capitulam diante do empirísmo estreito - caminho mais curto até a apologia - ou assumem o distanciamento de uma crítica supostamente radical que resume tudo no engodo e na manipulação.

         A ingenuidade dessas propostas, que desprezam as mediações especificamente jornalísticas e propõem a panacéia de "devolver a palavra ao povo", denuncia a inconsistência teórica das premissas. É certo que a ideologia burguesa está embutida na justificação teórica e ética das regras e técnicas jornalísticas adotadas usualmente. Mas isso não autoriza, como muitos parecem imaginar, que se possa concluir que as técnicas jornalísticas são meros epifenômenos da dominação ideológica. Essa conclusão não é legítima nem do ponto de vista lógico nem histórico.

         Um enfoque verdadeiramente dialético-materialista deve buscar a concreticidade histórica do jornalismo, captando, ao mesmo tempo, a especificidade e a generalidade do fenômeno. Deve estabelecer uma relação dialética entre o aspecto histórico-transitório do fenômeno e sua dimensão histórico-ontológica. Quer dizer, entre o capitalismo (que gestou o jornalismo) e a totalidade humana em sua autoprodução. Dito de outro modo, o jornalismo não pode ser reduzido às condições de sua gênese histórica, nem à ideologia da classe que o trouxe à luz. Parafraseando Sartre: a notícia é uma mercadoria, mas não é uma mercadoria qualquer.17 O capitalismo não é um acidente no processo histórico, mas um momento da totalidade em seu devir. Suas determinações culturais (no sentido amplo do termo) envolvem uma dialética entre a particularidade dos interesses da classe dominante e a constituição da universalidade do gênero humano. A quem pertencem, hoje, as obras de Balzac, Flaubert, Zola e tantos outros? A ambivalência do jornalismo decorre do fato de que ele é um fenômeno cuja essência ultrapassa os contornos ideológicos de sua gênese burguesa, em que pese seja uma das formas de manifestação e reprodução da hegemonia das classes dominantes.

         O que faremos nas reflexões subseqüentes é discutir o jornalismo como produto histórico da sociedade burguesa, mas um produto cuja potencialidade a ultrapassa e se expressa desde agora de forma contraditória, à medida que se constituiu como uma nova modalidade social de conhecimento cuja categoria central é o singular. Porém, o conceito de conhecimento não deve ser entendido na acepção vulgar do positivismo, e sim como momento da práxis, vale dizer, como dimensão simbólica da apropriação social do homem sobre a realidade. Nosso ponto de partida, portanto, pode ser ilustrado pela assertiva final do livro de Nilson Lage. Ele intuiu corretamente o caminho a seguir e o expressou de modo incisivo:

         "Os jornais, em suma, não têm saída: são veículos de ideologias práticas, mesquinharias. Mas têm saída: há neles indícios da realidade e rudimentos de filosofia prática, crítica militante, grandeza submetida, porém insubmissa".18 Orações imponentes de um jornalista talentoso. Talvez o lead de uma nova abordagem.


Notas de Rodapé

1)BELAU, Angel Faus. La ciencia periodística de Otto Groth. Pamplona, Instituto de Periodismo de la Universidad de Navarra, 1966. (A síntese do pensamento de Groth apresentada aqui, bem como alguns dados biográficos, foram baseados principalmente na presente obra).
2)BELAU, Angel Faus. Op. cit., p.17.
3)José Marques de Melo afirma que Groth adotou a perspectiva funcionalista para o estabelecimento das leis do jornalismo. Cf.: Sociologia da imprensa brasileira. Petrópolis, Vozes, 1973. (coleção Meios de Comunicação Social; 10, Série Pesquisas; 2) p.20.
4)GROTH, Otto. Apud:BELAU, Angel Faus. Op.cit., p.26.
5)Idem, p.29
6)Marx, Karl. In: Karl Marx. 3. Ed. São Paulo, Abril Cultural, 1985. (Col. Os Pensadores) p. 116-7.
7)LADRIÈRE, Jean. Filosofia e práxis científica. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978. p.23.
8)O "jornalismo informativo" produzido em qualquer veículo, especialmente aquele que apresenta uma periodicidade pelo menos diária, é o fenômeno que tipifica nosso objeto. Trata-se da manifestação mais característica do fenômeno que pretendemos analisar, servindo como principal referência do nosso "objeto real" no sentido já apontado.
9)Mais adiante veremos que as idéias de Althusser, mais harmônicas com a concepção que denominamos "reducionismo ideológico", também influenciaram as análises do belga Armand Mattelart, embora estas, no seu conjunto, estejam mais identificadas com a tradição de "Frankfurt".
10)CASASÚS, José Maria. Ideologia y análisis de medios de comunicación. Barcelona. DOPESA, 1972. p.20.
11)MOISÉS, Leila Perrone. Roland Barthes. São Paulo, Brasiliense, 1983. (Col. Encanto radical; 23) p.43.
12)Mesmo sendo expressões usuais no dia a dia dos jornalistas, cabe informar o seu significado aos leitores de outras áreas. A "pirâmide invertida" é a representação gráfica de que a notícia deve ser elaborada pela ordem decrescente de importância das informações. O lead designa "o parágrafo sintético, vivo, leve, com que se inicia a notícia, na tentativa de fisgar a atenção do leitor".
13)Para quem não estiver familiarizado com tais categorias, seria interessante iniciar a leitura pelo capítulo VII, onde se discute o sentido que elas adquirem em Hegel e Marx, e onde são apresentadas algumas reservas ao uso que delas fez Lukács em sua estética.
14)GENRO FILHO, Adelmo. Introdução à crítica do dogmatismo. In: Teoria e Política. São Paulo, Brasil Debates, 1980. n.1.
15)Cf. BUCKLEY, Walter. A sociologia e a moderna teoria dos sistemas. 2.ed. São Paulo, Cultrix, s/d.
16)GOLDMANN, Lucien. Sobre o conceito de consciência possível. In: O conceito de informação na ciência contemporânia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970. (Série Ciência e Informação; 2).
17)"Valéry es un intelectual pequeño-burgués, no cabe la menor duda. Pero todo intelectual pequeño-burgués no es Valéry". In: SARTRE, Jean-paul. Crítica de la razón dialéctica. Buenos Aires, Losada, 1979. Libro I. p.53.
18)LAGE, Nilson. Ideologia e técnica da notícia. Petrópolis, Vozes, 1979, p. 112 (Violette Morin aponta no mesmo sentido: "Parece que el tratamiento periodístico, em su versión actual, encierra alguna 'virtud' cuya intensidad, aún mal definida, podría un día rivalizar con la ya reconocida de sus 'vícios'. Es éste, en todo caso, el sentimiento que este trabajo contribuye a sugerir". Ver: El tratamiento periodístico de la informacion. Madrid, A.T.E., 1974. (Col. Libros de Comunicación Social). p.10.



Topo da página