Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987. pp. 183-202. [Ref.: T196]

CAPÍTULO IX

O segredo da pirâmide ou
a essência do jornalismo:

         A crítica da "ideologia da objetividade" é feita por muitos autores. Porém, em geral, ela não vai ao fundo da questão, resumindo-se a aspectos sociológicos e psicológicos referentes à inevitabilidade da opinião. É o caso de Hector Mujica, quando afirma que toda a informação "tiene un contenido, una carga de opinión que deriva de las actitudes y opiniones de las personas que la proporcionan y de las actitudes y opiniones de quien la escribe". Esse tipo de crítica não atinge os aspectos ontológicos e epistemológicos do problema. Pode-se, a partir de tais críticas, propor a busca da maior objetividade e imparcialidade possíveis, embarcando no mesmo simplismo da ideologia do jornalismo burguês que se pretendia combater.

         Muitos entre aqueles que se colocam numa perspectiva crítica em relação ao capitalismo não conseguem se livrar do mito que mais combatem: a "informação objetiva". Em geral fecham a porta da frente e deixam entreaberta a porta dos fundos, por onde penetra sinuosamente a idéia irresistível da objetividade pura finalmente revelada. Ciro Marcondes Filho é um deles. A idéia de uma informação objetiva - pelo menos enquanto meta - é acalentada pelo autor como possibilidade teórica, embora reconheça a impossibilidade de realizá-la plenamente. Esta objetividade estaria situada num plano relativista, a partir de um distanciamento crítico dos interesses e enfoques parciais.

         Diz Marcondes Filho que "uma objetividade possível (enquanto meta) só poderia ser conseguida, ainda concordando com Cavalla, com a busca da informação como aquela que evita a denúncia de sofismas, instrumentos de persuasão ocultos, afirmações injustificadamente peremptórias; que difunde outras i nterpretações dos fatos diferentes dos dominantes, a fim de mostrar o caráter meramente parcial e hipotético dos mesmos; que declara explicitamente o caráter questionável da própria escolha e da própria valoração".

         A maioria dos autores reconhece que a objetividade plena é impossível no jornalismo, mas admite isso como uma limitação, um sinal da impotência humana diante da própria subjetividade, ao invés de perceber essa impossibilidade como um sinal da potência subjetiva do homem diante da objetividade.

A construção social dos fatos jornalísticos

         Assim como cada disciplina científica constrói os fatos com os quais trabalha, a notícia é a unidade básica de informação do jornalismo. São os fatos jornalísticos, objeto das notícias, que constituem a menor unidade de significação. O jornalismo tem uma maneira própria de perceber e produzir "seus fatos". Sabemos que os fatos não existem previamente como tais. Existe um fluxo objetivo na realidade, de onde os fatos são recortados e construídos obedecendo a determinações ao mesmo tempo objetivas e subjetivas.

         Isso quer dizer que há certa margem de arbítrio da subjetividade e da ideologia, embora limitada objetivamente. A objetividade oferece uma multidão infinita de aspectos, nuances, dimensões e combinações possíveis para serem selecionadas. Além disso, a significação dos fenômenos é algo que, constantemente, vai se produzindo pela dialética dos objetos em si mesmos quanto da relação sujeito-objeto.

         O material do qual os fatos são constituídos é objetivo, pois existe independente do sujeito. O conceito de fato, porém, implica a percepção social dessa objetividade, ou seja, na significação dessa objetividade pelos sujeitos. Essa premissa materialista pode ser desdobrada dialeticamente em determinadas teses que são importantes para a discussão do jornalismo:

         a) A própria realidade objetiva é, em certa medida, indeterminada. O universo é probabilístico, como já o demonstrou a física moderna. A sociedade, como parte desse universo, tomada enquanto simples objetividade, também é probabilística. Contudo, além de ser objetiva, ela envolve sujeitos humanos enquanto processo de autocriação consciente, isto é, o reino da liberdade. Assim, a realidade social deve ser entendida como totalidade concreta, como transformação da possibilidade e probabilidade em liberdade através da criação e superação permanente de necessidades por meio de trabalho.

         b) O conhecimento constitui-se como processo infinito. Não é possível conhecer exaustivamente sequer uma parte da realidade, pois isso implicaria conhecer todo o universo e o conjunto de relações com a parte considerada. E não se pode admitir, nem mesmo teoricamente, o conhecimento integral do todo, já que ele é uma "totalidade em processo de totalização", autoprodução permanente e eterna.

         c) No caso da realidade histórico-social há outra questão: os sujeitos humanos, com sua margem de arbítrio sobre o curso dos fenômenos, participam conscientemente na indeterminação objetiva do universo, à medida mesmo que podem determiná-lo subjetivamente. Desse modo, o conhecimento "científico" da sociedade contém, intrinsecamente, a subjetividade como dimensão inseparável do objeto e da teoria que busca apreendê-lo. Isso significa que o conhecimento sobre a realidade histórico-social é sempre comprometido politicamente, pois ele se configura solidário com certas possibilidades do real e adversário de outras. Se o conhecimento das ciências naturais tende a expressar a objetividade, embora jamais consiga ser exaustivo, o conhecimento da sociedade converge para o momento de mútua criação entre a objetividade e a subjetividade, tendo a práxis como seu verdadeiro critério. Pelo conhecimento da práxis, a objetividade pode ser revelada em seu movimento, como tendências e possibilidades concretas. A subjetividade, então, reconhece-se a si mesma e toma consciência das suas limitações e potencialidades.

         d) A relação sujeito-objeto é uma relação na qual o sujeito não só produz o seu objeto como também é produzido por ele. Ao produzir-se livremente nos limites da objetividade, ele produz a própria objetividade do mundo. Ou seja, o homem não só escolhe o seu destino ao atuar objetivamente sobre o mundo, mas também transforma o mundo à medida que escolhe seu destino, pois ele mesmo - corpo e espírito - é parcela desse mundo.

         e) Os fatos jornalísticos são um recorte no fluxo contínuo, uma parte que, em certa medida, é separada arbitrariamente do todo. Nessa medida, é inevitável que os fatos sejam, em si mesmos, uma escolha. Mas, para evitar o subjetivismo e o relativismo, é importante agregar que essa escolha está delimitada pela matéria objetiva, ou seja, por uma substância histórica e socialmente constituída, independentemente dos enfoques subjetivos e ideológicos em jogo. A verdade, assim, é um processo de revelação e constituição dessa substância. Vejamos um exemplo extremo: ocorreu um fato que envolve Pedro e João, no qual o último resultou mortalmente ferido por um tiro disparado pelo primeiro. Posso interpretar que Pedro "matou", "assassinou" ou "tirou a vida de João". Ou, ainda, que Pedro apenas executou, sob coação, um crime premeditado por terceiros. Não posso esconder, entretanto, que Pedro atirou contra João e que este resultou morto.

         Não há dúvida que a chamada "objetividade jornalística" esconde uma ideologia, a ideologia burguesa, cuja função é reproduzir e confirmar as relações capitalistas. Essa objetividade implica uma compreensão do mundo como um agregado de "fatos" prontos e acabados, cuja existência, portanto, seria anterior a qualquer forma de percepção e autônoma em relação a qualquer ideologia ou concepção de mundo. Caberia ao jornalista, simplesmente, recolhê-los escrupulosamente como se fossem pedrinhas coloridas. Essa visão ingênua, conforme já foi sublinhado, possui um fundo positivista e funcionalista. Porém, não é demais insistir, essa "ideologia da objetividade" do jornalismo moderno esconde, ao mesmo passo que indica, uma nova modalidade social do conhecimento, historicamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo e dotado de potencialidade que o ultrapassam.

         "A ideologia do evento expressa, na realidade, um feixe ideológico peculiar. Em primeiro lugar, tal ideologia propõe uma divisão da história extremamente rígida e previsível sob um véu de flexibilidade e inesperabilidade. A rigidez, e a previsibilidade se originam de uma suposição única: a história humana se constitui por uma-sucessão de 'fatos' que são uma alteração do estado anterior".

         A apreensão do senso comum, que corresponde à experiência cotidiana dos indivíduos, é dada pela significação meramente "funcional" no universo social vivido. Logo, em termos epistemológicos, a base na qual o fato será assentado e contextualizado tende a reproduzir de maneira latente a universalidade social tal como é vivida imediatamente. Não é por outro motivo que a ideologia das classes dominantes é normalmente hegemônica e o senso comum tende a decodificar os fatos numa perspectiva conservadora. Isso ocorre espontaneamente na sociedade, à medida que a reprodução social das pessoas, segundo padrões estabelecidos, aparece como se fosse, diretamente, a reprodução biológica de cada indivíduo. Assim, a "notícia crítica", que apanha os fatos numa perspectiva revolucionária, constitui a singularidade como algo que transborda sua relação meramente funcional com a reprodução da sociedade.

A história e os mitos sobre a pirâmide

         A primeira notícia redigida segundo a técnica da "pirâmide invertida" teria aparecido no The New York Times em abril de 1861. A partir da segunda metade no século XX, alguns dos mais importantes periódicos latino-americanos passaram a publicar notícias das agências norte-americanas, redigidas segundo esse modelo. Nesse período, essa técnica se espalhou gradativamente, tendo chegado no Brasil exatamente em 1950, pela iniciativa do jornalista Pompeu de Sousa.

         Alguns aceitam a tese de que a "pirâmide invertida" surgiu por uma deficiência técnica, um acaso que contemplou, ao mesmo tempo, o comodismo dos leitores e o interesse dos jornais em suprimir os parágrafos finais quando chegava um anúncio de última hora. "A narração cronológica - diz Eleazar Diaz Rangel -, que dominou o que poderia chamar-se toda uma primeira etapa na evolução da notícia, respeitava a ordem em que se sucederam os fatos e era necessário ler todo o relato para inteirar-se do que havia ocorrido. Para os novos leitores que a imprensa conquistou, resultava muito mais prático essa estrutura da "pirâmide invertida". Mais adiante, o autor complementa que o leitor, assim, informa-se brevemente e não pergunta pelas circunstâncias dos fatos. Essa nova estrutura da notícia não foi planejada para chamar o leitor à reflexão, mas apenas "para informá-lo superficialmente, para adormecê-lo, fazê-lo indiferente e evitar que pense".

         Deixemos de lado o simplismo da tese segundo a qual a "pirâmide invertida" teria nascido de uma circunstância tecnológica e se generalizado por comodismo ou para impedir a consciência crítica dos leitores. Vejamos um comentário crítico pertinente, lembrado pelo próprio Diaz Rangel: "De todos, o mais importante é aquele que diz que essa maneira de estruturar a notícia cria uma tendência a uniformizar os primeiros parágrafos, os leads, e desestimula a criatividade, e iniciativa dos repórteres".

         Sem dúvida, esse problema existe. Mas ele decorre muito mais da perspectiva empirista patrocinada pela "pirâmide invertida" e o lead - o que leva a maioria dos redatores a pensar que se deve sempre responder monótona e mecanicamente as famosas "seis perguntas" no primeiro parágrafo - do que realmente pela apreensão singularizada do fato, na qual o lead seria apenas a expressão mais aguda e sintética.

         A idéia da "pirâmide invertida" pretende encarnar uma teoria da notícia mas, de fato, não consegue. Ela é apenas uma hipótese racional de operação, uma descrição empírica da média dos casos, conduzindo, por esse motivo, a uma redação padronizada e não à lógica da exposição jornalística e à compreensão da epistemologia do processo. Somente uma visão realmente teórica do jornalismo pode, ao mesmo tempo que oferecer critérios para a operação redacional, não constranger as possibilidades criativas mas, ao contrário, potencializá-las e orientá-las no sentido da eficácia jornalística da comunicação.

         De fato, o lead, como momento agudo, síntese evocativa da singularidade, normalmente deverá estar localizado no começo da notícia. Porém, nada impede que ele esteja no segundo ou até no último parágrafo, como demonstram certos redatores criativos.

         A tese da "pirâmide invertida" quer ilustrar que a notícia caminha do "mais importante" para o "menos importante". Há algo de verdadeiro nisso. Do ponto de vista meramente descritivo, o lead, enquanto apreensão sintética da singularidade ou núcleo singular da informação, encarna realmente o momento jornalístico mais importante. Não obstante, sob o ângulo epistemológico - que é o fundamental - a pirâmide invertida deve ser revertida, quer dizer, recolocada com os pés na terra. Nesse sentido, a notícia caminha não do mais importante para o menos importante (ou vice-versa), mas do singular para o particular, do cume para a base. O segredo da pirâmide é que ela está invertida, quando deveria estar como as pirâmides seculares do velho Egito: em pé, assentada sobre sua base natural.

         Podemos considerar, para efeito de uma demonstração gráfica, que o triângulo equilátero fornece o modelo da estrutura epistemológica da menor unidade de informação jornalística: a notícia diária (Fig. A). Tomaremos essa figura como referência para indicar suas variações. A igualdade dos três ângulos indica um equilíbrio entre a singularidade do fato, a particularidade que o contextualiza e, com base nessa relação, uma certa racionalidade intrínseca que estabelece seu significado universal.

         Essa racionalidade pode ser contraditória com a positividade do social, se for elaborada numa perspectiva crítico-revolucionária, ou funcional em relação a essa positividade, o que definirá seu caráter conservador. Sempre que um fato se torna notícia jornalística, ele é apreendido pelo ângulo da sua singularidade, mas abrindo um determinado leque de relações que formam o seu contexto particular. É na totalidade dessas relações que se reproduzem os pressupostos ontológicos e ideológicos que direcionaram sua apreensão.

         O que o triângulo equilátero quer representar, portanto, não é o conteúdo ideológico da notícia, como se a estrutura jornalística que ele pretende indicar coincidisse, necessariamente, seja com a "notícia funcional" ao sistema, seja com a "notícia crítica" em relação a ele. Uma notícia diária, considerada conforme a natureza do veículo e a maneira como se insere no "sistema jornalístico", pode atingir certo equilíbrio entre a singularidade e particularidade - obtendo um certo nível de eficácia jornalística - independentemente do seu conteúdo ideológico. Aqui entra em jogo não apenas o problema de uma linguagem adequada, mas, principalmente, o enfoque epistemológico que vai presidir essa linguagem e permitir sua eficácia. Há um grau mínimo de conhecimento objetivo que deve ser proporcionado pela significação do singular (pelo singular-significante), que exige um mínimo de contextualização do particular, para que a notícia se realize efetivamente como forma de conhecimento. A partir dessa relação minimamente harmônica entre o singular e o particular, a notícia poderá - dependendo de sua abordagem ideológica - tornar-se uma apreensão crítica da realidade.

         Falseando essa necessidade estrutural elementar, o sensacionalismo é, inevitavelmente, conservador e até profundamente reacionário, mesmo quando se tenta instrumentalizá-lo com intenções democráticas ou socialistas. Porém, mesmo quando a notícia atinge essa relativa harmonia entre o singular e o particular (representada pelo triângulo equilátero), ela pode ainda situar-se na perspectiva da ideologia dominante, como é o caso da maioria das notícias produzidas pelos jornais "sérios" da grande imprensa. Mas há uma tendência histórica subjacente à "lógica jornalística" - lembremos que ela é fruto dos interesses burgueses e também de "necessidades sociais profundas" - no sentido de um conflito potencial com a mera reprodução ideológica das relações vigentes.

         A partir dessa referência (puramente convencional e conveniente) ao triângulo equilátero como padrão estrutural da notícia diária, é possível sugerir duas variações. Primeiro, um triângulo isósceles com a base menor que os lados (Fig. B), representando a notícia sensacionalista, ou seja, excessivamente singularizada. Depois, o caso oposto: um triângulo isósceles com a base maior que os lados, representando a abertura de um ângulo de generalização maior do singular ao particular (Fig. C). Aqui, teremos uma abertura que será inversamente proporcional tanto ao público quanto ao ciclo de reprodução da matéria. Um jornal semanal (ou um programa jornalístico na TV de igual periodicidade) não deverá elaborar suas notícias e informações na estrutura do triângulo equilátero.

         O contexto de particularização que vai atribuir o próprio significado ao singular ou, noutras palavras, que vai construir o fato jornalístico, deverá ser mais amplo e rico em conexões. Um jornal mensal terá de abrir ainda mais esse ângulo de contextualização e generalização, aumentando, portanto, a base do triângulo (Fig. D). Seguindo o caminho dessa representação, podemos ilustrar graficamente como os pressupostos ontológicos e ideológicos que orientaram a apreensão e construção do fato jornalístico, geralmente de modo espontâneo e não consciente, são sugeridos e projetados através da notícia (Fig. E).

         

x - O núcleo singular da notícia.
y - A base de contextualização particular.
x' -Os pressupostos ontológicos e ideológicos que orientaram a produção da notícia.
y' - A projeção ideológica e ontológica que emana ou é superior pela notícia.

         A necessidade do lead como epicentro do singular

         Hohemberg afirma que "há um mal-entendido básico sobre a pirâmide invertida". E acrescenta: "Os jornalistas inexperientes supõem que ela sempre separa os fatos na ordem de importância, com o fato principal no topo da pirâmide. Não é bem assim. Geralmente há diversos acontecimentos que devem ser coordenados para estruturar um lead detalhado, cada um deles documentado no topo da matéria".

         O autor consegue intuir que nem tudo é tão preciso no modelo da "pirâmide invertida", embora sem apontar o motivo. O problema é que a "pirâmide invertida" corresponde a uma descrição formal, empírica, que nem sempre corresponde à realidade, exatamente porque não capta a essência da questão. Não se trata, necessariamente, de relatar os fatos mais importantes seguidos dos menos importantes. Mas de um único fato tomado numa singularidade decrescente, isto é, com seus elementos constitutivos organizados nessa ordem, tal como acontece com a percepção individual na vivência imediata. O processo de conhecimento teórico, como indicou Marx, vai do abstrato ao concreto. A imediaticidade da percepção, no entanto, vai da forma ao conteúdo, do fenômeno à essência, do singular ao geral. O lead funciona como princípio organizador da singularidade. A rigor, ele pode, inclusive, não estar localizado no início da notícia, embora isso seja o mais comum. Sua localização no começo da notícia corresponde ao processo de percepção em sua ordem mais natural, pois toma como ponto de partida o objeto reconstituído singularmente para, a seguir, situá-lo numa determinada particularidade.

         O lead é uma importante conquista da informação jornalística, pois representa a reprodução sintética da singularidade da experiência individual. As formulações genéricas são incapazes de reproduzir essa experiência.

         O caráter pontual do lead, sintetizando algumas informações básicas quase sempre no início da notícia, visa à reprodução do fenômeno em sua manifestação empírica, fornecendo um epicentro para a percepção do conjunto. É por esse motivo que o lead torna a notícia mais comunicativa e mais interessante, pois otimiza a figuração singularizada da reprodução jornalística. Eventualmente, como foi dito, esse momento mais agudo da síntese pode estar localizado no segundo parágrafo, no meio ou mesmo no fim da notícia, obtendo-se efeito semelhante.

         De qualquer modo, a reprodução jornalística não pode decompor analiticamente um evento a ponto de destruir sua forma de manifestação. É no corpo mesmo do fenômeno que a notícia insinua o conteúdo, sugere uma universalidade através da significação que estabelece para o singular no contexto do particular. Na face do singular, através da mediação do particular, o universal se mostra num claro-escuro, como indícios, sugestões e pálidas imagens, que constituem a herança deixada pelos pressupostos filosóficos e ideológicos que presidiram a apreensão e reprodução do fenômeno. De fato, essa conexão com a particularidade é fundamental para a definição do conteúdo.

         O jornal sensacionalista, por exemplo, singulariza os fatos ao extremo. Esse singular, no entanto, não fica destituído de sua significação já que, de maneira subjacente, ele envolve um contexto de particularidade e uma sugestão universal. A singularidade extrema pressupõe e reforça as categorias do próprio senso comum, quer dizer, a predominância da ideologia burguesa. A percepção do mundo como um agregado de coisas e eventos independentes, do livre-arbítrio metafísico como pressuposto das ações individuais, da "norma" e o "desvio" como padrões éticos de referência, a concepção mística do acaso e do destino, as idéias de "ordem" e "perturbações" como categorias da análise social, a impressão de naturalidade e eternidade das relações sociais vigentes, tudo isso já está contido no senso comum e é reproduzido e reforçado pela radicalização do singular. Não apenas enquanto omissão, mas como presença real - embora subjacente - no tecido da singularidade extrema.

         Não é por acaso que esse tipo de jornalismo recebe o nome de sensacionalista. Se a informação jornalística reproduz as condições de uma "experiência imediata", as sensações têm um importante papel nessa forma de conhecimento. Aliás, o que o jornalismo busca é uma forma de conhecimento que não dissolva a "sensação da experiência imediata", mas que se expresse através dela. Porém, na singularização extrema, isto é, no sensacionalismo, ocorre uma distorção do concreto através dos seus aspectos sensíveis no contexto da percepção e da apropriação subjetiva. A sensação assume um papel destacado na reprodução da realidade e o fundamento histórico e dialético do fenômeno, ao invés de ser sugerido, é diluído na superfície do sensível.

         A singularidade transforma-se no conteúdo que, dessa forma, afirma a reprodução, o mundo como algo dado. Ao propor a singularidade radical, ou seja, o aspecto sensível do fenômeno como conteúdo, a universalidade que se reforça é a mesma subjacente ao senso comum, que vê o mundo preponderantemente como positividade. A singularização extrema, em si mesma, possui um conteúdo conservador. Além disso, os jornais sensacionalistas geralmente produzem um discurso de reforço dos valores, como meio para excitar não apenas as sensações como também os preconceitos morais do público.

A reportagem e a velha questão do "novo jornalismo"

         É preciso buscar um conceito de reportagem que não seja apenas "operacional" para o editor. Quase sempre ela é considerada como uma "notícia grande" ou matéria que exige investigação mais demorada, sem considerações de ordem epistemológica capazes de esclarecer sua essência como modalidade jornalística.

         Nilson Lage classifica reportagem como investigação (que parte de um fato para revelar outros que estão ocultos, um perfil ou situação de interesse); interpretação, em que um conjunto de fatos é analisado na perspectiva metodológica de uma ciência, especialmente sociológica e econômica (seria pertinente acrescentar "antropológica" ao enfoque de Lage); ou literária, que por tais métodos, busca revelar algo essencial de modo que não seja teórico-científico.

         Porém, o essencial na reportagem, e que estabelece um nexo entre aqueles aspectos apontados por Nilson Lage, é que a particularidade (enquanto categoria epistemológica) assume uma relativa autonomia ao invés de ser apenas um contexto de significação do singular. Ela própria busca sua significação na totalidade da matéria jornalística, concorrendo com a singularidade do fenômeno que aborda e dos fatos que o configuram. Essa significação autônoma pode ser estética (como em " À Sangue Frio", de Truman Capote, para citar um exemplo extremo), teórico-científica (como numa reportagem sobre mortalidade infantil utilizando estatísticas ou outros métodos das ciências sociais) ou informativa (como no caso das revistas semanais que, muitas vezes, contam a "história da notícia" a que o público já assistiu pela TV e leu nos jornais diários, com maior riqueza de nuances e detalhes, fornecendo um quadro mais complexo da situação na qual o fato foi gerado).

         Na reportagem, a singularidade atinge a particularidade sem, no entanto, superar-se ou diluir-se nela. Fenômeno semelhante ocorre na arte, tal como foi discutido no capítulo VII. Mas essa preservação do singular pode se dar, na reportagem, não só numa totalidade estética como igualmente numa totalidade sintético-analítica, que tanto pode propiciar um nível de apreensão teórico-científica propriamente dita, como simplesmente intuitiva. No caso da apreensão teórico-científica, por exemplo, teríamos a reportagem já referida sobre a mortalidade infantil, utilizando métodos ou categorias das ciências sociais. No caso de uma apreensão intuitiva teríamos uma reportagem contando como nasceu o "Plano Cruzado", por exemplo, desde sua concepção, passando pelos corredores da Fundação Getúlio Vargas e chegando num certo café da manhã do Presidente da República onde teria sido tomada a decisão. A reportagem não nega a preponderância da singularidade no jornalismo em geral, mas implica um gênero no qual se eleva do singular uma particularidade relativamente autônoma que coexiste com ele.

         A questão das relações entre o jornalismo e a literatura ou, mais amplamente, entre o jornalismo e a arte sempre gerou divergências. O problema não é saber se o jornalismo envolve ou pode envolver a literatura e a arte - o que parece ser consenso -, mas se ele é ou não um gênero artístico ou literário. A rigor, qualquer atividade humana (inclusive as mais prosaicas) torna-se grande quando condimentada pelo talento artístico. A arte penetra as ciências e a filosofia, a tecnologia e a religião. Com o jornalismo não poderia ser diferente. Portanto, não é o caso de perguntar se o talento literário ou artístico pode contribuir para o exercício da atividade jornalística.

         O fato do jornal impresso estar ligado historicamente à expansão da literatura, a interpenetração entre um e outro (através dos folhetins e da participação dos escritores nos jornais), a mútua influência entre as técnicas jornalísticas e literárias, tudo isso criou uma confusão que ainda persiste.

         Um escritor pode fazer uma notícia ou uma reportagem excepcional, se dominar a lógica jornalística. Um jornalista competente é capaz de fazer uma boa notícia ou uma reportagem interessante, mesmo sem talento artístico. O aspecto decisivo, no entanto, é que nem o jornalista será capaz de escrever um bom romance se não tiver talento literário, nem o escritor poderá fazer uma boa reportagem se desconhecer as técnicas jornalísticas.

         O "novo jornalismo" que apareceu nos Estados Unidos na década de 60, trouxe elementos literários da novela norte-americana: Hemingway, Faulkner, Steinbeck, John dos Passos e outros. Seus criadores foram jornalistas que se consideravam novelistas frustrados ou então "escritores de futuro". Segundo Tom Wolfe, eles passavam dias inteiros, semanas, com as pessoas sobre as quais estavam escrevendo. Pretendiam reunir todo o material que pudesse interessar a um jornalista e, ainda, ir mais adiante. Queriam estar presentes durante os acontecimentos, em intimidade com os fatos, para captar diálogos, expressões faciais e outros detalhes do ambiente. Além de fornecer uma descrição objetiva completa, pretendiam oferecer algo que os leitores encontravam apenas na literatura: uma vivência subjetiva e emocional junto aos personagens.

         Como se pode notar pelo depoimento de Tom Wolfe , o "novo jornalismo" recorreu às formas literárias para obter um reforço da reportagem, para dizer algo que não estava sendo dito pelas formas usuais do jornalismo e que, por tais formas, seria quase impossível dizê-lo. O particular estético - ou o típico - permitia, então, a percepção de certos aspectos que o simples relato jornalístico cristalizado na singularidade não comportava.

         Porém, mesmo nesse gênero de reportagem que deliberadamente se socorreu da literatura, o típico não funciona como categoria preponderante, embora ele seja alcançado nos melhores casos. O recurso literário, aqui, é um instrumento para a dramatização do acontecimento e a revelação mais explícita - e não apenas insinuada ou pressuposta - do conteúdo universal do fenômeno reproduzido. Se a preponderância do singular, no jornalismo, permite ao redator da notícia diluir-se no público, dissimular-se entre os espectadores, a conquista do típico pela reportagem literária conduz o espectador a vivenciar os personagens e as situações como se fosse partícipe do acontecimento. Contudo, de maneira ainda mais evidente do que na arte, ele não deixa de ser um espectador, pois sabe que os fatos são reais e que ele não os viveu, embora pudesse tê-los vivido.

         Na arte, ao contrário, ele pode vivenciar a "realidade" dos fatos, personagens e situações como se fosse mesmo um participante, já que essa realidade não é mais do que um "sonho" do autor, que ele também pode sonhar. Sua participação, portanto, é tão "verdadeira" quanto a própria história relatada.

         Esse efeito da arte tradicional, segundo Brecht, é capaz de produzir uma catarse no espectador ao invés de conscientizá-lo, o que deveria ser superado pela arte revolucionária. Sem discutir o mérito mais geral dessa tese de Brecht, pode-se dizer que o "novo jornalismo" ou o jornalismo literário, que se situa na região fronteiriça entre a arte e o jornalismo, consegue (talvez sem o saber) um resultado semelhante ao "distanciamento brechtiano". Aliás, não é por acaso que as obras dessa fase de Brecht utilizam-se de certas técnicas do jornalismo moderno. A indiscutível eficácia revolucionária de tais obras e, igualmente, do jornalismo literário realizado com o talento que o gênero exige deve-se, sobretudo, ao fato de que despertam uma percepção da realidade que sintetiza - de maneira equilibrada - aspectos lógicos e emocionais. O espectador sente-se como participante e testemunha de fatos reais. Porém, depois do mestre, a "arte brechtiana", na maioria das vezes, se transformou numa caricatura insípida.

         Quanto ao jornalismo literário, as boas exceções confirmam a regra: não vale a pena substituir um bom jornalismo por má literatura. Sem dúvida, trata-se de um gênero muito difícil, pois exige uma superposição do talento literário e de apuradas técnicas de investigação e redação jornalística, uma vez que o resultado deve articular harmonicamente os efeitos estéticos e jornalísticos, sem que um supere o outro. Logo, não se trata de um caminho que possa ser generalizado como substitutivo da arte ou do jornalismo, pois ele se constitui precisamente na difícil confluência de dois gêneros relativamente autônomos.

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