Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987. pp. 165-182. [Ref.: T196]

CAPÍTULO VIII

Capitalismo e jornalismo:
convergências e divergências

         Foi na segunda metade do século XIX que, na Europa e nos Estados Unidos, ocorreram grandes transformações na imprensa, coincidindo com a expansão mundial do capitalismo e o aparecimento de inovações tecnológicas ligadas direta e indiretamente à reprodução e circulação das informações. Nesse período, o jornalismo sofreu modificações profundas. "Até então o jornalismo era um instrumento nas lutas sociais e políticas, identificado com os partidos, difusor de opiniões, escritos em estilo literário, que apenas reservava espaço para a informação".

         O capitalismo lançava as bases materiais e sociais para um novo tipo de jornalismo.

         "Alguns inventos e inovações tecnológicas, como o telégrafo (l840), a rotativa (l864), o cabo submarino (l850), a expansão das linhas férreas (l928-1850), a linotipo (l886), o aperfeiçoamento da fotografia (l897), permitiram melhorar o jornalismo e produzi-lo em menos tempo. O crescimento da população urbana, a diminuição do analfabetismo e o desenvolvimento do correio contribuíram para aumentar o número de leitores. A utilização dos avanços técnicos e o aumento da circulação, que foi impulsionado com a baixa do preço do exemplar, aumentaram sensivelmente os gastos. O próprio desenvolvimento do capitalismo mostrou a solução através da publicidade. Os anunciantes se encarregariam de financiar os custos".

         Estava nascendo o jornalismo informativo ou, se preferirmos, o "jornalismo por excelência". A idéia simplista de que "os fatos são sagrados" e de que a opinião pertence a uma órbita autônoma, tornou-se a expressão prosaica do que viria a ser a " ideologia da objetividade", marcando o fim de uma época na qual a notícia sempre se escrevia entremeada de comentários e salpicada de adjetivos. Também os temas da notícia vão mudando gradualmente. Ao lado das questões políticas, econômicas, literárias ou científicas, surgem as informações sobre acontecimentos banais que, cada vez mais, despertam interesse nos novos leitores e ocupam um espaço crescente nos jornais.

         Na América Latina, esse processo está ligado, como indica Fernando Reyes Matta, à dependência informativa que se gerou com base na integração e subordinação econômica, política e cultural aos Estados Unidos. Desde o final do século XVIII, quando nasceu - diz o referido autor -, a imprensa latino-americana era entendida como uma corrente de opinião, tendo se constituído em expressão significativa das lutas pela independência e libertação nacional. No século passado, quando a imprensa norte-americana já tinha um caráter sensacionalista, a imprensa latino-americana seguia seu estilo literário e opinativo. A partir dos anos trinta, com a presença mercante do rádio, começa a impor-se o conceito de notícia objetiva. Principalmente pela integração econômica, cultural e política crescente da América Latina, o que se produzia era uma crescente dependência informativa. Em 1920, a United Press (hoje UPI) conseguiu seu primeiro acordo com o diário La Prensa de Buenos Aires.

         A tonalidade nacionalista dos argumentos de Reyes Matta deixa transparecer, no entanto, mais do que a simples constatação do fato histórico. Ele pretende sugerir, ao que parece, que teria ocorrido uma arbitrária importação cultural e, através dela, a ruptura de uma tradição que poderia (ou até deveria) ser preservada para sempre, não fosse a dominação imperialista. Na verdade, o processo de expansão imperialista dos Estados Unidos e a conseqüente subordinação econômica, política e cultural da América Latina coincide, em linhas gerais, com o processo de urbanização e industrialização dos países mais adiantados do continente. Para esses países - entre os quais se inclui o Brasil - a subordinação ao imperialismo correspondeu a uma forma de integração no contexto mundial do capitalismo e da civilização que ele patrocinou. Por isso, em função também de condições internas e não apenas externas, o "conceito objetivo de notícia" acabaria se impondo - ainda que mais tarde -, por derivar de necessidades sociais geradas pelo desenvolvimento capitalista.

         Por trás dessa recusa do "conceito objetivo de notícia", que orienta o fazer jornalístico contemporâneo, está a tese de que o próprio jornalismo não passa de um epifenômeno do capital. Um exemplo que tipifica essa abordagem nos é dado, outra vez, por Marcondes Filho:

         "O aparecimento do jornal está subordinado ao desenvolvimento da economia de mercado e das leis de circulação econômica. Ou seja, o jornal surge como o instrumento de que o capitalismo financeiro e comercial precisava para fazer que as mercadorias fluíssem mais rapidamente e as informações sobre exportações, importações e movimento do capital chegassem mais depressa e mais diretamente aos componentes do circuito comercial".

         O problema é que essa tese, correta em seu sentido geral, vale tanto para o jornalismo como para o telégrafo, o automóvel, a televisão, a estrada de ferro, etc.

A cidadania real e a imaginária

         Embora só no século XIX tenham surgido alguns inventos que favoreceram diretamente o jornalismo, o papel apareceu no Ocidente no século XII, a imprensa em 1450 e os primeiros jornais (que ainda não eram diários) já circulavam no século XVI. Naturalmente, foram os banqueiros e os mercadores os primeiros interessados em receber e utilizar os jornais.

         Com a invenção de Gutemberg é que começam a se espalhar pela Europa (primeiro Itália e Alemanha), a partir do século XVII, as gazetas semanais. Embora tenham nascido, de fato, à sombra do interesse dos banqueiros e mercadores, essas gazetas semanais que se espalharam pela Europa (e foram precursoras do nascimento, ainda no século XVII, dos primeiros jornais diários) já apontavam para uma vocação emergente do jornalismo. "Para estes novos jornais, não se trata já unicamente de informar, mas de distrair e divertir um leitor mundano, cada vez mais culto e curioso. Promoções, anúncios e críticas de espetáculos, nomeações, poesias, enigmas e discursos acadêmicos, misturam-se aí, de uma página a outra". A diversificação indica a razão de fundo do sucesso dos jornais, que é aquilo que nos interessa situar. O público é cada vez mais "mundano" e curioso. É que esse público, com a universalização progressiva das relações mercantis e capitalistas, está cada vez mais ligado, efetivamente, a uma multiplicidade de fenômenos que ocorrem em todos os lugares e, de diferentes maneiras, passam a interferir na vida das pessoas.

         Referindo-se aos vários jornais periódicos que surgiram na Europa, todos na primeira metade do século XVII, Nilson Lage observa: "Basta reparar o breve intervalo entre essas datas para concluir que a imprensa periódica vinha atender uma necessidade social difusa". E acrescenta que, nesses jornais primitivos, já o incomum e o sensacional apareciam nos textos.

         Pode-se supor que essa distinção nítida entre as "notícias sérias" (sobre o comércio, espetáculos, acontecimentos oficiais, etc.) e aquelas sobre "curiosidades" ou fatos incomuns, o que parece ter atribuído uma ambivalência ao conteúdo desses jornais, possuía uma base histórico-social concreta. A dificuldade para captar o particular e o universal sob a égide do singular, isto é, dos "fatos", certamente está ligada a uma limitação histórica. No período do mercantilismo não havia ainda a dinâmica radical da conversão entre o singular, o particular e o universal. Os fatos apareciam como se fossem estanques, encerrados numa determinada dimensão da realidade. Por exemplo, uma decisão do governo poderia levar meses ou anos para interferir na vida de um indivíduo e gerar todas as suas conseqüências.

         A dinâmica radical desse processo somente vai ocorrer mais tarde, com o capitalismo. Portanto, o significado social dos fatos mais diversos não era evidente, já que eles apresentavam mediações obscuras, longínquas e até místicas com seus contextos particulares e com a totalidade histórico-social. Os significados sociais só se revelavam quando os fatos nasciam com uma cruz na testa, marcados pela autoridade dos acontecimentos econômicos, expressamente culturais ou datados e assinados pelo poder espiritual ou temporal.

         Somente mais tarde, a partir da segunda metade do século XIX, é que as relações sociais vão implantar uma nova dinâmica na complexa rede de determinações entre os indivíduos e a sociedade, condicionando uma série de obrigações e direitos que tensionam no sentido da igualdade formal como garantia da desigualdade real. "O sentido individual da leitura jornalística se situa, assim, ao nível da cidadania: condição imaginária do indivíduo na sociedade, o qual através desse procedimento se inteira daquilo que diz respeito ao meio de que é "sócio".

         Pode-se, aqui, apenas corrigir a afirmação de que a cidadania patrocinada pela sociedade burguesa é uma "condição imaginária". Ao contrário, a cidadania no capitalismo desenvolvido é, via de regra, uma relação histórica real e efetiva. O que é imaginário ou, mais precisamente, jurídico-formal é a igualdade que ela implica. A cidadania burguesa é constituída por relações efetivas entre os indivíduos, cuja base são as necessidades do capital de assalariar e submeter trabalhadores "livres".

         Na perspectiva marxista, essa cidadania apresenta, então, aspectos formais (relativos à igualdade) que devem ser concretizados e, de outro lado, aspectos concretos (exploração e opressão) que devem ser erradicados. Portanto, essa relação social envolve dimensões objetivas de universalidade que transcendem a sociedade burguesa e se projetam como exigência política revolucionária, situada historicamente na perspectiva da explicitação e autoprodução do gênero humano. E envolve, igualmente, aspectos particulares referentes à dominação de classe, que situam a estrutura social como politicamente antagônica às próprias possibilidades da totalidade. É o fenômeno que Lukács chamou de "centralidade ontológica do presente".

         Assim, a universalidade referida aqui nada tem a ver com a tese da "democracia como valor universal", defendida pelos eurocomunistas e outros que pretendem apenas reformar as instituições burguesas para transitar de modo ordeiro e pacifico ao reino do socialismo. As dimensões concretas da cidadania burguesa que apontam para o futuro, no sentido da verdadeira igualdade, estão assentadas nas relações de trabalho cada vez mais socializadas e na própria igualdade formal. Mas tanto uma como a outra estão inseridas numa totalidade cujas relações sociais são de exploração e opressão da grande maioria da sociedade pelos detentores do capital.

         A necessidade do jornalismo informativo envolve, portanto, essa contradição entre a cidadania real e, digamos, a "cidadania potencial" que é constituída pelo capitalismo. A cidadania burguesa implica uma situação prática e efetiva de universalidade dos indivíduos. Uma universalidade que, em graus variáveis, vai atingir a todos. Mas essa cidadania está comprometida com a desigualdade econômica, social e política. O jornalismo informativo encarna essa ambivalência, cuja explicação está na relação dialética entre a particularidade e universalidade do próprio modo de produção capitalista.

         Por um lado, o jornalismo vem suprir necessidades profundas dos indivíduos e da sociedade que, teoricamente, independem das relações mercantis e capitalistas, embora tenham sido necessidades nascidas de tais relações e determinadas por elas. Não se trata, então, de carências meramente subjetivas ou ideológicas dos indivíduos que, através do jornalismo, teriam reforçada sua "condição imaginária" de cidadania. Por outro lado, em virtude do caráter de classe da sociedade burguesa, o jornalismo cumpre uma tarefa que corresponde aos interesses de reprodução objetiva e subjetiva da ordem social.

         Nesse sentido, a jornalismo desempenha seu papel ideológico de reforçar também determinadas condições imaginárias de cidadania, preparando os indivíduos e as classes para a adesão ao sistema. Isso ocorre, tanto através da produção de um conhecimento que coincide com a percepção positivista que emana espontaneamente das relações reificadas do capitalismo, como pela reprodução e ampliação dessa percepção, a fim de garantir que a universalidade conquistada pelo capital continue sob a égide particular dos interesses capitalistas.

         É essa contradição que forma a base histórica para que o jornalismo seja um fenômeno ambivalente, já que esse conflito atravessa a lógica jornalística. É esse fenômeno que autoriza pensar num jornalismo informativo feito sob uma ótica de classe oposta e antagônica à ótica burguesa, assim como abre brechas para certas posturas críticas à ordem burguesa nos veículos controlados pelas classes dominantes. Esse último aspecto depende, não apenas da capacidade teórica e técnica do jornalismo, da sua ideologia e talento, mas também de uma dupla relação de forças: a luta política interna na redação e a luta mais ampla - e fundamental - pela influência e o controle sobre os meios de comunicação. São batalhas que se travam na redações e sindicatos das categorias, mas basicamente fazendo com que o movimento operário e popular assimile e adote bandeiras políticas vinculadas a essa questão.

A notícia como produto industrial

         Para uma abordagem teórica do jornalismo, é imprescindível delimitar com precisão o conceito de notícia, ao invés de generalizá-lo como fazem a maioria dos autores. Nilson Lage afirma que se considerarmos que "a notícia, no sentido mais amplo e desde o tempo mais antigo, tem sido o modo corrente de transmissão da experiência - isto é, a articulação simbólica que transporta a consciência do fato a quem não o presenciou - parecerá estranho que dela não se tenha construído uma teoria".

         A notícia jornalística não pode ser considerada como uma modalidade da informação em geral. Não foi a transmissão genérica da experiência - o que sempre ocorreu em sociedade - e sim a transmissão sistemática, por determinados meios técnicos, de um tipo de informação necessária à integração e universalização da sociedade, a partir da emergência do capitalismo, que deu origem à notícia jornalística.

         "Mudou, de fato, o modo de produção da notícia: crenças e perspectivas nela incluídas não são mais as do indivíduo que a produzia, mas da coletividade hoje produtora, cujas tensões refletem contradições de classe ou de cultura. Provavelmente uma boa razão para o descrédito contemporâneo de uma teoria da notícia se encontre no caráter coletivo, industrial, da produção desse bem simbólico".

         Ora, o motivo desse suposto descrédito apontado por Lage - o caráter coletivo e a produção industrial da notícia - é precisamente a consideração básica e preliminar para uma teoria do jornalismo e da notícia enquanto forma de conhecimento historicamente condicionada.

         O jornalismo, enquanto forma específica de transmissão de informações, requer um meio técnico apropriado capaz de multiplicar e transportar a mesma informação em proporções de espaço e tempo radicalmente diferentes da comunicação interpessoal direta ou dos métodos artesanais. Por isso, a "indústria da informação" surge como uma extensão da indústria propriamente dita e encontra nela sua base material, seu corpo de existência.

         A distinção entre jornalismo e imprensa, conseqüentemente, é fundamental: a imprensa é o corpo material do jornalismo, o processo técnico do jornal - que tem sua contrapartida na tecnologia do rádio, da TV, etc. - e que resulta num produto final, que podem ser manchas de tinta num papel ou as ondas de radiodifusão. O jornalismo é a modalidade de informação que surge sistematicamente destes meios para suprir certas necessidades histórico-sociais que, conforme já indicamos, expressam uma ambivalência entre a particularidade dos interesses burgueses e a universalidade do social em seu desenvolvimento histórico.

         Assim como os produtos industriais diferem dos artesanais, tanto pelas relações sociais em que estão inseridos como pelas características intrínsecas que decorrem nos produtos, a comunicação jornalística tem sua natureza própria, distinta da comunicação interpessoal e das demais formas pré-industriais.

         É bastante comum a crítica liberal de que o jornalismo moderno está alicerçado numa estéril "impessoalidade", pois o emissor não se apresenta como um indivíduo em carne e osso, com nome e endereço. Esse tipo de crítica situa-se numa larga tradição de crítica do capitalismo industrial, seja quanto aos objetos materiais de consumo como em relação aos produtos culturais e artísticos. Sua fonte ideológica é, no que diz respeito aos consumidores, aristocrática.

         Já vimos como a Escola de Frankfrut acaba defendendo uma posição elitista em termos culturais. Podemos observar também certos segmentos burgueses que cultuam uma tradição aristocrática como elemento de diferenciação dentro das próprias classes dominantes, valorizando móveis ou objetos ornamentais "feitos à mão" e, por isso, "originais". Porém, no que diz respeito aos produtores diretos, essa crítica da "despersonalização" da atividade jornalística possui outra fonte ideológica: ela expressa o saudosismo dos artesãos e pequenos-burgueses que perderam sua identidade ao longo do processo que os subjugou ao capital como trabalhadores assalariados. Ocorre que o jornalista, atualmente, deixou de ser um "intelectual" no sentido adjetivo dessa palavra, tornado-se alguém que - salvo exceções - é apenas um "trabalhador intelectual" (no sentido substantivo) especializado. As velhas gerações de jornalistas, principalmente, não se conformam com essa perda de status intelectual.

         A crítica da "despersonalização" do jornalismo informativo demonstra, apenas, que a essência da questão não foi sequer tocada por tais análises e, conduz, geralmente, a uma apologia, aberta ou velada, do jornalismo do passado, quando a subjetividade e as idiossincrasias dos redatores eram o aspecto dominante na notícia. Os fatos singulares que, supostamente, estavam sendo informados, precisavam ser procurados como a um pequeno pássaro verde numa floresta exuberante, entre adjetivos, metáforas, paráfrases, anacolutos e literatices diversas.

         O problema central é que, assim como os produtos industriais não são mais confeccionados pelo modesto artesão e suas ferramentas individuais, mas coletivamente numa linha de montagem, a informação jornalística manifesta - predominantemente - uma percepção de classe ou grupo social. O talento, a capacidade técnica e a visão ideológica pessoal de cada jornalista são importantes, como já foi acentuado, e poderão até prestigiá-lo diante de seus colegas e do público, não tanto como criador, mas principalmente como intérprete de uma percepção social da realidade, que ele vai reproduzir e alargar.

         Enfim, o aspecto estético, ou essencialmente criador - quando se trata de jornalismo -, embora tenha seu espaço garantido em qualquer atividade do espírito (mesmo na aridez da ciência), será sempre subordinado ao processo de conhecimento cristalizado no singular. Isso quer dizer que os aspectos lógicos subjacentes à apreensão do real através do singular-significante serão predominantes na atividade jornalística tomada em seu conjunto.

Sob a inspiração de Benjamin

         Já referimos, na discussão sobre a Escola de Frankfurt, que Adorno, Horkheimer e Marcuse formam uma vertente importante nas tentativas de teorização sobre a cultura de massa e o jornalismo. As agudas críticas à suprestrutura ideológica e cultural do capitalismo monopolista e do "socialismo" stalinista possuem méritos teóricos e políticos inquestionáveis. O jornalismo, por seu turno, foi tratado como um dos aspectos da "indústria cultural" e desprezado como fenômeno distinto. Em conseqüência, o pressuposto da cultura como manipulação e, além disto, a falta de especificidade no tratamento do fenômeno jornalístico, impediram uma abordagem capaz de transcender a mera crítica do jornalismo como reprodução da ideologia burguesa.

         Portanto, resgatar Walter Benjamin - embora ele não tenha avançado na questão particular do jornalismo - é tomar um outro caminho. Permite iniciar uma crítica à determinados pressupostos que impedem a compreensão teórica do problema. Benjamin percebe as enormes potencialidades culturais e estéticas que nascem com a reprodutividade técnica, ao mesmo tempo que se dissolve a "aura" das obras de arte, que estaria ligada à idéia do "original" e teria suas origens longínquas na magia. Ele reconhece, no terreno cultural e estético, as inovações tecnológicas como parte de uma práxis que ultrapassa a manipulação de classe a que presentemente servem tais instrumentos, ou seja, enquanto criação histórica de possibilidades culturais socialistas e comunistas.

         Fortemente influenciado por Benjamin, Hans-Magnus Enzensberger indica as potencialidades político-revolucionárias dos meios eletrônicos de comunicação, confrontando igualmente com a tradição de Frankfurt. Para Enzensberger os meios de comunicação não podem ser considerados como simples instrumentos de consumo ou manipulação. "Em princípio, sempre são ao mesmo tempo meios de produção. E uma vez encontrando-se nas mãos das massas, são meios de produção socializados". Ele nota uma função dos meios que ultrapassa as necessidades estritas de reprodução do capital: "Os meios eletrônicos não devem seu irresistível poder a nenhum artifício ardiloso, mas à força elementar de profundas necessidades sociais, que se manifestam mesmo na atual forma depravada de tais meios".

         Sob o influxo dessa perspectiva teórica, tomada em seu sentido geral e não pelas conclusões particulares extraídas pelos autores, talvez seja possível dar um passo à frente. Quer dizer, reconhecer as potencialidades dos meios de Comunicação modernos não só no que tange às configurações culturais e políticas que estão nascendo - e apontam para o futuro -, mas igualmente em relação a uma nova forma de conhecimento.

         Noutras palavras, admitir o surgimento de uma nova forma social de conhecimento como, por exemplo, foi o caso da ciência e da arte (embora esta última não se limite a essa função). Tais formas de conhecimento surgem com base no desenvolvimento tecnológico e correspondem a determinadas "necessidades sociais profundas", para repetir a expressão de Enzensberger. São, então, incorporadas historicamente como novas modalidades de apropriação subjetiva do mundo e transcendem o modo de produção que está na sua origem. Noutro plano, mas de modo semelhante, surgem muitas disciplinas científicas novas como, por exemplo, nasceu a antropologia no contexto do colonialismo. E, hoje, ela está se legitimando cada vez mais como uma abordagem original e imprescindível à compreensão da sociedade, inclusive com uma forte corrente anticolonialista e anti-imperialista.

         O surgimento do jornalismo pode ser situado no contexto desse modelo dialético. Não se trata de um fenômeno eterno, dotado de uma essência apriorística ligada ao conceito metafí- sico do homem, mas tão somente de um fenômeno histórico que ultrapassa a base social imediata que o constitui, a saber, o capitalismo. A essência do homem é, ela também, um processo e não uma substância inerte. Ou, o que significa a mesma coisa, a substância essencial do ser humano é precisamente o processo - seu processo de autoconstrução.

         A ciência, tal como era concebida, ou seja, um ramo especulativo da filosofia, foi superada pela ciência moderna, baseada na experimentação e sujeita a determinados preceitos lógicos e sistemáticos. Esse tipo de ciência, um dia poderá vir a ser superada por outra forma de saber que consiga, talvez, uma reintegração com a filosofia em novas bases, fazendo da ciência contemporânea um momento subordinado desse novo patamar do conhecimento. Não importa, neste caso, qual seja o futuro, mas apenas assinalar que ele será diferente do passado e do presente. E que o jornalismo, algum dia, poderá também vir a ser radicalmente transformado. Mas o que estamos procurando acentuar é que o jornalismo não desaparecerá com o fim do capitalismo e que, ao contrário, ele está apenas começando a insinuar suas imensas possibilidades e potencialidades histórico-sociais no processo de autoconstrução humana.

         Como forma histórica de percepção e conhecimento ele está no fim do começo, não no começo do fim. Noutras palavras, no entardecer do catalismo, em que estamos adentrando, o jornalismo recém está chegando à sua juventude.

A fecundidade do singular e a necessidade da manipulação

         O jornalismo moderno possui não só um potencial crítico e revolucionário na luta contra o imperialismo e o capitalismo, mas um "potencial desalienador" insubstituível para a construção de uma sociedade sem classes. Ele permite, pela natureza mesma do conhecimento que produz, uma imprescindível participação subjetiva no processo de significação do ser social.

         No capitalismo, as singularidades em que se manifestam os fenômenos sociais tendem, pela interpenetração e a dinâmica de tais manifestações, a expressar cada vez com mais vigor e evidência as contradições fundamentais da sociedade. Além disso, existem contradições (embora não antagônicas) entre a ideologia pequeno-burguesa dos setores assalariados ligados ao trabalho intelectual, como os jornalistas, e os interesses políticos do capital monopolista, reproduzindo visões diferenciadas e percepções críticas dos fenômenos sociais. Finalmente, em virtude do aguçamento das contradições globais do modo de produção capitalista, das lutas econômicas que surgem espontaneamente e das lutas políticas promovidas conscientemente pelas vanguardas, aumenta a capacidade crítica das massas em geral e do proletariado em particular. Isso proporciona uma possibilidade maior de apreensão das conexões que o jornalismo burguês procura obscurecer ou distorcer.

         Em conseqüência dos fatores apontados acima, a tendência do jornalismo hegemonizado pelos interesses da burguesia monopolista é a instituição crescente de formas planejadas e deliberadamente manipulatórias.

         Por sua lógica intrínseca de perseguir o singular e expressar sua significação imediata, o jornalismo ao refletir a hegemonia da ideologia dominante, expressa também as contradições com as quais ela se debate, à medida que é obrigado a respeitar certa hierarquia objetiva dos fenômenos. Ou seja, enquanto se aprofundam as contradições do capitalismo, o jornalismo tende a refletir espontaneamente aspectos críticos da própria objetividade que reproduz. A solução é o controle mais estrito e ideologicamente mais cuidadoso dos meios de comunicação e das informações elaboradas.

         Em síntese, o caráter objetivo das contradições que se avolumam no capitalismo, lança sementes de crise na própria "objetividade burguesa" do jornalismo, reforçando a necessidade da manipulação. Aliás, a utilização da informática, cada vez mais intensa, amplia essas possibilidades de controle e hierarquização do processo informativo.

         A informação jornalística, vale insistir, e a base técnica para sua produção (imprensa, rádio e TV) nasceram no bojo do mesmo processo de desenvolvimento das relações mercantis. Surgiu, então, o jornalismo como uma forma social de percepção e apropriação da realidade, correspondendo a um aspecto determinado da práxis humana.

         Ocorre que o objeto da apropriação prática dos homens é, cada vez mais, a totalidade do mundo social e natural. Cada indivíduo exerce sua atividade não apenas sobre uma parcela dessa realidade, mas sobre a totalidade, através das mediações objetivas e subjetivas que se constituem com o avanço das forças produtivas e a socialização da produção.

         Portanto, cada indivíduo, em alguma medida, precisa aproximar-se dessa realidade através de uma relação tanto mediata como imediata. Sabemos que o "imediato" que ele percebe pelos meios de comunicação não é, realmente, algo dado imediatamente, mas uma realidade elaborada sistematicamente em função de certas técnicas e segundo um ponto de vista ideológico. Trata-se, portanto, do resultado do processo de apreensão e elaboração feito por intermediários. Mas sabemos, do mesmo modo, que o "imediato" que ele vê com seus próprios olhos - quer dizer, que ele percebe diretamente pelos sentidos - a rigor, tampouco é uma realidade sem mediações.

         Entre o sujeito individual e o objeto permeia todo um mundo histórico - o cérebro dos mortos oprime o cérebro dos vivos, como disse Marx -, a cultura, os conhecimentos e conceitos acumulados e a própria ideologia. Assim, todo o imediato é também mediato, como todo o mediato, no final da cadeia de percepções, é apreendido como imediato em relação às mediações precedentes e subseqüentes.

         O que diferencia um do outro, relativamente, é o grau de generalidade cristalizada na formulação que vai subsidiar o conhecimento, conforme a predominância do singular, do particular ou do universal. Além disso, há que se considerar também a natureza das mediações: se são apenas aquelas introjetadas através da cultura (como na percepção individual direta) ou se existem objetivamente enquanto instrumentos, atividade social e método atuantes na mediação (tal como ocorre no jornalismo). Neste último caso, o problema da linguagem torna-se crucial para a compreensão e a caracterização da forma de conhecimento, já que ela vai expressar a organização racional das mediações em seu conjunto.

         O processo de mediação inerente ao conhecimento jornalístico, que envolve instrumentos adequados a uma atividade social organizada, exige uma linguagem que otimize a predominância da singularidade. A "funcionalidade" da linguagem jornalística, a que se referem certos autores, pode ser explicada fundamentalmente tomando por critério essa exigência.

         É verdade que a linguagem jornalística deve ser pertinente tanto ao "registro formal" como ao "registro coloquial", buscando ao mesmo tempo obter o máximo de informação em menor espaço, através de um estilo conciso, claro e preciso. Mas o que oferece sentido a essas exigências e estabelece uma lógica entre elas é a natureza do conhecimento que o jornalismo produz. Afinal, a concisão, a clareza e a precisão são importantes em muitas outras formas de comunicação e não só no jornalismo. A densidade informativa também é exigida em outras formas de comunicação. Um relatório eficiente ou uma ata bem elaborada não podem dispensar nenhuma das qualidades referidas acima.

         No jornalismo não se pode dizer, por exemplo, que "a burguesia procura reprimir as greves porque elas ameaçam a reprodução ampliada do capital", afirmação que poderia caber num ensaio de ciências sociais. Dir-se-á algo como: "os diretores da Ford, fulano e beltrano, pediram a intervenção do Exército para reprimir os piquetes grevistas, depois que a proposta patronal foi rejeitada numa assembléia de cinco mil trabalhadores, realizada ontem à tarde no pátio da empresa. (... )"

         A linguagem científica tem uma configuração universal. Ela busca dissolver as singularidades e particularidades, para mantê-las superadas nos conceitos e categorias universais e nas formalizações universalizantes. É claro que, na ciência, não está em jogo uma espécie de universal puro, o que seria uma concepção idealista. À medida que as singularidades e particularidades são superadas, elas passam a existir como determinações virtuais do universal, recolhidas pelo conceito em sua concreticidade.

         A linguagem jornalística quer apreender a singularidade, mas só pode fazê-lo no contexto de uma particularidade determinada, ou seja, no contexto de generalizações e conexões limitadas capazes de atribuir sentido ao singular sem, no entanto, dissolvê-lo enquanto fenômeno único e irrepetível.

         Por um lado, os conceitos científicos ou teóricos tendem a diluir a força da experiência imediata - o singular - no interior de uma abstração ou mesmo de uma concretitude intangível à percepção dos indivíduos. Por outro lado, a adjetivação excessiva tende ao formalismo do universal-abstrato ou a uma ética puramente normativa. Se afirmo, por exemplo, que um determinado homem que espancou sua mulher praticou "um ato de crueldade", estou qualificando universalmente o fato, isto é, tornando-o simplesmente um exemplar do gênero de "atos cruéis" já sobejamente conhecidos. Assim, não permito que o próprio evento contribua com sua singularidade para complexificar, acrescentar ou negar, com sua determinação irrepetível, a compreensão particular e universal que o público tem da crueldade. Perde-se a fecundidade do singular como dimensão legítima e criadora da realidade e do conhecimento.

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