Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987. pp. 153-164. [Ref.: T196]

CAPÍTULO VII

O singular como categoria central
da teoria do jornalismo

         "A redação da notícia deve ser específica" - diz Hohemberg. "As generalidades geralmente concorrem para obscurecer o quadro da notícia. Em vez de escrever que um homem é alto, melhor dizer que tem um metro e noventa. Em lugar de dizer que o orador estava nervoso e perturbado, melhor informar que gritava e dava murros na mesa". Uma das características do moderno jornalismo "objetivo" que se afirmou nas últimas décadas é o desprezo pelas generalidades e adjetivos. A preocupação com a singularidade dos fatos ou pela especificidade, como se diz mais comumente, é a marca dos bons repórteres ou redatores. No entanto, essa questão não, é tratada do ponto de vista teórico, uma vez que a singularidade (que seria o objeto do jornalismo) é entendida no sentido vulgar, não filosófico, com base no senso comum que, via de regra, percebe o fundamento da realidade como uma soma ou agregado de coisas ou eventos singulares, ao invés de percêbe-lo também em suas dimensões concretas de particularidade e universalidade.

         O resultado é que a singularidade é reificada pela compreensão espontânea do jornalista, que acaba aceitando implicitamente a particularidade e a universalidade sugeridas pela imediaticidade e reproduzidas pela ideologia dominante. Assim, a busca da "especificidade" na atividade jornalística limita-se a uma receita técnica de fundo meramente empírico, uma regra operativa que os jornalistas devem seguir sem saber o motivo, tomando-se presa fácil da ideologia burguesa e da fragmentação que ela proporciona. A realidade transforma-se num agregado de fenômenos destituídos de nexos históricos e dialéticos. A totalidade toma-se mera soma das partes; as relações sociais, uma relação arbitrária entre atitudes individuais. O mundo é concebido como algo essencialmente imutável e a sociedade burguesa como algo natural e eterno, cujas disfunções devem ser detectadas pela imprensa e corrigidas pelas autoridades.

         Até o presente, as tentativas de abordagem sobre o fenômeno jornalístico, com seu va-riados enfoques - funcionalista, ideológico, econômico, semiológico, etc. - não ultrapassaram certos limites teóricos. Uma vez que o jornalismo inaugura historicamente uma nova possibilidade epistemológica, uma teoria capaz de abrangê-lo deve propor claramente o problema em sua conexão com categorias filosóficas, situando os aspectos histórico-sociais no contexto de uma reflexão de alcance ontológico sobre o desenvolvimento social.

         No seu livro intitulado Introdução a uma estética marxista, planejado inicialmente como parte de uma obra maior sobre estética, Lukács discute a natureza da arte, "a sua diferença em relação ao reflexo científico da realidade objetiva e em relação ao reflexo que se realiza na vida cotidiana". Um dos pressupostos fundamentais da teoria lukacsiana sobre a arte é o de que "o reflexo científico e o reflexo estético refletem a mesma realidade objetiva". E disso resulta, segundo o autor em questão, "que devem ser os mesmos não só os conteúdos refletidos, mas as próprias categorias que os formam".

         As concepções de Lukács estão inseridas numa velha (e ainda atual) polêmica sobre a arte no interior do marxismo. Essa discussão tem sua origem nos breves escritos de Marx e Engels (principalmente cartas) manifestando opiniões ou preferências em torno de obras de arte de seu tempo, especialmente da literaturas. Plekanov, Lênin, Trótski, Adorno, Benjamin, Brecht, Goldmann e tantos outros, são alguns nomes significativos desse debate.

Algumas limitações da estética de Lukács

         Embora reconhecendo a importância do legado teórico deixado por Lukács e a profundidade de suas reflexões no campo da filosofia e da estética, não nos alinhamos entre aqueles que pensam que ele formulou um axioma suficiente para a elaboração de uma teoria marxista da arte. Não aceitamos, por exemplo, o pressuposto de que a arte reflete "a mesma realidade" da ciência, estando, por conseguinte, sujeita às mesmas categorias, mesmo que organizadas de outro modo e obedecendo formulações apropriadas.

         Preferimos considerar que a realidade refletida (e constituída, seria oportuno acrescentar) pela arte não é a mesma representada pela ciência, embora não seja completamente arbitrária ou puramente subjetiva. Trata-se de uma realidade que mantém traços de identidade e pontos de pertinência em relação àquela que é objeto da ciência. São, de fato, realidades complementares, embora a dimensão apanhada pela arte seja mais global e compreenda dentro de si, como momento subordinado, a realidade objetiva que a ciência procura expressar. A ciência tende para a objetividade, para a revelação do em si do objeto, esse é o movimento que a caracteriza. A arte funde sujeito e objeto no contexto de uma totalidade particular, mas cujo conteúdo, embora não seja exaustivo, refere-se sempre à totalidade mais ampla da existência histórica e ontológica dos homens e da sociedade.

         A diferença da arte em relação à filosofia é que, ao fundir sujeito e objeto numa reflexão única, a arte não dissolve a singularidade das figuras nos conceitos e nas categorias. A arte, como o indicou o próprio Lukács, supera a imediaticidade empírica do singular e a abstração generalizante do universal, conservando-os subordinados na particularidade estética, quer dizer, no típico.

         Assim, embora cristalize sua representação no particular e não no universal como tendem a fazer as ciências e, de maneira evidente, a filosofia, ela se volta para "a mesma realidade" da filosofia - uma relação de totalidade entre sujeito e objeto - e não para a realidade objetiva da ciência, que é só uma parte da totalidade.

         Certamente as limitações da concepção estética de Lukács são responsáveis pela dificuldade que ele sempre teve em compreender as vanguardas artísticas, na medida em que seu método tende a subestimar a autonomia relativa do significado formal. Por outro lado, a consideração epistemológica do fenômeno estético - considerado sempre como "um reflexo da realidade", embora cristalizado no particular - tornou o método crítico de Lukács não apenas fecundo para analisar a grande arte do passado, como para vislumbrar a linha de continuidade no desenvolvimento artístico.

         Em síntese, há uma tensão objetivista que perpassa sua teoria estética, a qual reduz a arte ao conhecimento objetivo da realidade histórico-social (que ela realmente contém, embora não esgote o problema da arte). A dimensão subjetiva da arte, com sua margem de criação livre, na qual ela nada reflete de objetivo, mas instaura uma realidade a um significado completamente novos, não é contemplado pela concepção lukacsiana. Nesse sentido, a arte poderia ser pensada, talvez, a partir da categoria filosófica de trabalho, e não apenas como modalidade do conhecimento.

         "A concepção diabética no interior do materialismo, portanto, insiste, por um lado, nesta unidade conteudística e formal do mundo refletido, enquanto, por outro, sublinha o caráter não mecânico e não fotográfico do reflexo, isto é, atividade que se impõe ao sujeito (sob a forma de questões e problemas socialmente condicionados, colocados pelo desenvolvimento das forças produtivas e modificados pelas transformações das relações de produção) quando ele constrói concretamente o mundo do reflexo".

         O que Lukács procura estabelecer como premissa materialista é a prioridade da realidade objetiva comum, a qual seria revelada sob formas diferentes; de um lado, pelo reflexo científico (que faria um movimento pendurar entre o universal e o singular) e, de outro, pelo reflexo estético (que teria a particularidade como categoria central). Porém, a inegável prioridade ontológica do ser em relação à consciência, a partir do momento em que a filosofia materialista adota a noção fundamental de práxis, não pode ser traduzida para o terreno epistemológico como simples reflexo da objetividade na consciência, mesmo que se considere esse reflexo como não mecânico e não fotográfico.

         Nesse ponto, parece que Lukács dá um passo atrás em relação a Hegel, embora este tenha mistificado o papel da consciência pelo pressuposto do "Espírito Absoluto" e a conseqüente transcendência mística do conceito. Portanto, é preciso reconhecer não só que a categoria do conhecimento é insuficiente em relação à arte, pois esta envolve uma práxis, isto é, uma atividade de mútua produção entre sujeito e objeto (o que implica a noção de trabalho, que é mais abrangente), mas também que a idéia de "reflexo" é inadequada e parcial para Indicar o próprio conhecimento em cujo processo o homem se apropria subjetivamente da realidade.

         As ciências naturais tendem para a objetividade, para a revelação da coisa em si. No entanto, jamais poderão esgotá-la. A condição para a revelação da objetividade é a atividade subjetiva, a posição teleológica do sujeito e sua tendência a uma apropriação crescente do mundo. Mas a subjetividade, aqui, por um lado é um pressuposto necessário (sob o ponto de vista ontológico da práxis) e, por outro lado, é um resíduo decrescente (sob o ângulo epistemológico), embora seja ineliminável exatamente por ser um pressuposto.

         As ciências sociais ou humanas, por seu turno, constituem uma revelação da objetividade na qual a subjetividade (ou a ideologia, dito de modo mais específico) que a pressupõe não se manifesta como um resíduo, mas como uma dimensão intrínseca à teoria e que a constitui como um conteúdo necessário e legítimo. Aquilo que na objetividade natural aparece como probabilidade, na sociedade realiza-se como liberdade. Por isso, a adesão a uma ou outra possibilidade do real, da parte dos sujeitos que o investigam, é tanto condição para que seja revelado o objeto como um aspecto constitutivo desse objeto.

         A subjetividade ou a ideologia, portanto, deixam de ser um resíduo decrescente para tornarem-se subjetividade objetivada ou, se quisermos, objetividade subjetivada. Mas, de qualquer forma, a dimensão teleológica torna-se, além de condição fundante do saber, tal como nas ciências naturais, parte integrante da elaboração teórica das ciências sociais.

As mesmas categorias para uma nova problemática

         Mas o que nos interessa, acima de tudo, na teoria lukacsiana da arte, é a transposição das categorias utilizadas para a elaboração de uma teoria do jornalismo. As limitações da estética proposta por Lukács, com base em categorias eminentemente epistemológicas, reforça a idéia de que as categorias utilizadas por ele (singular, particular e universal) são mais fecundas para caracterizar as representações que se referem estritamente a formas de conhecimento.

         Ao contrário do que ocorre em relação à arte, essas categorias podem fornecer o axioma teórico para uma teoria do jornalismo. Os conceitos de singular, particular e universal expressam dimensões reais da objetividade e, por isso, representam conexões lógicas fundamentais do pensamento, capazes de dar conta, igualmente, de modalidades históricas do conhecimento segundo as mediações que estabelecem entre si e as suas formas predominantes de cristalização.

         A ciência, o conhecimento teórico em geral, constitui uma dessas modalidades do conhecimento. No entanto, ao contrário de Lukács, não pensamos que o conhecimento científico fixa-se "de acordo com suas finalidades concretas", nos extremos do universal ou do singular. É a especificação crescente do objeto e a especialização do saber, movimento que ocorre paralelo e é complementar ao processo de generalização e abstração, que fornece a imagem falseada de que existe ou tende a existir um conhecimento científico cristalizado no singular. Por mais específico que seja o objeto e por mais especializado que seja o saber, o conhecimento científico aspira sempre ao universal. Ele se projeta nessa aspiração e recebe sempre sua formulação adequada com base na busca da determinação de uma pluralidade ilimitada.

         As informações que circulam entre os indivíduos na comunicação cotidiana apresentam, normalmente, uma cristalização que oscila entre a singularidade e a particularidade. A singularidade se manifesta na atmosfera cultural de uma imediaticidade compartilhada, uma experiência vivida de modo mais ou menos direto.

         A particularidade se propõe no contexto de uma atmosfera subjetiva mais abstrata no interior da cultura, a partir de pressupostos universais geralmente implícitos, mas de qualquer modo naturalmente constituídos na atividade social. Somente o aparecimento histórico do jornalismo implica uma modalidade de conhecimento social que, a partir de um movimento lógico oposto ao movimento que anima a ciência, constrói-se deliberada e conscientemente na direção do singular. Como ponto de cristalização que recolhe os movimentos, para si convergentes, da particularidade e da universalidade.

         No caso da arte, trata-se de uma singularidade arbitrária, um ponto de partida no caminho da criação estética, cujo termo conclusivo coincide com a superação da singularidade pela instauração do típico - o particular estético. Para o jornalismo, a singularidade, além de não ser arbitrária é um ponto de chegada que coincide com a superação do particular e do universal, que sobrevivem enquanto significados no corpo da notícia e sob a égide do singular. É nesse contexto que a seguinte afirmação de Lukács sobre a arte possui validade também para o jornalismo: "se um fenômeno qualquer deve, enquanto fenômeno, expressar a essência que está em sua base, isto só é possível se se conserva a singularidade".

         Lukács demonstra que foi Hegel o primeiro pensador a colocar no centro da lógica a questão das relações entre a singularidade, a particularidade e a universalidade. Hegel toma como seu objeto de reflexão o processo da revolução burguesa como expressão da dialética histórica. O ancien regime tem pretensões de ser universal, mas representa interesses particulares. A classe revolucionária, a burguesia, o Terceiro Estado, que para Hegel constituem o verdadeiro universal, são reduzidos à particularidade. A revolução burguesa é a solução desse impasse. Hegel compartilha daquilo que Marx ironizou como "ilusões heróicas": a burguesia se pensa como encarnação a-histórica da vontade universal.

         A partir dessa "ilusão heróica", o pensamento idealista de Hegel vê-se induzido a mistificar as relações dialéticas, que ele mesmo esclareceu, entre a singularidade, a particularidade e a universalidade. Quando procura "deduzir" logicamente as instituições particulares da Prússia da época, ou seja, a monarquia constitucional com todos os seus aspectos reacionários, ficam evidenciados os limites idealistas da dialética hegeliana.

         Em Hegel, "o processo de determinação é sempre um caminho que leva do universal ao particular". Sua concepção envolve uma dialética na qual, embora sempre em conexão com o particular e o singular, o universal tem uma precedência lógica e se toma, de fato, um pressuposto ontológico.

         A dialética, por isso, aparece encerrada no interior do universal como se o particular e o singular fossem apenas níveis degradados da universalidade e, nessa medida, essencialmente direcionados por ela e vocacionados para a ela retomarem. Não há verdadeira criação da essência, pois o desenvolvimento é a especificação e a realização de um conteúdo pressuposto.

         O avanço do pensamento de Hegel é ter compreendido a interpenetração dialética e a identidade contraditória entre o singular, o particular e o universal como momentos que constituem a realidade objetiva e formam o concreto. Tais relações não são entendidas apenas no sentido quantitativo, mas como transformação e determinação através das mediações que estabelecem entre si. São essas categorias, entendidas em suas relações, que fornecem as bases fundamentais para a formulação de uma teoria do jornalismo, desde que arrancadas do contexto mistificador do sistema hegeliano e inseridas numa concepção materialista da práxis. É nessa direção que pode ser formulada uma fecunda teoria marxista do jornalismo, capaz de dar conta dos diversos aspectos implicados no fenômeno.

         Para o entendimento correto da cristalização da informação jornalística no singular, é preciso estabelecer as relações desse conceito com os demais que a ele estão indissoluvelmente ligados. Existe, como já foi apontado pelas reflexões precedentes, uma relação dialética entre singularidade, particularidade e universalidade, categorias lógicas que representam aspectos objetivos da realidade.

         Cada um desses conceitos é uma expressão das diferentes dimensões que compõem a realidade e, ao mesmo tempo, compreende em si os demais. São formas de existência da natureza e da sociedade que se contém reciprocamente e se expressam através dessas categorias e de suas relações lógicas.

         No universal, estão contidos e dissolvidos os diversos fenômenos singulares e os grupos de fenômenos particulares que o constituem. No singular, através da identidade real, estão presentes o particular e o universal dos quais ele é parte integrante e ativamente relacionada. O particular é um ponto intermediário entre os extremos, sendo também uma realidade dinâmica e efetiva.

         Podemos exemplificar isso da seguinte forma: em cada homem singularmente considerado estão presentes aspectos universais do gênero humano que dão conta da sua identidade com todos os demais; na idéia universal de gênero humano, por outro lado, estão presentes - como se "dissolvidos" - todos os indivíduos singulares que o constituem; o particular, então, pode ser a família, um grupo, uma classe social ou a nação à qual o indivíduo pertença. O particular é mais amplo que o singular, mas não chega ao universal. Podemos dizer que ele mantém algo dos extremos, mas fica situado logicamente a meio caminho entre eles.

         Nos fatos jornalísticos, como em qualquer outro fenômeno, coexistem essas três dimensões da realidade articuladas no contexto de uma determinada lógica. Tomemos o caso de uma greve na região do ABC, em São Paulo. Ao ser transformada em notícia, em primeiro plano e explicitamente, serão considerados aqueles fatos mais específicos e determinados do movimento, ou seja, os aspectos mais singulares. Quem, exatamente, está em greve, quais são as reivindicações, como está sendo organizada a paralisação, quem são os líderes, qual a reação dos empresários e do governo, etc.; são algumas das perguntas imediatas que terão de ser respondidas. Mas a notícia da greve terá de ser elaborada como pertinente a um contexto político particular, levando em conta a identidade de significado com outras greves ou fenômenos sociais relevantes. Será um acontecimento que, de modo mais ou menos preciso, terá de ser situado numa ou mais "classes" de eventos, segundo uma análise conjuntural que pode ser consciente ou não.

         Nesse sentido, a particularidade do fato - embora subordinada formalmente ao singular, pois é ele que dá vida à notícia - estará relativamente explicitada. No entanto, a universalidade desse fato político, em que pese não seja explicitada, estará necessariamente presente enquanto conteúdo. Ou seja, como pressuposto que organizou a apreensão do fenômeno e como significado mais geral da notícia, teremos uma determinada concepção sobre a sociedade, sobre a luta de classes e a história.

         Portanto, tomando essas relações como premissa teórica, podemos afirmar que o singular é a matéria-prima do jornalismo, a forma pela qual se cristalizam as informações ou, pelo menos, para onde tende essa cristalização e convergem as determinações particulares e universais.

         Assim, o critério jornalístico de uma informação está indissoluvelmente ligada à reprodução de um evento pelo ângulo de sua singularidade. Mas o conteúdo da informação vai estar associado (contraditoriamente) à particularidade e universalidade que nele se propõem, ou melhor, que são delineadas ou insinuadas pela subjetividade do jornalista. O singular, então, é a forma do jornalismo, a estrutura interna através da qual se cristaliza a significação trazida pelo particular e o universal que foram superados. O particular e o universal são negados em sua preponderância ou autonomia e mantidos como o horizonte do conteúdo.

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