Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987. pp. 203-222. [Ref.: T196]

CAPÍTULO X

Jornalismo e comunismo:
considerações finais

         Para McLuhan, os meios de comunicação são como extensões dos sentidos humanos. Eles se constituem de todo o aparato que une os homens entre si. Ao se modificar, esse aparato transforma o "meio ambiente" do homem e sua forma de percepção da realidade. Por isso, os efeitos sociais dos meios não dependem do conteúdo das mensagens, mas da natureza técnica desses meios. O desenrolar da história é uma função das transformações dos meios de comunicação. Com o advento dos meios eletrônicos, é superada a comunicação fragmentada e linear e se atinge uma nova percepção, mais direta e autêntica, uma percepção integral da realidade. O mundo, então, do ponto de vista dos sentidos se transforma numa aldeia. A história de toda a sociedade até hoje é a história das lutas dos meios de comunicação. "E essas lutas são também devastadoras guerras internas dos sentidos".

         Nessa bizarra concepção do "profeta das comunicações", não são as lutas de classe e os conflitos sociais que movem a história, mas tecnologias da comunicação que travam entre si batalhas épicas. Além do mais, os sentidos humanos não estão associados historicamente ao processo global da atividade humana (Marx), mas a tecnologias específicas que surgem nesse processo.

         Certamente os meios de comunicação não podem ser considerados apenas como extensão dos sentidos, nem os sentidos humanos apenas como uma função dos meios, pois isso implicaria um reducionismo inadmissível tanto de um como de outro.

         No entanto, embora os meios de comunicação não travem as batalhas devastadoras imaginadas por McLuhan, eles constituem um sistema (a exemplo do que ocorre com os sentidos humanos), no qual se pode falar da predominância de um sobre os demais. Atualmente, a televisão é o veículo predominante e hegemônico não apenas no sistema formado pelos meios de comunicação, tal como sugere McLuhan, mas igualmente no sistema jornalístico alicerçado nesses meios.

         O jornalismo, aqui tratado como modalidade social do conhecimento, aparece com os meios de comunicação da era industrial, com base na imprensa. Mais tarde, ela vai originar os modernos diários impressos. Porém, essa identificação do jornalismo com a imprensa e o jornal é apenas de caráter histórico. A produção social do conhecimento jornalístico não está incorporada fixamente a um único ou principal veículo. O jornal impresso, notadamente o moderno diário, é o veículo que tipifica inicialmente o jornalismo, o suporte técnico originário no qual ele adquire suas características essenciais. À medida que vão surgindo outros veículos adequados ao jornalismo, vai se configurando uma totalidade articulada e em constante desenvolvimento, na qual cada veículo vai ocupando um determinado papel. Assim, com a televisão hegemonizando o sistema jornalístico, o jornal e o rádio tendem a uma reacomodação buscando suas novas funções, cada vez mais adequadas aos seus potenciais específicos no terreno do jornalismo.

         "A força (assim como a possível e eventual fraqueza) da televisão dizem Carlos Alberto M. Pereira e Ricardo Miranda - parece estar diretamente vinculada a seu constante registro do imediato, a sua atualidade. A informação a partir da qual a televisão constrói o material a ser utilizado está voltada para o cotidiano, para o dia a dia". E acrescentam: "A TV tem, assim, um ritmo marcadamente jornalístico - e mais, de um jornalismo que dispensa o texto escrito".

         Exatamente pela sua capacidade de reprodução do mediato no espaço como imediato, de maneira rápida ou até instantânea, o que determina seu "ritmo marcadamente jornalístico" e sua potencialidade de singularização, a televisão é o meio hegemônico do sistema jornalístico. Quando um veículo é desbancado de sua hegemonia, como ocorreu com o jornal pelo rádio e, depois, ambos pela TV, ele parece que vai tornar-se supérfluo ou redundante, o que em determinados aspectos é verdadeiro. Depois, vai definindo melhor sua função no contexto do sistema, aproveitando melhor suas características, tanto aquelas que poderiam ser indicadas como suas "vantagens" ou como suas "limitações". No entanto, o papel exato que o rádio e o jornal estão assumindo no atual sistema jornalístico hegemonizado pela TV - e que poderão assumir no futuro - é um assunto que exigiria não apenas uma reflexão teórica, mas uma investigação empírica.

         Com o desenvolvimento das forças produtivas materiais e espirituais - e não apenas pelo desenvolvimento dos meios de comunicação - há uma alteração histórica dos sentidos humanos, uma ampliação e um aprofundamento da percepção e das possibilidades do conhecimento em geral. O jornalismo, nesse sentido, é a cristalização de uma nova modalidade de percepção e conhecimento social da realidade através da sua reprodução pelo ângulo da singularidade. Essa reprodução é um processo que tem uma base histórica objetiva e subjetiva. Assim, aquilo que, em si mesmo, constituía uma singularidade há alguns anos, como um transplante cardíaco, por exemplo, hoje não é mais. Para torná-lo notícia, será preciso descobrir alguns aspectos que diferenciam esse transplante dos outros. Por outro lado, um simples acidente de automóvel, sem vítimas, poderia ter interesse jornalístico no início do século quando estavam sendo fabricados os primeiros veículos. Hoje, no entanto, em geral valerá como um evento estatístico e não em si mesmo.

         Além disso, o que pode ser singular para uma comunidade especializada (cientistas, por exemplo), talvez signifiquem uma abstração genérica, aborrecida e impenetrável para os leigos. O importante a ser assinalado aqui é que a relação entre o singular, o particular e o universal não só é dialética intrinsecamente, como está sujeita, também, a uma dialética histórica e social que será o quadro da referência da primeira.

A desintegração do real e a formação da experiência

         Para Adorno e Horkheimer, "a cultura capitalista leva obrigatoriamente à desintegração social e política". O próprio Benjamin, embora tenha sugerido que a frase feita do jornalismo aponta para a transformação da cópia num intrumento de produção, liberando novas potencialidades sociais, não deixou de criticar a fragmentação produzida pela abordagem jornalística. Flávio Kothe sintetiza essa crítica originária de Benjamin:

         "A informação jornalística se caracteriza por quatro elementos: novidade, concisão, comunicabilidade e não relacionamento das informações isoladas. Em si, ela é contrária à formação da experiência, pois esta se constitui pela correlação e elaboração de dados diversos, obtidos na trajetória entre um estado de carência, que faz com que se constitua um desejo ou um anelo, e a realização - ou não - dessa meta".

         A tese muito difundida de que o jornalismo "não relaciona as informações" e, por isso, seria contrária à formação da experiência é até curiosa. Ora, qualquer forma de conhecimento ou expressão conceitual da realidade, desde a mais elementar percepção humana, se dá em bases relacionais. O que varia é somente o grau de amplitude e profundidade dos relacionamentos percebidos e comunicados. Levada às últimas conseqüências, essa tese interditaria não apenas o jornalismo, mas todas as formas de conhecimento e discurso que não sejam expressamente filosóficos. Afinal, só a filosofia tem como objeto as relações universais da totalidade.

         No jornalismo, a impressão de uma reprodução fragmentária da realidade é forte porque as informações são configuradas pelo ângulo da singularidade. No entanto, o relacionamento é real e efetivo e subjaz à forma autônoma em que são apresentadas as notícias e reportagens. O conteúdo das informações, dada pela particularidade e pela universalidade que dela se projeta, implica um profundo relacionamento entre as diversas matérias - formalmente fragmentadas - de uma mesma edição, de um mesmo veículo e, inclusive, dos veículos em seu conjunto.

         A elaboração de uma notícia ou de uma reportagem, seja qual for o veículo, pressupõe todo um processo de abstração feito por repórteres, redatores e editores - segundo uma determinada linha editorial -, o que envolve uma complexa rede de relações pressupostas e outras reveladas no processo. À proporção que as informações vão sendo consideradas em conjuntos cada vez maiores (as notícias de um setor do jornal na mesma edição, o conjunto de informações de uma edição, de um veículo em sucessivas edições ou do sistema jornalístico), a consciência individual do relacionamento entre elas torna-se mais diluída. Porém, o relacionamento entre as informações continua existindo orientado, geralmente, pela ideologia dominante.

         Por isso, a informação jornalística não é contrária à formação da experiência: trata-se, inclusive, de uma experiência que já vem, em alguma medida, "pré-formada" pelos mediadores e pelo sistema jornalístico no qual estão inseridos; noutro sentido, essa experiência "pré-formada" não resulta pronta e acabada, mas convida o público a completá-la como um fenômeno que estivesse sendo percebido diretamente. A sua significação universal, está apenas sugerida ao invés de formalmente fixada. A concepção ingênua de que o jornalismo inevitavelmente fragmenta o real e, em conseqüência, é necessariamente manipulatório e alienante, sequer consegue notar que a singularidade é uma dimensão objetiva da realidade e, além disso, que o singular também contém o particular e o universal.

         Assim, reproduzir o real sob o ângulo da singularidade não implica que o conteúdo seja aprisionado na dimensão definida por essa categoria, isto é, dissolvido como tal. Um conteúdo puramente singular, seria uma contradição lógica, um absurdo.

         Ciro Marcondes Filho procura estabelecer um nexo entre a reificação produzida pela sociedade burguesa e a forma jornalística.

         "Tal fragmentação (que é a forma geral de disposição do mundo na perspectiva burguesa) produz igualmente mentalidades fragmentadas, diluídas, difusas, que vêem o contexto social, a realidade, sem nenhum nexo, sem nenhum fio ordenador. Para a mentalidade fragmentada, a fragmentação noticiosa cai como uma luva".

         E acrescenta mais adiante:

         "A quebra da unidade, da totalidade na apresentação jornalística, torna os homens objetos inconscientes das estruturas de dominação que criam diariamente".

         Para Marcondes Filho, a informação reificada é o correspondente Jornalístico do fetichismo geral da mercadoria no modo de produção capitalista. Vejamos de modo mais preciso o significado do conceito de reificação, segundo Goldmann:

         "Em grande número de textos, Marx insiste sobre o fato de que, numa economia mercantil, o que caracteriza o valor de troca é que ele transforma a relação entre o trabalho necessário à produção de um bem e esse bem mesmo em qualidade objetiva do objeto; é o próprio processo de reificação".

         Assim, uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Foi dessa maneira que Marx definiu o fetichismo da mercadoria. Elas adquirem, aparentemente, vida própria. Sua lógica foge ao controle consciente dos homens e passa a encarnar um mistério. Logo, se a reificação é, do ponto de vista analítico, uma condição do fetichismo, por outro lado, a reificação só assume significação psicológica autônoma no processo de alienação quando o capitalismo amadurece. Ou, como preferem alguns, no capitalismo tardio. Nessa época, as relações entre as "coisas" - isto é, as relações sociais em seu conjunto - aparecem igualmente como coisas. A sociedade passa a ser percebida como pura positividade e factualidade, como um objeto natural.

         Portanto, quando se pretende afirmar que o jornalismo, através da "fragmentação noticiosa", produz necessariamente informações reificadas e que isso, corresponde ao fetichismo geral da mercadoria, deve-se, antes, perguntar se realmente a fragmentação formal corresponde a um conteúdo reificado das notícias.

         A idéia de fragmentação e de reificação diz respeito ao conteúdo e não apenas à forma. A questão é saber se a "fragmentação noticiosa" reforça mesmo a percepção do mundo como algo natural, como um agregado de fatos ou coisas estritamente objetivas. Ora, a lógica da reprodução jornalística, sua abordagem pelo viés do singular - se deixarmos de lado a vulgaridade de que ela não relaciona expressamente os fenômenos entre si - aponta para o sentido oposto ao da reificação.

         Os novos meios de comunicação, que emprestam as condições técnicas para a realização do jornalismo, estão orientados para a ação e a dinâmica das relações sociais, não para a contemplação e a estática. O jornalismo é a expressão mais radical dessa potencialidade. A idéia de fluxo, de um movimento no qual os atores aparecem diariamente em ação, muitas vezes instantaneamente, as infinitas possibilidades de combinação das informações jornalísticas que saturam o meio social, tudo isso oferece enormes possibilidades para a negação da reificação ao invés de reforçá-la inexoravelmente.

         A ideologia burguesa, pelo conteúdo predominante que atribui ao conjunto das informações que circulam na sociedade, reforça o fetichismo (notadamente pela publicidade) e a reificação, mas encontra na potencialidade social que emana da natureza técnica dos meios e da lógica inerente ao jornalismo um obstáculo, uma contradição que se repõe a cada ato.

A luta de classes e o conteúdo do singular

         A crítica de que o jornalismo, ao separar as notícias e tratá-las de forma descontínua, desintegra e atomiza o real favorecendo a superficialidade da reflexão e a alienação, tornou-se um lugar comum que recebe, em cada autor, um verniz teórico diferente.

         Já indicamos que a integridade do real não é um dado a priori na percepção, mas se revela através da abstração e do conhecimento. O jornalismo não desintegra e atomiza a realidade, pelo simples motivo que essa realidade não se oferece imediatamente à percepção como algo íntegro e totalizado. É no processo do conhecimento que a realidade vai sendo integrada, já que ela se mostra primeiro como caos, como algo desconhecido e imprevisível. Já mostramos também, até a exaustão, que no jornalismo o singular se abre para um contexto particular e sugere uma significação universal, um conteúdo. Na sociedade, a notícia, assim como a percepção individual de um fenômeno singular, vai se inserir em determinadas cosmovisões pré-existentes. Há, como sabemos, uma cosmovisão dominante. Mas ela não é destituída de contradições. Nas sociedades de classe existe sempre um antagonismo político e ideológico tensionando o sistema. Por isso, existe a possibilidade de um ângulo oposto ao da reprodução para a apreensão do singular-significante.

         Partindo dessa premissa é que se pode pensar a cultura em geral e o jornalismo em particular como práxis, não apenas como manipulação e controle. De um lado, em virtude da propriedade privada dos meios de comunicação e da hegemonia ideológica da burguesia, o jornalismo reforça a cosmovisão dominante. De outro, a apreensão e reprodução do fato jornalístico podem estar alicerçadas na perspectiva de uma cosmovisão oposta e de uma ideologia revolucionária.

         Além disso, como o novo aparece sempre como singularidade, e esta sempre como o aspecto novo do fenômeno, a tensão para captar o singular abre sempre uma perspectiva crítica em relação ao processo. A singularidade tende a ser crítica porque ela é a realidade transbordando do conceito, a realidade se recriando e se diferenciando de si mesma.

         No processo constante de transformação da realidade, o novo aparece sempre sob a forma do singular, como fenômeno isolado, como exceção. Por isso, o singular é a forma originária do novo. Ele é a diferenciação da mesmice, aquilo que escapa da mera reprodução e da simples identidade em relação ao universal já constituído. Assim, a abordagem jornalística tende a apanhar a realidade pelo movimento e este como produção do novo. Contra essa potencialidade da abordagem jornalística, procurando neutralizá-la e submetê-la, volta-se a ideologia burguesa, patrocinando formas cada vez mais intensas e sofisticadas de controle e manipulação do processo informativo.

         Mesmo se considerarmos estritamente a ideologia burguesa que se manifesta no jornalismo, veremos que ela não atua com a lógica destrutiva que Ciro Marcondes Filho atribui à imprensa.

         "A lógica da imprensa no capitalismo - afirma o autor - é exatamente a de misturar as coisas, de desorganizar qualquer estruturação racional da realidade, e jogar ao leitor o mundo como um amontoado de fatos desconexos e sem nenhuma lógica interna".

         Mesmo o jornalismo sensacionalista, que singulariza ao extremo os fatos, acaba reforçando uma certa racionalidade já presente na ideologia dominante e nos preconceitos em geral. O jornalismo "sério", ao contrário do que diz Marcondes, procura organizar uma estruturação racional da realidade, e jogar o leitor num mundo cujos fatos estão articulados por uma lógica - a lógica instrumental que emana da positividade do capitalismo. Porém, à medida que se reduz o jornalisrno ao aspecto manipulatório, como aniquilador da reflexão e da consciência crítica, ele deve ser visto, fundamentalmente, como um fenômeno que desestrutura a consciência. Na verdade, muito mais do que criar débeis mentais (embora isso também ocorra), o capitalismo produz o consentimento e a adesão ideológica a determinada racionalidade e a certos valores. Quer dizer, o sistema capitalista reproduz a consciência e a atitude burguesas muito mais do que o caos intelectual e subjetivo.

O desvendamento do sujeito coletivo

         Antônio Serra aponta outra questão bastante discutida nas críticas ao jornalismo:

         "Partiremos da consideração de que o meio de informação busca produzir um efeito de apresentação da realidade, isto é, coloca-se exatamente como ‘meío’ através do qual os fatos reais seriam transmitidos ao público. Tal efeito se apóia, pois, num truísmo: o meio seria, de fato, meramente um meio, uma ampliação dos órgãos sensórios, perceptivos e experienciais do leitor o qual, através dele, alcança uma realidade afastada e por seus próprios meios individuais, inalcançáveis".

         Esse "efeito de apresentação da realidade", para usar a expressão do autor - essencial ao jornalismo - na maioria das vezes é considerado exclusivamente pelas possibilidades manipulatórias que oferece. Esse "efeito" é entendido somente como um reforço da ideologia burguesa da "objetividade jornalística", que pretende inculcar que os fatos apresentados são puramente objetivos, não sendo percebidos em suas potencialidades epistemológicas e até políticas. O resultado, quase sempre, é uma postura saudosista mais ou menos velada, em defesa da informação personalizada e artesanal.

         A denúncia de que o jornalismo burguês esconde o sujeito que produz as informações, como se não existissem intermediários entre os fatos e a sua percepção pelo público, para fins basicamente manipulatórios, é a crítica política decorrente. A proposta resultante, geralmente vai no sentido da "revelação do sujeito" da informação, entendido enquanto sujeito individual, como antítodo ideológico.

         Em primeiro lugar, no jornalismo moderno, em virtude da produção coletiva e industrial da informação, não é realmente um sujeito individual que fala. Trata-se, de fato, de um sujeito social que pode ser identificado no âmbito das contradições de classe e interesses de grupos. Em segundo lugar, à medida que o público vai compreendendo essas contradições e a lógica dos interesses, os veículos são progressivamente identificados em sua postura ideológica e política, especialmente de parte dos setores mais participantes e politizados. O sujeito é "desvendado" tal qual sua natureza social, ou seja, como sujeito que corresponde a classes sociais ou grupos econômicos e políticos. A personalização dos indivíduos que elaboram diretamente as informações é secundária, pois não corresponde na verdade aos sujeitos que concretamente estão se expressando pelos meios de comunicação. Em síntese, a impessoalidade das informações jornalísticas não constitui empecilho para a descoberta dos verdadeiros sujeitos. Ao contrário, até facilita a identificação dos interesses mais amplos das classes e grupos sociais.

         O desvendamento desse sujeito social e político que está por trás de cada veículo, ou mesmo de cada informação, só pode ser realizado num processo que envolve, inclusive, uma participação consciente e deliberada dos setores mais atuantes e politizados. A possibilidade dessa ação está baseada em alguns fatores já existentes na própria realidade, seja de maneira efetiva ou apenas como potencialidade:

         a) A participação mais ou menos consciente na luta de classes possibilita identificar os interesses em jogo, bem como a origem dos discursos e das diversas abordagens da realidade.

         b) Através da diversidade ou pluraridade que sempre existe, pelo menos minimamente, é possível confrontar e comparar as abordagens dos meios para que revelem os sujeitos políticos e sociais que estão por trás da suposta imparcialidade. Assinale-se que essa diversidade é, em certa medida, criada conscientemente pelos setores antiburgueses ou de oposição ao status quo, seja através de veículos sob o controle desses segmentos ou das informações que "passam" nos meios de propriedade burguesa.

         c) Na explicitação editorial dos próprios veículos, mesmo que procurem demonstrar que suas opiniões em nada alteram os "fatos imparcialmente relatados", surge a possibilidade do público relacionar aquelas posições abertas com o enfoque velado que preside as demais matérias.

         d) Finalmente, pela criação de uma consciência política e teórica de que a informação jornalística não é nem puramente objetiva, nem imparcial ou neutra.

Práxis, comunicação e jornalismo

         A comunicação social só pode ser abordada como um dos aspectos da dimensão ontológica do homem, não como um atributo ou uma qualidade adquirida. A comunicação, sob o ponto de vista analítico, é um aspecto do trabalho e, mais particularmente, expressa a forma social de produção do conhecimento. Portanto, um aspecto da essência do homem como ser que trabalha e se apropria coletivamente do mundo de modo prático e teórico. Numa palavra, a comunicação é um momento da práxis. O homem é um ser que domina e compreende o mundo simultaneamente e, nessa medida, transforma a si mesmo e amplia o seu universo. A comunicação está no âmago da atividade prática coletiva, da produção social do conhecimento que emana dessa atividade e, ao mesmo tempo, a pressupõe. Portanto, está no âmago da produção histórica da sociedade e da autoprodução humana.

         As máquinas de informação estão, necessariamente, enquadradas por um sistema que delimita ontologicamente sua funcionalidade. Os circuitos eletrônicos, as ondas eletromagnéticas, os fios, as moléculas do ar, os jornais, etc., são meios que podem transmitir efeitos e, por isso, informações. Os homens, porém, sempre são partícipes da "transmissão" das informações. E isso ocorre não como uma espécie de resíduo subjetivo indesejável ou porque, psicologicamente, os indivíduos não conseguem se livrar de suas motivações sociais, políticas ou ideológicas.

         Na verdade, a questão é anterior: a comunicação humana envolve a objetividade da base material e a subjetividade da autoconstrução histórica. Mas o conceito de informação implica, tão somente, o aspecto quantitativo desse processo, isto é, a dimensão objetiva que é plenamente formalizável. Esse conceito (de informação) é fundamental para a ação operativa sobre a realidade, mas não consegue totalizar a comunicação como uma dimensão concreta do processo histórico da autoconstrução objetiva e subjetiva dos homens. A sociedade humana, como já foi sublinhado antes, não é um sistema que busca somente a sua reprodução e o equilíbrio, mas um fazer histórico prioritariamente prático que se abre, a cada instante, em novas possibilidades aos sujeitos, embora ela apresente em seu processo de reprodução, sem qualquer dúvida, determinados momentos e aspectos nitidamente sistêmicos.

         São esses pressupostos, que compreendem a comunicação no interior da práxis, que nos permitem superar os enfoques a-históricos ou puramente ideológicos do jornalismo, concebendo-o enquanto estrutura de comunicação historicamente condicionada e forma social de conhecimento articulada à autoprodução histórica do homem. Tanto uma como outra, embora geradas no ventre do capitalismo, correspondem a necessidades e determinações bem mais duradouras e amplas do que o domínio burguês e seus interesses particulares de classe exploradora.

Lênin e Trótski: intuições e limites

         Sabemos que a reprodução jornalística está intimamente ligada à realidade imediata. Assim, a margem para a determinação ideológica do jornalismo está demarcada pela necessidade de manter certos laços com as manifestações objetivas dos fenômenos singulares. Em contrapartida, os fatos só adquirem sentido num contexto particular que precisa - em certa medida - ser posto subjetivamente, não apenas dando ampla margem à ideologia como exigindo-a necessariamente. Numa configuração diversa daquela que ocorre na arte - que singulariza livremente em busca do particular estético, conservando superados tanto o universal quanto o singular -, o jornalismo, para reproduzir a realidade social, apreende manifestações singulares objetivas e, através delas, repõe implicitamente opiniões, idéias e juízos universais.

         Já vimos que a origem da confusão teórica e semântica - em parte conscientemente patrocinada - da "objetividade jornalística", está localizada na própria ideologia que emana positivamente das relações de produção capitalistas, da reifícação que está na base dessa ideologia. (Trata-se, aqui, evidentemente, do conteúdo da percepção do social e não da forma fragmentada das notícias.) Quando se diz que o jornalismo deve se ater "exclusivamente aos fatos" está implícito um determinado critério de elaboração mental alicerçado na cosmovisão e na ideologia burguesas. A compreensão da informação jornalística sob outro ângulo ideológico, ou seja, como apreensão de uma realidade não reificada, reconhecendo seu processo dialético e apostando em suas melhores possibilidades, exige que o mundo seja entendido como produção histórica em que se constroem e se revelam sujeito e objeto. Exige uma perspectiva revolucionária.

         No entanto, o esforço de alguns no sentido de extrair uma teoria do jornalismo de escritos ocasionais dos autores clássicos do marxismo está fadado ao fracasso. Ao tempo de Marx, o objeto a que estamos nos referindo (o "jornalismo informativo") mal estava nascendo, a rigor, era ainda "invisível" para a teoria. Pretender que ele possa ter desvendado o fenômeno seria a mesma coisa que imaginar o nascimento da economia politica, como ciência autônoma, antes do desenvolvimento do modo de produção capitalista, ou seja, antes que o seu objeto existisse autonomamente.

         Por outro lado, a Rússia, mesmo no século XX, ainda era um país atrasado em termos capitalistas. Além disso, o fato de estar em curso uma revolução burguesa condicionava a vanguarda socialista a pensar na imprensa exclusivamente sob o ângulo da intervenção político-ideológica direta. O problema do "jornalismo informativo" só vai surgir depois da Revolução. E, assim mesmo, ele é apenas percebido precariamente por Lênin e Trótski, sendo tratado de modo incipiente e circunstancial.

         As opiniões de Lênin sobre a imprensa, antes da tomada do poder, oscilavam segundo as necessidades políticas de organização, discussão teórico-ideológica ou propaganda e agitação de massas. Os fatos deveriam servir como objeto de análise ou como ilustração para as denúncias políticas.

         Nesse período, ele captou o grande potencial revolucionário da imprensa, enquanto instrumento de organização da vanguarda e como ligação desta com os segmentos avançados das massas. Por isso, Lênin é o mais legítimo sucessor - agora do ponto de vista do proletariado revolucionário - da tradição do jornalismo político da burguesia em sua luta contra a aristocracia feudal.

         Após a Revolução, entretanto, ele parece observar que algo mais específico foi introduzido pelo jornalismo, tanto no que diz respeito às técnicas quanto ao gênero das informações. Num artigo do Pravda, em 20 de setembro de 1918, ele conclama:

         "Por qué no decir en 20 ó 10 renglones lo que ocupa 200 ó 400; cosas tan simples, notorias, claras, suficientemente conocidas ya por la masa como la ruin traición de los mencheviques lacayos de la burguesia, como la invasión de los ingleses y japoneses para restablecer los sagrados derechos del capital, como las amenazas de los multimilonarios norteamericanos que muestran los dientels e los alemanes, etc., etc.? Es necesario hablar de elo, señalar cada hecho nuevo, pero no se trata de escribir artículos, repetir argumentos, sino de destacar en unos pocos renglones, 'en estilo telegráfico', las nuevas manifestaciones de esa vieja política, ya conocida y caracterizada".

         E acrescenta adiante: "Más economia. Pero no en forma de argumentos ‘generales’, ensayos científicos, estruturas intelectuales y absurdos por el estilo, como por desdicha ocurre con demasiada frecuencia. Necesitamos reunir hechos sobre Ia construcción real de la nueva vida, verificarlos en detalle (grifos no original) y estudiarlos".

         Lênin chega, inclusive, a colocar a questão do cotidiano. "Prestamos poça atención a lo cotidiano (grifo no original) en Ia vida interna de las fábricas, en el campo y el ejército, y allí es donde se construye en mayor medida lo nuevo, lo que merece fundamental atención, difusión, que debe ser criticado desde el punto de vista social, combatendo los defectos y llamando a aprender de los mejores ejemplos".

         Não obstante, quem apontou mais agudamente que o fenômeno jornalístico implicava uma forma nova de abordar a realidade, mesmo sem apreendê-lo teoricamente, foi Trótski. No seu livro Questões do modo de vida, escrito após a Revolução Russa, ele recomenda aos jornalistas soviéticos:

         "Caros colegas jornalistas, o leitor suplica-vos que evitem dar-lhes lições, fazer-lhes sermões, dirigir-lhes apóstrofes ou ser agressivos, mas antes que lhes descrevam e expliquem clara e inteligentemente o que se passou, onde e como se passou. As lições e exortações ressaltarão por si mesmas... Um jornal não tem o direito de não se interessar pelo que interessa às massas, à multidão operária. . . É indubitável que, por exemplo, os processos e o que se chama os faits divers - desgraças, suicídios, crimes, dramas passionais, etc. - sensibilizam grandemente largas camadas da população. E isso por uma razão muito simples: são exemplos expressivos da vida que se faz."

O jornalismo e a "consumação da liberdade"

         Para que se possa compreender as potencialidades que são liberadas pelo jornalismo, as carências que ele vem suprir no processo histórico global, é preciso perceber que está em jogo uma nova dimensão do relacionamento entre o indivíduo e o gênero humano. Uma dimensão que foi inaugurada pelo desenvolvimento da sociedade capitalista, mas equacionada segundo os interesses particulares da classe dominante. Assim, sob a capa da ideologia e da manipulação que ela procura imprimir ao processo, surge uma modalidade de conhecimento - uma forma de conhecimento e uma estrutura de comunicação -, que deve ser compreendida e recuperada na perspectiva revolucionária e no sentido humanizador.

         "A individualidade - ensina Lukács - já aparece como categoria do ser natural, assim como o gênero. Esses dois pólos do ser orgânico podem se elevar a pessoa humana e o gênero humano no ser social tão-somente de modo simultâneo, tão-somente no processo que torna a sociedade cada vez mais social".

         A transformação plena da mera individualidade em "pessoa humana" e do simples gênero em "ser social" supõe a progressiva socialização objetiva da sociedade, coisa que o capitalismo já implementou. A integração radical do indivíduo e do gênero, a mútua dependência e penetrabilidade, as amplas e complexas mediações entro um e outro, enfim, a nova dinâmica que emergiu com o capitalismo entre o singular, o particular e o universal - tudo isso, significa que as condições para a transformação da individualidade em "pessoa" e do gênero em "humanidade" estão concretamente colocadas.

         Para realizá-la, além das barreiras políticas e sociais que devem ser removidas, é necessário que cada indivíduo tenha acesso à imediaticidade do todo no qual está inserido. E que possa participar, de forma imediata, na qualificação desse todo em cada momento no qual ele está se constituindo como algo novo. As influências que os fatos mais distantes exercem entre a vida dos indivíduos de todo o planeta não esperam, nem deveriam esperar, interpretações "técnicas" ou "científicas" oficiais ou autorizadas. Na maioria dos casos elas são quase instantâneas. Por isso, os indivíduos precisam viver tais fenômenos como algo pessoal, pela feição indeterminada e inovadora do singular, como realidade que está se desenrolando, se autoproduzindo e que não apresenta um sentido fechado e nitidamente delimitado. Tal como vai germinando a árvore verde da vida.

         Quando ainda jovem, Marx observou: "A imprensa em geral é a consumação da liberdade humana". Todos sabemos que as reflexões do jovem Marx nesses escritos sobre a imprensa estão marcadas pelo idealismo hegeliano. Democrata-revolucionário, ele parte de uma essência humana pressuposta racionalmente para denunciar a autocracia. A "verdadeira lei", a 'liberdade" e o "Estado" são as categorias prioritárias para sua crítica das leis reais, da falsa liberdade e do Estado autocrático. Porém, há nessas reflexões uma sugestiva preocupação ontológica. Se invertermos a sentença citada teremos uma tese que aponta claramente o sentido que percorreu este trabalho: "A consumação da liberdade humana exige o desenvolvimento da imprensa em geral". Vale acrescentar: em especial, do jornalismo. Para pensar e atuar efetivamente como sujeito individual e social no interior do gênero humano - para tornar-se uma "pessoa", na acepção dada por Lukács -, o homem precisa viver amplamente, e não apenas através das mediações particulares e universais da arte e da ciência, a totalidade do mundo humano pelas determinações significativas do singular. A realização do comunismo, portanto, não pode ser pensada sem o pleno desenvolvimento dessa forma social de apropriação da realidade a que chamamos "jornalismo informativo".

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