Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987. pp. 91-136. [Ref.: T196]

CAPÍTULO V

A tradição de Frankfurt
e a extinção do jornalismo

         Vimos, no capítulo anterior, que a partir das premissas teóricas da cibernética - seja através da aplicação da Teoria da Informação na comunicação social e no jornalismo ou das pretensões universalizantes da "Teoria Geral dos Sistemas" - não é possível discutir fecundamente a natureza, as funções e, sobretudo, as perspectivas históricas do fenômeno jornalístico. Por esse caminho, pode-se chegar, na melhor das hipóteses, a uma crítica da manipulação "de direita" sob o ponto de vista de uma justificada manipulação "de esquerda", pois a informação jornalística é vista sob o prisma teórico de uma generalidade operatória, exclusivamente como influxo da organização e direcionamento do "sistema social".

         Dessa forma, ao buscar um desdobramento marxista dos conceitos oriundos da cibernética, a fim de denunciar a hegemonia burguesa sobre a comunicação e o jornalismo, o máximo que Camilo Taufic consegue é uma crítica ingênua deduzida de pressupostos que, em sua essência, são mais adequados ao pensamento e às necessidades da burguesia monopolista do que ao pensamento revolucionário. Além do mais, sobre a especificidade do jornalismo nada ficamos sabendo, exceto aquilo que é patrimônio universal: o jornalismo surgiu com o desenvolvimento das relações capitalistas, no bojo da cultura de massa, e expressa, hegemonicamente, uma ideologia que visa ao controle e à eterna reprodução da sociedade burguesa.

         Vejamos, agora, como a "Escola de Frankfurt", que produziu uma sólida tradição acadêmica, trata o problema do jornalismo. É preciso ressalvar, no entanto, que não se pretende, aqui, um balanço exaustivo dos múltiplos pensamentos que constituem essa tradição (Adorno, Horkheimer, Marcuse, Benjamin, Habermas e outros), nem das importantes contribuições que nos legaram. Nosso objetivo é discutir especialmente alguns aspectos do pensamento de Adorno, Horkheimer e Habermas, sobretudo naqueles pontos que dizem respeito ao fenômeno jornalístico e, a partir daí, analisar algumas abordagens contemporâneas que estão situadas nessa tradição.1

A "indústria cultural": uma orquestra afinada

         Adorno foi um dos primeiros a abordar teoricamente os meios de comunicação de massa na perspectiva de suas relações com a economia de mercado, através do conceito de "indústria cultural".2 Ele busca desvendar o que considera uma relação essencialmente corrosiva da produção mercantil com a arte e a cultura no capitalismo moderno, pois considera esse mundo emergente como uma totalidade cindida. "O todo é o não verdadeiro", escreve, contrapondo-se frontalmente a Hegel.3 O "totalitarismo" avança no oriente o no ocidente, segundo Adorno, que se coloca numa posição de denúncia tanto do capitalismo quanto do stalinismo. Portanto, para que o pensamento não consagre esse movimento totalitário no terreno político, é preciso uma idéia de Totalidade aberta e multidimensional, a "Totalidade da não-Totalidade".4

         É em torno dessa questão que se define o relacionamento de Adorno com a concepção hegeliana. "Talvez a única maneira de ser fiel ao espírito hegeliano de sistematização num universo fragmentado é ser resolutamente não sistemático. Neste sentido, o pensamento de Adorno é profundamente hegeliano, elaborando seus motivos num espírito genuinamente hegelino, enfrentando daí seu principal problema formal: como escrever capítulos duma fenomenologia quando não há mais qualquer possibilidade de um todo?".5

         De um certo modo, Adorno é um hegeliano desiludido, ou melhor, um hegeliano que pretende racionalizar a desilusão diante da razão desumana que governa o mundo. Alguém que vê o mundo como um agregado de fenômenos perdendo-se de sua unidade lógica originária, isto é, como fragmentação que se reconhece como tal, porque lembra da totalidade que poderia ter sido e que deve ser buscada como uma síntese final, embora jamais seja efetivamente realizável. A radicalidade da não-sistematização que ele propõe, por meio de sua "dialética negativa", significa o elogio de um Todo reconhecido como inexistente, mas reverenciado sentimentalmente e posto como premissa de toda a crítica. "Assim, a dialética negativa não tem outra escolha senão afirmar a noção e o valor de uma síntese final, ao mesmo tempo negando sua possibilidade em qualquer caso concreto colocado diante dela."6

         A unidade do Espírito com o mundo, do sujeito com o objeto, pensada por Hegel como tendência inexorável do real à totalização, perceptível ao nível dos fenômenos do mundo, é assumida por Adorno como necessária e impossível. Quer dizer, como horizonte abstrato e nostálgico da crítica e superação permanentes. O apregoado "saudosismo" e "elitismo" de Adorno em não perceber as potencialidades democráticas e a realidade contraditória, geradas pelos meios de comunicação de massa do capitalismo moderno, encontra suas premissas filosóficas nessa idéia de uma Totalidade que jamais existiu e, não obstante, assumida como uma perda.

         A idéia de cultura como manipulação e do jornalismo como fenômeno redutível a sua forma mercantil, dotado de conteúdo essencialmente alienado e alienador, é uma das conseqüências teóricas dessa suposta unidade em processo de fragmentação radical e irresistível.

         Por isso, a crítica de Jameson às concepções de Adorno é tímida e insuficiente e acaba desviando o problema de fundo. As posições políticas domesticadas que se originaram da Teoria crítica da sociedade - que é o rótulo assumido por Horkheimer e seus colaboradores desde 1937 -, em que pesem suas contribuições na luta contra a dogmatização stalinista, não podem ser creditadas a certos traços de caráter ou aos temas que mobilizavam as atenções dos autores. Adorno, Horkheimer e a maioria dos teóricos da Escola de Frankfurt jamais assumiram qualquer compromisso consistente - mesmo teórico - com a práxis revolucionária concreta. Assim, a perspectiva circunstancial em que Jameson coloca as limitações políticas de Adorno é inaceitável.

         "Sem dúvida, a ênfase no método e na teoria, mais do que na prática da dialética negativa, corre o risco de dar uma importância exagerada e distorcida ao momento de fracasso que está presente em todo o pensamento moderno: e é esta ênfase exagerada, mais do que qualquer outra coisa, que parece explicar, para mim, a ausência de compromisso político que os estudantes radicais reprovaram em Adorno ao fim de sua vida".7

         Um pensamento não pode ser medido pela "ênfase" que atribui ao aspecto prático ou teórico das idéias que produz. Uma concepção só pode ser julgada como tal, isto é, pela verdade teórica que apresenta ou não. É a sua relação com a práxis, enquanto pensamento capaz de apanhar e direcionar a realidade, o que vai determinar a sua grandeza. A teoria, em resumo, deve ser julgada enquanto teoria. Neste exato sentido - não por uma questão de ênfase - é que se manifestam as limitações de Adorno. Sem esquecer a importância de seus estudos sobre arte, sublinhada pela maioria dos especialistas, é preciso apontar que a "dialética negativa" apresenta dois problemas teóricos. Em primeiro lugar, por ser uma "ontologia negativa", na qual o ser aparece como um momento do não ser, ao invés de realizar-se o oposto. Em segundo lugar, porque essa postura negativa contém algo de apocalíptico, à medida que percebe apenas o aspecto divergente entre o movimento da razão, de um lado, e da realidade objetiva de outro. Não reconhece a constituição progressiva, no curso da própria objetivação, de uma possibilidade superior da razão.

         A crítica, por mais ampla e profunda que seja, se não contém o momento concretamente afirmativo, torna-se diletante e não-revolucionária. O negativo só destrói efetivamente quando ele próprio se afirma como positividade. Por isso, uma dialética puramente negativa, por não privilegiar ontologicamente o momento afirmativo, não consegue ser uma negação concreta: torna-se uma atitude intelectual de recusa abstrata, assumida por um observador individual e privilegiado. Eis o limite teórico e político da "dialética negativa" de Adorno.

         O "pessimismo" que emana das idéias de Adorno (e Horkheimer) não pode ser atribuído apenas a uma expectativa pessoal diante do curso da história. A posição de Adorno/Horkheimer sobre a cultura e a arte no capitalismo avançado envolve um "pessimismo" crítico e humanista, cujos pressupostos estão contidos naquela idéia de uma Totalidade cindida, que deve ser pensada sob a forma de uma totalização aberta e essencialmente negativa. Uma de suas conseqüências aparece no conceito de "indústria cultural", sugerido por eles para caracterizar a cultura do capitalismo moderno. Esse conceito pretende evitar a falsa impressão de que se trata de uma cultura democrática, feita pelas próprias massas, como poderia induzir a expressão "cultura de massa".

         Vejamos alguns traços dessa caracterização da "indústria cultural", feita por Adorno e Horkheimer. Trata-se de uma forma de cultura que deixou de ser "também mercadoria", para tornar-se essencialmente mercadoria. Ocorre, agora, uma tal determinação das relações mercantis sobre o processo cultural e artístico que, não apenas a circulação sobre influência das leis do mercado, mas a produção e distribuição cultural ficam submetidas aos ditames do capital. A "arte superior" é degradada e a "arte inferior" é esterilizada em seu potencial crítico. O consumidor não é o "rei", o sujeito, mas o objeto, o escravo dessa indústria. O primado do lucro que está na gênese dessa cultura penetra em seus poros e corrompe sua autonomia. Essa cultura é industrial entendido esse conceito mais no sentido das formas alienadas de organização do trabalho nos escritórios, ao invés, simplesmente, da racionalização no sentido tecnológico. A técnica envolvida não é interna à constituição da obra de arte, não está a seu serviço, mas é externa: serve para apresentar um simulacro como se fosse obra de arte.

         Os meios de comunicação de massa reforçam a ordem estabelecida e o status quo. Seu efeito de conjunto é uma espécie de antiiluminismo. Toda a produção e reprodução da cultura é realizada em função dos meios eletrônicos de comunicação (TV, rádio, cinema, etc.), que passam a orquestrar todo o processo em virtude de sua abrangência e dinamismo. Existe uma tendência crescente à padronização e homogeinização das manifestações culturais e artísticas, sendo superada a espontaneidade da criação e da relação entre o artista e o público. Os temas e estilos folclóricos ou populares são assimilados no contexto da ideologia dominante. Os temas clássicos das grandes obras são reproduzidos como um padrão, às custas de um radical empobrecimento estético e humano, através do kitsch. Ao invés de expressar a complexidade que é própria da vida e da grande arte, ela é reduzida a um elementar maniqueísmo ético, ideológico e político.8

         Os aspectos sociais, técnicos e artísticos não podem ser tratados isoladamente na questão da "indústria cultural", pois eles constituem uma unidade que implica uma mútua determinação sob a égide das leis do mercado. A TV, por exemplo, em função de suas qualidades técnicas, permite aproximar-se da meta que é ter de novo a totalidade do mundo sensível através de uma imagem ao alcance da mão, o sonho sem estar dormindo, sem estar sonhando. Mas permite introduzir furtivamente, na duplicata, aquilo que se pretende seja tomado como real. A força da TV radica nessa totalidade do mundo sensível que ela amplia ao infinito. Mas é somente no conjunto de todos os procedimentos nitidamente afinados e, contudo, divergentes quanto à técnica e ao efeito, que se forma o clima da "indústria cultural".

         A TV, certamente, não faz das pessoas aquilo que quer, mas acentua e aprofunda aquilo que as pessoas já são. As imagens da TV oferecem o brilho que falta ao cotidiano cinzento da alienação, sem exigir esforço da atenção ou do pensamento, como uma propriedade que é usufruída de modo desatento, na forma de aparências que se projetam. A "linguagem das imagens", que dispensa a mediação conceitual, é mais primitiva que a das palavras. Por isso, ela favorece - tendo em vista a maneira como se insere a TV no capitalismo - o irracionalismo e a ilusão sobre o mundo. A voz que fala através dela é o discurso da imediaticidade, do mundo presente como algo natural e eterno, como uma espécie de voz do "espírito objetivo". Sobre o futuro, Adorno é reticente: "Não é possível prever o que virá a ser a televisão; aquilo que ela é hoje não depende do invento, nem mesmo das formas particulares da sua utilização comercial, mas sim do todo no qual está inserida".9

         Essa última afirmação contesta algumas análises apressadas, que acusam Adorno de considerar a tecnologia avançada dos meios de comunicação como um mal em si mesmo, independente das relações sociais onde está inserida. Ao contrário, ele acredita que o potencial das novas tecnologias da comunicação é integralmente apropriado pelos interesses burgueses na medida em que se torna um aspecto do todo que constituem as relações mercantis do capitalismo avançado. Trata-se, conseqüentemente, de uma espécie de "relativismo sociológico", que dissolve completamente a ontologia do ser social em determinadas relações históricas de dominação.

         Adorno parece não acreditar no impacto do desenvolvimento tecnológico e científico, ou seja, das forças produtivas sobre as relações de produção, por meio das potencialidades sociais que são liberadas e das contradições resultantes. A técnica não é entendida como algo desumano, mas como um fenômeno "neutro", que recebe integralmente o seu significado (negativo) das relações sociais. Ora, se é verdade que a tecnologia não pode ser considerada abstratamente como algo "bom" ou "ruim", em termos absolutos, tampouco pode ser entendida como "neutra", se esse conceito pretender indicar passividade e relativismo total.

         Como veremos mais adiante, as análises de Benjamin e, mais recentemente, de Enzensberger, apontam noutra direção: para o reconhecimento das imensas potencialidades artísticas e políticas decorrentes da reprodutibilidade técnica, em que pese a função que desempenha na hegemonia cultural e ideológica.

         Mas Adorno e Horkheimer vêem uma orquestra afinada demais, para que possa liberar potencialidades efetivas e aprofundar contradições políticas e ideológicas. A tese de que o capitalismo gerou um caos cultural é falsa, afirmam. Filmes, rádios, jornais, paisagem urbana, "celebram o ritmo do aço", a racionalidade dos cartéis, expressando o poder do capital.

         Para os capitalistas, a estandartização seria produto inevitável da própria técnica necessária ao atendimento do consumo. Mas Adorno e Horkheimer advertem "A racionalidade técnica hoje é a racionalidade do próprio domínio, é o caráter repressivo da sociedade que se auto-aliena".10 Por outro lado, a constituição do público, que teoricamente e de fato favorece o sistema da indústria cultural, sempre usado como justificativa, faz parte do sistema e não o desculpa. Quer dizer, a indústria cultural produz também o seu público, através do embotamento cultural e da esterilização político-ideológica das massas. E depois, usa esse mesmo público como critério mercadológico para definir e justificar a qualidade e o gênero das suas produções. Porém, o consórcio que delimita a indústria cultural é mais amplo do que a relação de vassalagem do público pelo produtor imediato. "A dependência da mais potente sociedade radiofônica à indústria elétrica, ou a do cinema aos bancos define a esfera toda, cujos setores singulares, são ainda, por sua vez, co-interessados e interdependentes".11

"Indústria cultural": um balanço das críticas

         A propósito dessa caracterização da "indústria cultural", alguns problemas apontados pelos críticos merecem ser referidos:

         1) As potencialidades sociais da tecnologia são apenas vagamente admitidas, mas não consideradas efetivamente na análise. A universalização real da cultura, a ampliação gigantesca do acesso à arte e às informações, as possibilidades de uma democratização radical do processo cultural e as novas alternativas estéticas que nascem dessa base técnica, tudo isso não é levado na devida conta na teorização de Adorno e Horkheimer.

         2) Certos aspectos técnicos, considerados negativos, são absolutizados em função do papel alienador que cumprem hoje.

         3) O controle e a manipulação a que a "indústria cultural" submete as massas são consideradas quase onipotentes. Não são percebidas brechas significativas no processo cultural hegemonizado pela burguesia, ou seja, a manifestação reproduzida e ampliada de certas contradições políticas e ideológicas.

         4) A cultura tradicional é entendida como "cultura superior" e tomada como padrão. Sendo contraposta, então, à "cultura inferior", esta produzida através do sistema industrial. A grande arte burguesa (em termos de literatura, teatro, música e pintura) é assumida como único paradigma da "arte elevada". Não ficam sequer indicados, portanto, caminhos viáveis para o enfrentamento de classes no plano cultural e artístico, exceto a crítica ideológica à "indústria cultural" e à alienação que ela produz.

         5) Finalmente, a expressão "indústria cultural" cunhada para evitar uma confusão, pode gerar outra: ela insinua que é a base industrial, por si mesma, independente das relações sociais de produção, que atribui à cultura um caráter manipulatório e degradante.

         Uma das críticas mais frontais ao conceito de "indústria cultural" (ou "cultura de massa") foi feita por Alan Swingewood: "Escrevendo numa época (os anos trinta) em que parecia iminente o colapso final da democracia capitalista liberal, não como Marx havia previsto, mas com base nas forças combinadas da política totalitarista (o fascismo) e da economia totalitarista (o crescimento de monopólios e cartéis gigantescos e a fusão do capital bancário e industrial), os teóricos de Frankfurt convenceram-se de que a evolução do capitalismo precisava da destruição daquelas instituições sociais - econômicas, políticas e legais - que, agindo como mediadores entre o Estado e a 'sociedade civil', tinham continuado independentes, dando alguma proteção, se bem que parcial, contra a dominação política arbitrária".12

         Swingewood argumenta que essa tendência não se verificou e que, além do mais, existe nas formulações de Adorno, Horkheimer e Marcuse uma concepção elitista da cultura e um profundo desprezo pelas massas. E acrescenta que, na opinião dos teóricos de Frankfurt, a cultura de massa "estabelece a base do totalitarismo moderno, a remoção de toda a oposição genuína às tendências reificadoras do capitalismo moderno".13

         Para Swingewood, não existe uma "indústria cultural" ou uma "cultura de massa", no sentido de uma manipulação orquestrada racionalmente de cima para baixo, mas uma hegemonia burguesa na cultura e uma "ideologia da cultura de massa" - da qual a própria idéia da manipulação absoluta, sugerida pela Escola de Frankfurt, é um aspecto. Grandes potencialidades culturais e democráticas foram produzidas pelo capitalismo moderno e, especialmente, pelos meios de comunicação de massa. Mas o capitalismo não pode cumprir a sua promessa cultural embora forneça as condições objetivas para que seja implementada.

         "0 ideal de uma cultura democrática universal baseada na participação ativa de todos os estratos sociais é incompatível com o capitalismo, uma vez que, como uma forma de dominação, ele se assenta na crença no governo de elites cuja sabedoria superior subjuga as 'massas passivas'. O mito da massa é um alicerce tão necessário para a legitimação do capitalismo moderno quanto o mito de uma cultura de massa universal, igualitária e socialmente integradora".14

         A cultura, diz Swingewood, deve ser entendida sempre como uma práxis coletiva que envolve o conjunto de atividades pelas quais o homem humaniza o mundo natural e social. A cultura admite, por isso, uma hegemonia de classe, mas nunca pode ser subjugada a ponto de tornar-se apenas um instrumento nas mãos de uma minoria. Isso seria a abolição da própria cultura, portanto, a abolição da história e do homem.

         A limitação da crítica de Swingewood é que ela parece cair no extremo oposto da Escola de Frankfurt. Ao invés da manipulação total, a democratização e desenvolvimento da cultura genuína parecem ser a tendência natural do capitalismo, embora faça a ressalva que essa tendência não pode se realizar integralmente na sociedade burguesa.

         Sobre a crítica de Swingewood, muitas das indagações levantadas por Albino Rubim são pertinentes.15 Hoje, se repõe no plano da comunicação e da cultura a contradição entre as forças produtivas liberadas pelo capitalismo e as relações de produção. Não se trata mais, no capitalismo avançado, de uma contradição como aquela que tipificou a transição do feudalismo ao modo de produção burguês: as forças produtivas criando, diretamente, os elementos explosivos da ordem feudal pelo simples desenvolvimento da indústria, da tecnologia e da ciência. Mas, nem por isso, deixa de ser uma contradição concreta. As forças produtivas, hoje, por si mesmas, não conscientizam a classe que, fundamentalmente, antagoniza o capital (o proletariado industrial) nem aumentam seu poderio material. Não obstante, as potencialidades e possibilidades efetivas geradas pela indústria, pela tecnologia e a ciência ampliam e aprofundam as contradições ideológicas e políticas do modo de produção capitalista.

         A promessa de consumo, conforto e felicidade, cuja distância da realidade das massas é cada vez maior (mesmo nos países de capitalismo avançado), gera expectativas crescentes que podem ser mobilizadas em termos revolucionários. O capitalismo atual, no alto de sua fase imperialista e monopolista, precisa prometer o "paraíso", embora não possa cumpri-lo. Não obstante, em certo sentido, tenha gerado as condições materiais para realizá-lo.16

         Os teóricos de Frankfurt não perceberam as "forças produtivas" democratizantes e humanizadoras que estavam surgindo no campo da comunicação. Por outro lado, devemos reconhecer que Swingewood não atentou devidamente para a dimensão bloqueadora das relações de produção que, pela primeira vez, incluem na sua hegemonia ideológica e cultural um forte componente racional e manipulatório. Isso significa que o caráter restritivo das relações de produção do capitalismo avançado, com respeito ao processo artístico e cultural, não se define apenas em termos da propriedade ou controle dos meios materiais e espirituais para realizá-lo - como sempre ocorreu -, mas também como produção cultural, em grande parte, planejada e direcionada especificamente para os "de baixo".

         Esse planejamento tem seu dinamismo impulsionado pela necessidade do capital de reproduzir-se e é realizado em função de critérios basicamente mercantis. Mas seria ingenuidade pensar que, além disso, não entra nesse processo, como elemento consciente, a prescrição ideológica.

         De qualquer modo, a questão central da crítica levantada por Swingewood parece ser irrespondível pelos adeptos de Frankfurt: não pode haver um conceito abrangente, que pretenda dar conta das manifestações culturais de toda uma época, que não reconheça a dimensão contraditória inerente à práxis que o conceito de cultura necessariamente contempla.

         De outra parte, temos que admitir que a importância ainda hoje atribuída aos teóricos de Frankfurt pelo pensamento de esquerda não é casual. O fracasso de uma reflexão densa que se propõe a uma crítica radical e humanista, nunca pode ser total. Há um patrimônio a ser recuperado pela dialética da crítica debruçada sobre a crítica. Afinal, Horkheimer, Adorno, Marcuse e outros, não estiveram anos a fio refletindo e escrevendo a respeito de uma miragem. Há, de fato, uma série de fenômenos peculiares da moderna cultura burguesa, produzida nos moldes industriais em larga escala, que foram denunciados e dissecados pela Escola de Frankfurt. O predomínio do critério mercantil desde a concepção até a produção das obras, o forte traço manipulatório da ideologia dominante nessa cultura, sua tendência à padronização e ao rebaixamento do nível estético da maioria de seus produtos são algumas das características indiscutivelmente reais da cultura burguesa atual.

         A conclusão que parece se impor é a seguinte: existe um fenômeno cultural peculiar ao capitalismo avançado que exige uma conceituação teórica, seja em termos de "cultura de massa" ou "indústria cultural". No entanto, essa conceituação não pode pretender abranger a totalidade do fenômeno cultural, pois a cultura jamais se deixa submeter integralmente pela categoria mercantil. Se isso pudesse ocorrer, a cultura deixaria de ser uma práxis e, portanto, deixaria de ser cultura.

         Assim, preliminarmente, uma noção pertinente de "cultura de massa" poderia ser pensada em três direções: 1. Como tendência intrínseca ao capitalismo avançado, no sentido de dissolver a produção cultural na lógica mercantil, de negar a própria essência da cultura, tendência jamais realizável integralmente. 2. Como ideologia maniqueísta e manipulatória dominante no conjunto da produção cultural, cumprindo o papel de reprodução e reforço do status quo. 3. Como sendo um dos pólos de uma contradição mais ampla no interior da cultura burguesa contemporânea, que não é unívoca ou homogênea, mas dotada de contradições que se reproduzem e se ampliam no processo.

         A base objetiva das contradições geradas especificamente no plano da cultura pode ser indicada por dois fenômenos. Primeiro, pelo potencial cada vez mais socializante e democrático desenvolvido pelas novas tecnologias da comunicação. Em segundo lugar, em virtude da própria lógica mercantil que, embora secundariamente, tende a reproduzir também as obras com potencial crítico e transformador. Além disso, é necessário referir que as contradições estruturais da sociedade também aparecem e tendem a se reproduzir no terreno cultural.

         A lógica econômica desse movimento contraditório, que coloca limites ao domínio do capital sobre a cultura, foi desenvolvida num interessante ensaio de Albino Rubim.17 Há uma tendência crescente da mercadoria em subjugar a obra de arte e, de modo mais amplo, do capital avassalar e esterilizar a comunicação e a cultura. Mas o que denuncia as limitações teóricas da Escola de Frankfurt é que essa tendência jamais pode se realizar integralmente e, além disso, ela mesma cria suas "contra-tendências" e abre brechas para que sejam ampliadas e radicalizadas.

         No âmbito dessa discussão é que aparecem as duas perspectivas de análise do jornalismo. Aceitas globalmente as premissas teóricas da Escola de Frankfurt sobre a "indústria cultural" não há como propor um futuro melhor para o jornalismo. Ou ele permanece na mesquinharia que o caracteriza atualmente, enquanto instrumento de dominação, ou será extinto juntamente com o capitalismo.

         Vejamos isso em sua seqüência lógica: se a cultura capitalista é, essencialmente, uma "cultura de massa" nos termos frankfurtianos; se a "cultura de massa" é um mecanismo de manipulação, controle e alienação; se o jornalismo teve sua gênese como "cultura de massa" e desta é parte integrante e legítima, não há o que resgatar do jornalismo. Para pensá-lo criticamente é necessário condená-lo à morte, propor sua extinção, pelo menos naqueles aspectos que hoje o caracterizam, seja em termos da sua linguagem ou da sua forma de apreensão da realidade. Não é possível teorizar na perspectiva de continuidade do fenômeno jornalístico, exceto no sentido estrito da imprensa como tecnologia. Tampouco, pode-se admitir, obviamente, a tese de um jornalismo revolucionário, crítico e desalienador, exceto se deixar de ser jornalismo, e tornar-se outra coisa. Essa avaliação específica do jornalismo, numa perspectiva essencialmente negativa, vai adquirir sistematicidade em Habermas.

Habermas e o jornalismo: a favor do passado

         Habermas delineia três fases no desenvolvimento do jornalismo: "Sendo oriundo do sistema das correspondências privadas e tendo ainda estado por longo tempo dominada por elas, a imprensa foi inicialmente organizada em forma de pequenas empresas artesanais; nessa primeira fase, os cálculos se orientam por princípios de uma maximização dos lucros, modesta, mantida nos tradicionais limites da primeira fase do capitalismo: o interesse do editor por sua empresa era puramente comercial".18

         Nesse primeiro momento, as informações divulgadas pelos jornais correspondiam, principalmente, às limitadas necessidades econômicas e comerciais geradas pelo capitalismo nascente. Numa segunda fase, a imprensa de informação evoluiu para uma imprensa de opinião ou do chamado " jornalismo literário". Os jornais tornaram-se instrumentos da luta política e partidária, empenhados na conquista e legitimação de uma "esfera pública burguesa" em oposição à velha sociedade feudal. "Neste momento - diz Habermas, sobre esse segundo período -, a intenção de obter lucros econômicos através de tais empreendimentos caiu geralmente para um segundo plano, indo contra todas as regras de rentabilidade e sendo, com freqüência, desde o começo, atividades deficitárias".19

         A terceira fase seria como um retorno ao espírito comercial da primeira, só que agora em novas bases de capital e tecnologia, não mais artesanal, mas empresa capitalista típica de uma etapa histórica mais desenvolvida. Para que isso ocorresse, convergiram uma série de fatores políticos e econômicos:

         " Só com o estabelecimento do Estado burguês de Direito e com a legalização de uma esfera pública politicamente ativa é que a imprensa crítica se alivia das pressões sobre a liberdade de opinião; agora ela pode abandonar a sua posição polêmica e assumir as chances de lucro de uma empresa comercial. Na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, uma tal evolução da imprensa politizante para uma imprensa comercializada ocorre mais ou menos à mesma época durante os anos 30 do século XIX".20

         Para Habermas, essa terceira etapa significa uma espécie de negação das potencialidades desenvolvidas e realizadas na segunda fase, ou seja, na etapa de partidarismo político da imprensa, quando ela representava, efetivamente, a constituição de uma ''opinião pública" das pessoas privadas como cidadãos. Na terceira etapa, a imprensa será a expressão pública de proprietários privados.

         "A colocação de anúncios - afirma - possibilita uma nova base de cálculos: com preços bastante mais baixos e um número muito maior de compradores, o editor podia contar com a probabilidade de vender uma parte proporcionalmente crescente do espaço de seu jornal para anúncios. A esta terceira fase da evolução se aplica a conhecida definição de Bücher de que o jornal assume o caráter de um empreendimento que produz espaço para anúncios como uma mercadoria que se torna vendável através da parte reservada à redação".21

         E para não deixar dúvida sobre a subsunção do fenômeno jornalístico na atividade comercial, como negação daquele aspecto que considera essencial ao jornalismo (desenvolvido na segunda fase), ele conclui: "A história dos grandes jornais na segunda metade do século XIX demonstra que a própria imprensa se torna manipulável à medida que se comercializa. Desde que a venda da parte relacional está em correlação com a venda da parte dos anúncios, a imprensa, que até então fora instituição de pessoas privadas enquanto público, torna-se instituição de determinados membros do público enquanto pessoas privadas - ou seja, pórtico de entrada de privilegiados interesses privados na esfera pública".22

         Segundo Habermas, a contradição que se evidencia hoje ao nível da imprensa é aquela entre um "jornalismo crítico" e a "publicidade jornalística", esta exercida com finalidades meramente manipulatórias. O "jornalismo crítico" ao qual ele se refere espelha-se (ou, pelo menos, é inspirado) naquela segunda fase, no chamado jornalismo "literário" ou "de opinião". A forma moderna do jornalismo, cujo estilo e natureza foram cunhados pela estrutura empresarial mais desenvolvida, aparece na reflexão de Habermas indissoluvelmente ligada ao aspecto publicitário-comercial ou ideológico-manipulatório. O jornalismo propriamente dito, com as características funcionais e técnicas que o tipificam atualmente, não mereceria ser preservado e desenvolvido em seus aspectos inovadores e peculiares.

         A sua unilateralidade na análise histórica do jornalismo manifesta-se, sobretudo, na passagem da segunda fase (política) para a terceira (comercial-publicitária), quando o único sujeito efetivo é o capital. Só ele pratica a ação e realiza as mudanças. Vejamos como isso acontece:

         "Se, no começo, dentro de uma imprensa diária motivada em primeiro lugar politicamente, a reorganização de certas empresas sobre uma base exclusivamente comercial podia representar tão somente uma simples possibilidade de investimento capaz de gerar lucros, em breve isto se tornou uma necessidade para todos os editores. A ampliação e o aperfeiçoamento da base de capital, uma elevação do risco econômico e, necessariamente, a subordinação da política empresarial a pontos de vista da economia de mercado".23

         Habermas quer demonstrar que, através do "estabelecimento do estado de Direito burguês", foi possível à imprensa abandonar sua posição polêmica, pois a "esfera pública" já era uma conquista legitimada. Além disso, é incontestável que o caminho natural - dentro da evolução das relações capitalistas - seria o das empresas artesanais de jornalismo transformarem-se em empresas de vulto, submetidas completamente pelo capital em sua funcionalidade.

         Não obstante, as empresas precisam vender mercadorias que, antes de se constituírem como valores de troca, como condição para isso, devem ser valores de uso.24 Devem ser objetos ou serviços úteis. Sabemos que o capitalismo cria, constantemente, novas necessidades, muitas delas falsas e degradantes,número de referência aqui e os produtos correspondentes para supri-las. Seguindo esse raciocínio, só há duas alternativas a serem consideradas. Ou as modernas empresas jornalísticas criaram nos consumidores a falsa necessidade das notícias e informações, tal como são elaboradas atualmente, ou então seguiram a tendência do mercado que estava se criando com o surgimento de novas necessidades reais.

         Quer dizer, ou os capitalistas inventaram, conforme seu arbítrio, o moderno jornalismo e as necessidades que ele satisfaz, ou perceberam as novas e reais necessidades (da informação de tipo jornalístico) e fizeram delas uma fonte de lucros. Esta última alternativa parece mais viável, inclusive porque não vê a história sendo feita maquiavelicamente segundo a vontade soberana e autônoma do capital.

         O fato de que os jornais vendem espaço publicitário aos anunciantes, por meio do espaço ocupado pelas notícias, indica apenas que são empresas capitalistas como as demais, funcionando segundo o critério do lucro e o objetivo da acumulação. Indica que o seu produto final, como quase tudo no capitalismo, é mercadoria. Mas nada nos diz, ainda, sobre a natureza do produto, o valor de uso que lhe é subsistente. Além disso, o fato de que o valor de troca é dimensão determinante da notícia jornalística, submetendo seu valor de uso, não constitui um traço distintivo em relação as demais empresas do capitalismo contemporâneo, administradas sob o ponto de vista do marketing. A mercadoria-notícia, ou seja, a informação jornalística comercializada, continua tendo um valor de uso cujo conteúdo, por definição, jamais pode ser dissolvido ou abolido, pois ele é condição para a realização do produto como valor de troca. Mais concretamente, essa persistência do valor de uso da notícia se manifesta do seguinte modo: o espaço ocupado pelas notícias e reportagens, mesmo que secundários conforme a ótica puramente econômica, deve corresponder a uma necessidade do público consumidor para que o espaço publicitário seja valorizado.

         Portanto, aquelas análises - na perspectiva de Habermas - que tentam explicar o jornalismo como veículo e forma da difusão publicitária no capitalismo (embora haja uma concreta articulação ideológica entre publicidade e conteúdo dominante nas notícias), acabam abolindo o objeto que pretendem explicar.

         Na análise de Habermas, as três fases da evolução do jornalismo aparecem separadas, ou melhor, vinculadas tão somente por necessidades exteriores: econômicas num primeiro momento, políticas no segundo e, finalmente, econômico-sociais. Mas estas necessidades que fazem surgir o jornalismo moderno (na sua funcionalidade "industrial", sua forma de apreensão da realidade e sua linguagem) estão ligadas, principalmente, a interesses publicitários e manipulatórios. Sua análise não percebe um movimento efetivo de superação dialética. Na terceira fase do desenvolvimento do jornalismo, quando ele é exercido já nos moldes atuais, há uma negação e incorporação dos dois momentos anteriores através da constituição de uma necessidade nova. Não se trata mais de uma questão estritamente econômica ou estritamente política, mas de uma sociedade cujas relações sociais - em virtude do movimento econômico e político que a transformou carecem de informações de natureza jornalística.

         Temos que considerar, portanto, que os dois primeiros momentos são etapas constitutivas do jornalismo - ambos formam sua "pré-história" -, pois nestas duas primeiras fases o jornalismo responde fundamentalmente às necessidades de classe da burguesia (primeiro econômicas, depois políticas) e não a uma carência ontológica da complexidade e integração universal que se constitui a partir do capitalismo.

Capitalismo e jornalismo: irmãos gêmeos?

         Ciro Marcondes Filho segue as pegadas de Habermas:

         "Considera-se jornalismo propriamente dito a atividade que surge em um segundo momento da produção empresarial de notícias, e que se caracteriza pelo uso do veículo impresso para fins - além de econômicos políticos e ideológicos. Somente no momento em que a imprensa passa a funcionar como instrumento de classe é que ela assume o seu caráter rigorosamente jornalístico".

         Na verdade ocorre exatamente o contrário: a imprensa só assume um caráter rigorosamente jornalístico quando ultrapassa o seu funcionamento estrito enquanto instrumento de classe. Para Marcondes Filho, com seu "marxismo" diretamente inspirado em Habermas e sob a grande sombra da árvore de Frankfurt, o capital é uma categoria que adquire um poder quase místico: o capital possui um espelho mágico que faz o jornalismo aparecer apenas para mirar-se nele e reproduzir as condições da sua acumulação.

         A imprensa e o capitalismo, diz Marcondes Filho peremptoriamente, "são pares gêmeos". Ora, a imprensa surgiu com o desenvolvimento do capitalismo, mas daí a dizer que são "pares gêmeos", vai uma distância que somente um marxismo diminuído - utilizando o método do "não é mais que"- poderia percorrer. A imprensa "não é mais que" fruto do processo de produção capitalista! O jornalismo "não é mais que" a informação transformada em mercadoria! A notícia "não é mais que" uma forma de circulação da ideologia burguesa!

         Esse tipo de raciocínio salta do imediato à generalidade abstrata, desprezando as mediações que se constituem como um movimento pelo qual o concreto é apanhado em sua produção histórica, como uma espécie de "sedimentação" ontológica da realidade social. Será que Balzac "não é mais que" um escritor pequeno-burguês irresponsável e notívago? Ou é um artista que o mundo burguês em ascensão elevou à condição de um legado para a Humanidade posterior? Poder-se-ia questionar: muito bem, o jornalismo é informação transformada em mercadoria. Mas nem todas as mercadorias são iguais. Além disso, será que todo o jornalismo será sempre, inevitavelmente, mercadoria?

         No capitalismo, o jornalismo é atravessado pela ideologia burguesa como uma fruta é passada por uma espada - se me permite João Cabral. Ou seja, de modo flagrante, evidente e doloroso. Nem por isso fruta será sinônimo de espada. A lógica mercantil complexificou e unificou o mundo dos homens, tornou-o mais dinâmico e universalmente integrado. Ela preside os rumos desse processo em todos os campos da atividade social. Logo, é o econômico que pressupõe e direciona o desenvolvimento das necessidades coletivas da informação em geral e, em particular, do jornalismo. Porém, o modo de produção capitalista não existe apenas para satisfazer os interesses particularistas da burguesia, mas também como um momento da história universal. Uma dimensão significativa da sua existência é permanente e, outra, é perecível e será destruída se forem conquistados o socialismo e o comunismo.

         Assim, as necessidades geradas pelo capitalismo são também moedas de duas faces: uma particular, específica do sistema burguês, e outra universal, que se agrega ao gênero - ou, pelo menos, a um longo período da história posterior. Nesse sentido, o capitalismo implanta uma tal necessidade e possibilidade da informação em termos quantitativos que qualquer sociedade posterior (se não for a barbárie pós-guerra nuclear) necessariamente terá de herdar esse legado.

         Em termos qualitativos a questão se repõe: o capitalismo produziu a necessidade de um gênero de informação - por meio do qual também reproduz as bases econômicas e ideológicas do sistema -, que é precisamente fruto do jornalismo contemporâneo, o qual será herdado por qualquer sociedade que suceder a atual.

         Depois de reduzir inteiramente a imprensa ao capitalismo, o jornalismo à empresa e a notícia à mercadoria, Marcondes Filho é compelido a sugerir a possibilidade de extinção do jornalismo. "Dificilmente pode-se imaginar a atividade jornalística, nascida no núcleo e dentro da lógica do modo de produção capitalista, como algo muito distinto dele. Ela só existe pelo menos nos termos que conhecemos hoje - transformando informações em mercadorias e colocando-as transformadas, alteradas, às vezes mutiladas segundo orientações ideológico-políticas de seus artífices, à venda. Neste sentido ela é estruturalmente montada como empresa capitalista e desaparece com a supressão das condições de sobrevivência do capital".

         A expressão "pelo menos nos termos que conhecemos hoje", referindo-se à atividade jornalística, fornece a sutil ambigüidade que permite ao autor sustentar um equívoco e, ao mesmo tempo, ficar em guarda contra possíveis interpelações teóricas. Mais adiante, a expressão "neste sentido", que precede a idéia da extinção do jornalismo prossegue o jogo de espelhos. Fica a dúvida se ela se refere à atividade jornalística "pelo menos nos termos que conhecemos hoje", ou então a essa atividade "transformando informações em mercadorias...". São duas coisas distintas, apesar de estarem historicamente relacionadas. O jornalismo, "nos termos que conhecemos hoje", envolve uma forma específica de apreensão e reprodução da realidade, uma determinada funcionalidade técnica e uma linguagem. E se é verdade que, hoje, hegemonicamente, essa atividade endossa a ideologia burguesa e os interesses dominantes com enorme eficácia, por que imaginar que para fazer o oposto ela deve deixar de ser jornalística?

         Pretendendo resgatar alguma coisa do jornalismo, depois de extinguí-lo, Marcondes Filho - tal como uma criança que desmonta um brinquedo de corda e não encontra nada de interessante - é obrigado a tomar a imprensa "romântica" do século passado como paradigma para o futuro. Ele prossegue no rastro de Habermas:

         "Por outro lado, a imprensa pode, na medida em que explore o lado informativo, seu valor de uso especifico, atuar nas discussões políticas: assim o fizeram seus corifeus nas discussões político-partidárias, em que se envolveu a imprensa no século XIX. As formas de jornalismo oposicionista, sindical, partidário operam a imprensa - sem ser jornalisticamente, na forma apontada no parágrafo anterior - buscando recuperar ou desenvolver a transmissão de informações não conformistas".

         Dessa forma, o papel do jornalismo, enquanto atividade antiburguesa fica restrito a sua atuação "nas discussões político-partidárias". O autor não consegue perceber as necessidades reais de informação supridas pela imprensa diária. Ora, desse modo, atuando apenas "nas discussões político-partidárias", essa imprensa não terá condições de produzir as informações que correspondem à imediaticidade dos fenômenos, tal como são tratados pela imprensa diária. Assim, não será explorado seu "valor de uso específico" - que está ligado à natureza das informações singularizadas que produz -, mas seu valor de uso genérico, enquanto informação de qualquer espécie.

         Sem dúvida, é preciso superar tais análises "economicistas" e dissolventes do jornalismo, sem deixar de recuperar sua intenção crítica em relação a ideologia burguesa que, hoje, encontra na atividade jornalística um dos modos importantes de sua reprodução. Certamente, o controle, a manipulação e o engodo são partes integrantes do jornalismo burguês. Mas deduzir a totalidade do fenômeno jornalístico, como objeto teórico, a partir de afirmações como a de Geyrhofer - de que no jornalismo "o valor de uso é subordinado ao valor de troca",-, é entrar num beco sem saída. Ou melhor, num caminho cuja única saída é o retrocesso ao "jornalismo literário" do século passado. Se o teórico da saúde pública aplicasse o mesmo método ao problema dos remédios, teria de propor a abolição de todos aqueles atualmente vendidos nas farmácias.

Mattelart: entre Frankfurt e o populismo

         O belga Armand Mattelart, depois de estudar na França, foi para o Chile onde, durante o governo da Unidade Popular, produziu seus trabalhos mais importantes. Embora tenha feito o percurso clássico dos missionários que saíam da Europa para "civilizar" os povos do Terceiro Mundo, Mattelart não era um deles.

         "Enquanto o missionário traz uma civilização e respostas prontas, o Mattelart que abandonava a Europa, na década de 60, era um homem disposto a mergulhar nos problemas e na busca de soluções empreendidas pelos povos explorados dos países subdesenvolvidos e a se envolver integralmente nessa luta. Não há, na vida e na obra de Mattelart nem a arrogância da superioridade cultural dos missionários civilizadores, nem a pretensa neutralidade científica dos ‘scholars’ ou dos nossos conhecidos ‘brazilianists’. Mesmo porque ele próprio admite que sua formação, como cientista social, foi orientada pela problemática que muito mais do que um simples objeto de estudo, a América Latina era, para Mattelart, algo a ser vivido, com todas as conseqüências que pode envolver essa disposição.

         O grande mérito de Mattelart, que aparece nitidamente em seus escritos, é um sólido compromisso político com os explorados e oprimidos, ou seja, uma preocupação permanente com as vinculações entre uma visão crítica da comunicação e da cultura, como formas de dominação, e as práticas políticas de enfrentamento e busca de alternativas populares e democráticas.

         Mattelart não se considera ligado a nenhuma escola de pensamento, acha que a linha de suas reflexões é produto quase exclusivo de suas experiências e preocupações práticas. Porém, Mattelart não criou nenhuma nova teoria da comunicação ou da cultura. Seus temas - e o enfoque pelo qual são abordados - são muito característicos da Escola de Frankfurt: crítica à dominação ideológica e cultural através dos meios de comunicação de massa, considerada em oposição à espontaneidade da cultura popular, no caso, às culturas nacionais; crítica ao sistema industrial e financeiro do capitalismo avançado (no caso, o imperialismo), entendido como a base material para uma cultura totalmente manipulada:

         "Que tipo de aparelho ideológico acompanha o fenômeno da multinacionalização? A cada fase do processo de acumulação do capital corresponde um cidadão sob medida que viverá, no conjunto de suas práticas sociais, o caráter legítimo e natural dessa acumulação. A cada fase, correspondem mecanismos de condicionamento que garantirão o que os estrategistas da guerra do Vietnã denominavam sem inúteis precauções oratórias a conquista dos corações e das mentes".

         Finalmente, um dos temas principais de Mattelart é a crítica ideológica da cultura imperialista, a partir da denúncia da verticalidade da comunicação (de cima para baixo), do distanciamento entre emissor e receptor (que seria a mesma entre produtor e consumidor), da linguagem repressiva e publicitária que veicula essa ideologia, e do universo fragmentado que reproduz como um reforço da ordem burguesa e dos seus mitos.

         Pode-se observar que, de fato, mesmo sem pretender identificar-se com uma corrente determinada de pensamento, as reflexões de Mattelart - seus temas e as principais categorias que utiliza - estão, sem dúvida, situadas no contexto formado pela tradição da Escola de Frankfurt. A diferença é que Mattelart escreveu do interior de uma práxis política, preocupado e comprometido com ela, enquanto que a maioria dos teóricos de Frankfurt (notadamente Adorno e Horkheimer) exerciam uma crítica puramente intelectual. Assim, ao invés do "pessimismo" e de uma certa tendência "elitista" que perpassa os textos destes últimos, Mattelart se propôs a pensar alternativas no sentido de "devolver a palavra ao povo".

         Uma das críticas pertinentes às idéias de Mattelart foi realizada por Ciro Marcondes Filho, indicando que o conceito de "imperialismo cultural" que norteia grande parte dos seus escritos baseia-se, tão somente, numa transposição da realidade econômica e tecnológica para o campo cultural e ideológico.

         "Assim insuficientes e superficiais passam a ser as compilações realizadas por Armand Mattelart, particularmente a partir de 1974 (quando findou sua experiência política com os MCM no Chile sob o governo de Allende) e suas investidas na tentativa de abarcar o fenômeno da interferência americana na cultura latino-americana e suas conseqüências".

         A esse reducionismo tecnológico da dominação ideológica se deve também, como aponta Marcondes Filho, sua posição ambígua sobre os modernos meios de comunicação de massa, sugerindo às vezes um conteúdo antitecnológico ao seu conceito de "comunicação alternativa". E acrescenta mais adiante:

         "Há uma quantidade enorme de sistemas eletrônicos elaborados para o controle das pessoas, de comunidades e de países inteiros. Isso é real. Nesses trabalhos o que não se justifica é centrar a preocupação em sua existência supondo que a sociedade que os mantém seja coerente, lógica, racional. Muito pelo contrário, o que prima na sociedade industrial, e particularmente na capitalista ocidental, é a anarquia, a irracionalidade, a imprevisibilidade, em suma, as incríveis possibilidades de ruptura".

         O mesmo autor indica também que a análise da cultura feita por Mattelart apresenta um viés populista e nacionalista como decorrência das próprias categorias utilizadas, que estabelecem uma polarização simplista entre a cultura imperialista e a cultura nacional e popular. Assim, "tudo que é americano ou de sua cultura é visto como necessariamente ruim, reacionário, etc. Mutatis mutandis, o que é nosso, a nossa cultura popular (com seus preconceitos, seus aspectos retrógados, ignorantes), é necessariamente bom e deve ser preservado e resguardado".

         Tais contradições da cultura de massa apontadas por Marcondes Filho não são consideradas quando ele aborda o problema do jornalismo no ensaio Imprensa e capitalismo ou na sua tese de Livre Docência O capital da notícia (ambos já referidos). Nesses trabalhos, o fenômeno jornalístico é encarado como algo unívoco, uma forma de produção de mercadorias que cria apenas "uma aparência de valor de uso". Mas voltemos às idéias de Armand Mattelart:

         "Em sua interpretação simplista enfatiza-se de tal maneira a característica de dependência - diz Ingrid A. Sarti - que se afasta a essência do problema, ou seja, sua natureza capitalista. Como a dependência passa a ser a essência e não o complemento, considera-se todo aspecto de uma ideologia capitalista como contrário aos interesses da América Latina na medida em que reforça a 'dependência' e contraria o curso 'natural' do desenvolvimento latino-americano. Na sua perspectiva mecanicista, os teóricos da 'dependência cultural' não puderam tampouco evitar o determinismo ao considerar a relação entre o ‘centro' e a periferia do capitalismo, numa abordagem que privilegia o 'externo' e acaba por transformar o imperialismo numa luta entre nações".

         De fato, o conceito de "dependência cultural" - se elevado ao status teórico-explicativo - apresenta os mesmos problemas do conceito de "dependência econômica", o qual empobrece as relações dinâmicas e multifacetadas (embora ainda implicando subordinação) do capitalismo na sua etapa imperialista. Vejamos o que diz o próprio Mattelart: "Para el proyecto imperialista, el medio de comunicación es el vector de la participación: una participación epifenoménica a los símbolos de la metrópoli, que dá a las masas la ilusion de integración universal, incluso les confiere una audiencia que las condiciones de la vida social no pueden brindar a las grandes mayorías".

         As classes dominantes internas aparecem aqui apenas como intermediárias da dominação metropolitana. Em conseqüência, há uma "cultura externa", transplantada com finalidades manipulatórias, que dá às massas apenas uma ilusão de integração universal. Eis o esquema simplista da "dependência cultural", que acaba jogando a dimensão ideológica do antagonismo entre proletariado e burguesia para segundo plano, favorecendo o projeto de uma "cultura nacional" independente - autenticamente "popular", como diriam seus defensores -, ao invés de reconhecer a necessidade de uma dialética com a cultura universal sob uma ótica de classe.

         O próprio autor reconheceu, em parte, a veracidade de críticas desse gênero. Nos anos 70, afirma, a teoria de Althusser dos "aparelhos ideológicos do Estado" nos auxiliou para seguirmos na direção de uma teoria crítica de comunicação, à medida que nos oferecia uma visão dual da sociedade: dominantes e dominados. Mas essa teoria, acrescenta Mattelart, ignorava as contribuições de Gramsci e de Hegel sobre a questão da sociedade civil. Neste sentido, é importante reanalisar os aparelhos de comunicação não só como reprodutores das relações sociais, mas também como lugares de produção".

         "É aí que vão aparecer problemas - acrescenta Mattelart- que, em geral, temos deixado de lado. Por exemplo, o fato de que a cultura de massa, se é um lugar de negação da cultura dos setores subalternos, também é um lugar em que os setores dominantes são obrigados a aceitar a existência de outras culturas dentro de sua sociedade".

         Não obstante, podemos notar que a autocrítica é parcial. A cultura de massa não é apenas o "lugar de negação da cultura dos setores subalternos", mas também o de afirmação dessa cultura. Não é apenas "um lugar em que os setores dominantes são obrigados a aceitar a existência de outras culturas", mas também o lugar do nascimento de ''outras culturas" que não aquela que representa os interesses dominantes.

         Além do mais, Mattelart não localiza com precisão a origem dos seus equívocos. O conceito de "aparelhos ideológicos do Estado", sugerido por Althusser, é muito simplista para explicar as críticas da cultura burguesa desenvolvida por Mattelart. Se ele permite um discurso articulado sobre ideologia, não possibilita tratar, nem grosseiramente, as complexidades da cultura. A principal vertente que está por trás do discurso de Mattelart, as premissas teóricas que o sustentam, são aquelas da Escola de Frankfurt, especialmente a noção de "cultura de massa" (chamada de indústria cultural) e suas decorrências.

         A noção de "aparelhos ideológicos de Estado" é recolocada, por Mattelart, no contexto da tradição de Frankfurt. Ao "pessimismo" e "elitismo" dessa tradição, como típico intelectual radical da década de 60, ele contrapôs o subjetivismo da "revolução cultural" chinesa e suas propostas "alternativas" de comunicação e produção cultural.

         Sua concepção sobre o ''jornalismo burguês" e a proposta que apresenta em oposição a ele estão, sem dúvida, perfeitamente inseridas na tradição de Frankfurt e, especialmente, no tipo de enfoque feito por Habermas.

         "La realidad que captará el periodista, fiel observante de la norma burguesa, no será sino la ilusión objetiva, la apariencia empírica o el mundo de la superficie, vale decir, el mundo de la falsa conciência, el universo de la falsa armonía social y de la ilusoria coherencia del aparato de dominio. (. . .) En estos términos, la descripción de la realidad - verdadera yuxtaposicíón atomística - alimentará el conocimiento de la racionalidad dominante y finalmente perpetua su legitimidad y necesidad".

A alternativa oferecida não escapa à limitação que está presente nos pressupostos da crítica:

         "Si el periodista no quiere ser cómplice de la reactualización cotidiana de la opresión y explotación, precisa superar esta noción de realidad cotidiana de la opresión y explotación, precisa superar esta noción de realidad manifiesta y vincular la noticia con el acontecer histórico, vale decir, reconoctarla con la realidad contradictoria y conflictual donde precisamente estas contradicciones y conflictos niegan la imagen armónica de la sociedad que subtiendem la verdad y la veracidad que impone una clase. No existen hechos inteligibles si no se los ubica previamente en una situación y en el período en el que se desarrollan. Limitarse a 'describir' los hechos significa prescribir el comportamiento que predica el sistema, dejar a la institucionalidad represiva y al marco valorativo de la dominación la dinámica de la decodificación".

         Não há como deixar de perceber um paralelo entre essa tese de "vincular a notícia com o acontecer histórico", e a idéia de Habermas - endossada por Marcondes Filho - de um jornalismo crítico semelhante ao jornalismo partidário do século passado. Em comum, nota-se a desconsideração das mediações especificamente jornalísticas, cujas técnicas foram desenvolvidas pelo moderno jornalismo empresarial, sob a égide de uma ideologia da "objetividade" e "neutralidade" da notícia. As técnicas do jornalismo burguês moderno, em função dessa tomada de consciência da ideologia que as justifica, são integralmente descartadas como mero subproduto ideológico.

         É verdade que Mattelart, às vezes, se refere às mediações técnicas no sentido jornalístico e reivindica sua apropriação pelas massas. No entanto, trata a questão como se tais técnicas fossem elementares e pudessem ser rapidamente assimiladas por milhões de operários e camponeses. Isso é verdade apenas em parte. Ou melhor, é apenas uma pequena parte da verdade. Uma certa dose de talento e uma capacitação elementar fazem um ''jornalista medíocre", como de resto fazem um médico, um engenheiro ou um advogado medíocres. Mas para formar um jornalista competente é necessário ou um grande talento (que não surge aos milhares) ou, pelo menos, uma boa capacitação técnica e profissional. Ora, se o jornalismo comprometido com o status quo atingiu esse nível de elaboração, não há por que exigir menos de um jornalismo situado na perspectiva dos interesses proletários e populares.

         Assim, dar realmente a palavra ao povo significa, de fato, como diz Mattelart, muito mais do que oferecer o microfone ou a máquina de escrever aos populares, pois isso já é feito hoje, em certa medida, pelos jornais (cartas à redação), rádios e TVs (entrevistas, pesquisas, etc.). Trata-se, fundamentalmente, de criar as mediações e os canais adequados para que os conteúdos sociais (o plural aqui é indispensável) que, antes eram desprezados na comunicação, passem a ter hegemonia no processo. O que é diferente de manipular o meio de comunicação diretamente.

         Esses "canais" e essas "mediações" constituem precisamente o patrimônio técnico-científico, que envolve desde a eletrônica até as técnicas e (em alguma medida) as artes jornalísticas. Subestimar esses fatores na sociedade contemporânea é como pensar que o artesanato poderá substituir a indústria moderna ou, então, que nesta última os trabalhadores poderão dispensar os engenheiros e técnicos.

         Vale assinalar, também, outro aspecto da concepção de Mattelart. Ele acredita que limitar-se a "descrever" os fatos tal como ocorre com o jornalismo burguês, significa "deixar à institucionalidade repressiva e ao marco valorativo da dominação a dinâmica da decodificação". Na verdade, essa descrição já contém, internamente, sua própria valoração coincidente com os marcos do sistema. Intrinsecamente, o relato jornalístico de um fato singular já contém uma dimensão de particularidades e universalidade, sob a forma viva do acontecimento.

         Não se trata de um simples "fragmento", um "átomo", descrito positivamente como algo isolado e, por isso, recebendo a valoração como um influxo externo da ideologia dominante. Todo o relato jornalístico, toda notícia ou reportagem, reproduz os fatos através de uma complexa operação subjetiva. O resultado desse processo será, sempre, aquilo que podemos chamar de singular significativo, isto é, o produto de uma modalidade de apreensão subjetiva que supera o particular e o universal no interior da singularidade do fato jornalístico. Por isso, um fato jornalístico não é uma objetividade tomada isoladamente, fora de suas relações históricas e sociais, mas, ao contrário, é a interiorização dessas relações na reconstituição subjetiva do fenômeno descrito.

         Colocado o problema dessa maneira podemos conceber a possibilidade de um jornalismo informativo - que se utilize de muitas conquistas técnicas e funcionais adotadas pelos jornais burgueses - com outra perspectiva de classe e outra ideologia.

Mattelart e a cultura: o paradigma do artesão

         Já indicamos que as premissas teóricas de Mattelart combinam três elementos: a crítica da manipulação produzida pela "cultura de massa", com base na herança de Frankfurt; um viés populista e nacionalista no terreno político, aliado ao subjetivismo que superestima as possibilidades das massas em se apropriarem do manancial técnico acumulado; e, nesse contexto, a noção althusseriana de "aparelhos ideológicos do Estado", que reforça a idéia de uma cultura produzida integralmente de modo artificial, com a finalidade de reproduzir a dominação. Vejamos, agora, um texto onde aparecem mais claramente as conseqüências dessa combinação:

         "En un proceso revolucionario se trata de desmitificar este concepto de colonización de una clase por otra, invirtiendo los términos autoritarios, que suelen desfrazarse de un cariz paternalista y estableciendo un flujo comunicativo entre emisor y receptor. Es decir, se trata de hacer del medio de comunicación de masas un instrumento donde culmina la práctica social de los grupos dominados. El mensaje ya no se impone desde arriba, sino que el pueblo mismo es generador y el actor de los mensajes que le son destinados".

         Essa tese de que "o povo mesmo" deve ser o gerador das mensagens, se não for tomada como uma frase de efeito - o que seria um populismo ainda pior -, é de uma pobreza teórica evidente. Ela corresponde, sem dúvida que em nível diferente, à tese da autogestão sobre a economia, proposta de índole pequeno-burguesa que toma a solução da alienação mercantil de modo absolutamente idealista. Ou seja, como o controle imediato dos indivíduos sobre as "suas" condições de produção, não percebendo aquilo que o capitalismo avançado tornou óbvio: que as condições de produção de quaisquer trabalhadores, seja onde for, constituem parte de uma rede universal de relações, uma totalidade que só pode ser dominada, politicamente, na relação com esse todo. E se é verdade que, em certo sentido, a distância entre emissor e receptor é a mesma que existe entre produtor e consumidor - como já afirmava a Escola de Frankfurt e Mattelart repete -, o proletariado e os setores revolucionários devem controlar o conjunto das condições de produção, incluindo aí a informação e a cultura como uma totalidade, isto é, politicamente. O que é muito distinto de "devolver a palavra ao povo", uma idéia ingênua que, entre outras coisas, não leva em conta que o "povo" jamais teve acesso ao tipo de "palavra" que agora se pretende devolver-lhe: os jornais, o rádio, a televisão e os demais meios-eletrônicos de comunicação.

         Além disso, a generalidade da expressão "povo" implica conseqüências políticas. O povo, como declarou o poeta, não é o cão, enquanto o patrão é o lobo. "Ambos são povo. E o povo sendo ambíguo é o seu próprio cão e lobo".

         Mais adiante, Mattelart acrescenta: "La definición del pueblo en tanto protagonista implica, sobre todo, que las clases trabajadoras elaboren sus noticias y las discutan. Eso significa que pueda ser el emisor directo de sus propias noticias, de su comunicación". Mas ele reconhece que essa meta pode ser viável apenas em termos de uma comunicação artesanal. E, além disso, que existem jornalistas profissionais, inclusive de esquerda, trabalhando em veículos modernos e representativos, sem que essa representavidade, no entanto, tenha sido formalmente homologada pelas bases populares. Após asseverar que, no socialismo, embora não deva desaparecer o jornalista, deverá desaparecer o "periodismo representativo, tal como lo concibe la burguesia", oferece um conselho aos jornalistas:

         "En la nueva perspectiva - y con ritmos muy distintos - se trata de que el periodista reciva su mandato del poder popular y no merced a una delegación formal, sino integrando todas las líneas que permitam que através de él, el pueblo no sea defraudado en su expresión; que cumpla el papel de monitor del sentido".

         A preocupação central de Mattelart é com os meios artesanais de comunicação, pois ele vê a cultura produzida pelos meios de comunicação de massa - num processo revolucionário ou de construção do socialismo - como o desaguadouro de todo um processo, cujo sentido seria definido nas atividades culturais elementares levadas a efeito de modo artesanal pelo povo. No entanto, é uma ilusão acreditar que os modernos meios de comunicação de massa possam, de fato, funcionar tão somente como a ponta final da cadeia de produção da cultura.

         Na realidade, ocorre o oposto: os meios de comunicação de massa são, hoje, em qualquer sociedade, os verdadeiros "monitores de sentido" do processo como um todo, os aparatos que presidem o conjunto da produção cultural e informativa, fornecendo motivos, estilos, temas, gêneros, pautas e novos rumos. E nisso não dependem do capitalismo. É evidente que essa orquestração feita pelos meios de comunicação de massa, sobre o conjunto da comunicação e da cultura, não funciona nunca como uma imposição, uma relação pura e simples de manipulação.

         Há uma dialética entre o centro do sistema e todas as suas partes (que podem assumir conteúdos diversos), conduzindo à produção e reprodução da cultura e da informação, na qual o papel das classes, dos grupos organizados e dos indivíduos é sempre irredutível. Mas o centro, o núcleo do poder que qualifica o processo no seu conjunto e lhe fornece os rumos, é constituído pelos meios de comunicação de massa.

         A questão fundamental portanto, para construir novos rumos e outra hegemonia ideológica para o conjunto da cultura, na transição ao socialismo, é a definição e o controle, pelas massas revolucionárias organizadas, da política cultural que vai se expressar pelos meios de comunicação avançados. Essa política vai determinar inclusive, a absorção da criatividade das massas no processo em seu conjunto.

         Assim, mais importante que a "comunicação alternativa", limitada em seu potencial técnico, é a luta pelos espaços no sistema de comunicação de massa e a conquista de veículos tecnicamente avançados.

         O problema é que Mattelart entende os meios de comunicação apenas como meios, ou seja, mediações usurpadas pelas classes dominantes, impedindo que o povo fale diretamente a si mesmo. Algumas dessas mediações, inclusive pela sua natureza técnica, são consideradas instrumentos de fragmentação das massas, favorecendo a manipulação coletiva e a ruptura de relações sociais mais criativas.

         Implicitamente, o modelo de comunicação adotado como paradigma é o mesmo de Frankfurt: o modelo tradicional da cultura que, basicamente, envolvia relações interpessoais diretas, tanto na comunicação em geral como na arte. Hoje, essas relações se libertaram da imediaticidade a que estavam confinadas e, objetivamente, assumem uma dimensão universalmente humana, bem como um potencial humanizador jamais atingido antes.

         Ao não considerar a ambivalência da cultura no capitalismo contemporâneo, ficando nos marcos de uma crítica da manipulação imperialista; ao não reconhecer a impossibilidade das massas assimilarem todas as complexas mediações técnicas e artísticas dos meios de comunicação avançados, caindo numa espécie de subjetivismo populista; enfim, ao não perceber as imensas potencialidades culturais, artísticas, políticas e informativas dos meios de comunicação de massa, Mattelart ficou impedido de esclarecer a especificidade do fenômeno do jornalismo e seus desdobramentos históricos.

Notícia: apenas um produto à venda?

         A tradição da Escola de Frankfurt é um espectro que ronda as abordagens sobre o jornalismo. Mesmo entre os autores que se colocam numa perspectiva ideológica pouco crítica em relação ao capitalismo, comparecem pressupostos daquela visão, evidentemente que recombinados numa salada eclética temperada à gosto. O livro de Cremilda Medina é um exemplo desse fenômeno:

         "Nesse momento, é preciso examinar o problema no seu enquadramento geral: informação jornalística como produto da comunicação de massa, comunicação de massa como indústria cultural e indústria cultural como fenômeno da sociedade urbana industrializada".

         Cremilda reconhece o jornalismo, bem como a indústria cultural no seu conjunto, na qual ele está inserido, não apenas como instrumento de dominação ideológica, mas como um aspecto da "moderna sociedade industrial" inaugurada pelo capitalismo. O jornalismo é entendido como produto de uma nova dinâmica social, liberando potenciais democratizantes. No entanto, os limites ideológicos e teóricos de sua divergência com o pessimismo da Escola de Frankfurt é que ela pensa o desenvolvimento de tais potenciais em termos "evolucionistas" e não numa perspectiva revolucionária. Embora recorra a Benjamin e Enzensberger, sua filiação teórica está mais próxima do funcionalismo do que do marxismo.

         Quando se propõe a discutir um modelo de análise dos elementos do processo de codificação da mensagem, ela o faz adotando uma classificação tipicamente funcionalista. O problema da "angulação" no jornalismo - que coloca a dimensão ideológica da apreensão do real, sendo inseparável da questão da luta de classe -, aparece decomposto em "nível grupal" (empresa jornalística), "nível massa" (necessidade da grande indústria levar em conta o consumo de massa das informações) e o "nível pessoal" (originalidade, estilo e talento pessoais na elaboração da mensagem).

         Essa classificação e a outra definindo subcategorias da "angulação" (informativa, interpretativa, opinativa, etc.) não ultrapassam o nível incipiente de uma racionalização empirista e arbitrária. O preço desse ecletismo é que o jornalismo, através de um processo teoricamente reducionista, vai perdendo sua especificidade e concreticidade histórica. Primeiro, ele é tratado como um aspecto da indústria cultural, depois como uma modalidade de "linguagem" e, finalmente, essa linguagem é considerada como uma gradação da linguagem comum. "Então é possível estudar a chamada comunicação indireta - diz Cremilda - como mais uma etapa dessas gradações naturais de se comunicar".

         Podemos, de fato, demonstrar que, ao nível lingüístico, o jornalismo é "de certo modo" uma extensão da linguagem cotidiana e comum. Ambas são linguagens centradas na singularidade dos eventos e processos. Acontece que, "de certo modo", a filosofia é uma forma de religião; a arte, uma forma de magia; o cinema, uma forma de teatro. Por isso mesmo a essência da filosofia, da arte e do cinema não pode ser entendida senão a partir de uma distinção crucial com a religião, a magia e o teatro, respectivamente.

         No jornalismo temos uma linguagem indicial que envolve uma contigüidade diferente daquela que está na base da linguagem cotidiana. Se neste último caso temos a mediação da linguagem e da cultura interiorizada no processo de apreensão da imediaticidade, no jornalismo temos ainda mais duas ordens de mediação. Como condicionante histórico-social do processo temos a integração da sociedade humana num único e dinâmico sistema, ou melhor, numa única e complexa totalidade.

         O desenvolvimento capitalista integrou de maneira irreversível a humanidade, fazendo com que cada fenômeno singular esteja agora objetivamente mediado pelo todo. Isso quer dizer que, atualmente, qualquer acontecimento, numa aldeia ou num subúrbio é, potencialmente, um evento mundial em termos objetivos. Quem duvidar disso que se lembre do exemplo de Chernobyl. Por outro lado, uma decisão do presidente dos Estados Unidos pode transformar qualquer aldeia ou subúrbio do planeta num amontoado de cinzas.

         A segunda ordem de mediações constitui-se por um aspecto dessas forças produtivas, que condensou o mundo na sua dinâmica unidade atual: os meios de comunicação de massa. Esse aparato técnico e social permite transportar a dimensão fenomênica e singular dos acontecimentos, rompendo barreiras de tempo e espaço.

         Na linguagem usual e cotidiana, o que se busca apreender e comunicar são os fatos singulares vividos imediata e coletivamente. De um modo geral, ela gira em torno de acontecimentos próximos no tempo e no espaço. Temos aqui a mediação dos significados e da cultura como conteúdos interiorizados na subjetividade dos indivíduos. Em qualquer situação, a realidade jamais é percebida de modo direto, como algo natural, à margem das mediações histórico-sociais. Mas através do jornalismo temos a reprodução dos acontecimentos a partir da reconstituição fenomênica e singular, como algo que estivesse sendo imediatamente vivido.

         A mediação, neste caso, não apenas está interiorizada subjetivamente por emissores e receptores, de forma simultânea, mas se exterioriza em termos materiais, técnicos, sociais e lógicos precisamente para reproduzir a mediaticidade do mundo, através das notícias como algo imediato. A linguagem jornalística, no sentido amplo, que pode envolver quaisquer dos modernos meios de comunicação de massa, é estruturado para cumprir essa tarefa. Eis a sua razão de ser e o horizonte histórico-social capaz de explicar sua organização lógica e lingüística.

         Há aqui, sem dúvida, uma espécie de "simulação", mas não uma farsa ou uma falácia inevitável. De qualquer modo, a imediaticidade é sempre uma espécie de "simulação". O que aparece na relação imediata é o aspecto fenomênico e singular do real. À medida que o fenômeno é apenas uma face do concreto, ele tanto revela quanto esconde a essência. O singular, da mesma forma, não é mais do que uma das dimensões do concreto, sendo um elemento constituinte do universal e também seu produto: não existe relação humana sem mediações objetivas e subjetivas. Quando indivíduos presenciam diretamente um fato, a rigor, entre eles e o fato está a totalidade da história humana já percorrida, as alternativas sociais que se abrem concretamente para o futuro e, além disso, as incertezas e opções individuais e sociais. Isso quer dizer que o imediato e o mediato são duas faces de uma mesma moeda, momentos inseparáveis de uma mesma relação humana.

         A relação interpessoal "direta" ou a percepção "imediata" da realidade não é mais pura ou autêntica, quanto ao seu caráter objetivo ou subjetivo, do que a relação mediada externamente por aparatos técnicos, instituições e pessoas. Há, inclusive, uma vantagem nessa exteriorização objetiva das mediações produzidas pelos meios de comunicação de massa: pela primeira vez nasce, coletivamente, a consciência de que existem mediações fundamentais na relação aparentemente imediata dos indivíduos com o mundo natural e social.

         Pode-se, então colocar a questão da "autenticidade" ou "inautenticidade" da apreensão da realidade do mundo, da comunicação e dos significados que ela produz e trafica. Que essa questão seja colocada, num primeiro momento, em termos ingênuos, opondo a suposta autenticidade das relações tradicionais (nas quais as mediações estão basicamente interiorizadas) a uma não menos suposta inautenticidade das relações produzidas pelos meios de comunicação de massa, é um fato perfeitamente compreensível. Afinal, o domínio, espiritual e a hegemonia ideológica das classes dominantes concretiza-se em aparatos técnicos, procedimentos socialmente identificados e pessoas que, sem qualquer véu sagrado, exercem tais atividades. É natural que esses aparatos surjam, à primeira vista, como intrinsecamente maus e alienantes, pois é através deles que a alienação se torna visível.

         Nos modernos meios de comunicação vem à tona o aspecto persuasivo e psicológico da dominação ideológica, que nas sociedades pré-capitalistas estavam interiorizados e eram geralmente imperceptíveis. A postura de aberta desconfiança e disfarçada hostilidade frente aos meios de comunicação de massa, tal como foi dominante na Escola de Frankfurt, corresponde - no plano intelectual - a uma reedição das lutas dos trabalhadores contra a maquinaria ao longo dos séculos XVII e XVIII. Representam, portanto, ao mesmo tempo, uma dimensão saudável de protesto e denúncia, e outra de conservadorismo.

         Por outro lado, a tese de Rousseau sobre a origem da sociedade em termos de um "contrato social" - mesmo entendido como um pressuposto estritamente lógico, como ele advertiu no Contrato Social - parece hoje bastante pueril para qualquer cidadão medianamente intelectualizado. Isso ocorre pela evidência do complexo objetivo de mediações que não apenas se interpõe entre os indivíduos, mas constitui as premissas da própria existência individual.

         De qualquer modo, a singularidade reproduzida no jornalismo através do sistema de transmissão e reprodução técnica dos meios de comunicação, não é a mesma experimentada ou percebida no âmbito da vivência pessoal. A exteriorização técnica e social da mediação implica uma racionalização e especificação dos procedimentos, incluídos aí a linguagem jornalística tanto no sentido amplo como no sentido restrito, referente a cada meio em particular.

         É verdade que a linguagem jornalística situa-se num ponto intermediário entre a linguagem científica e a linguagem comum. Mas isso não resolve o problema, já que nem toda a linguagem situada nesse terreno intermediário é jornalismo. Pode-se falar do jornalismo como uma forma de conhecimento porque, distinto da comunicação elementar e cotidiana, não se trata de algo espontâneo associado naturalmente à consciência individual e às relações externas imediatas de cada pessoa, mas de um processo que socialmente coloca complexas mediações objetivas, que implica uma divisão do trabalho e - por conseqüência - um fazer e um saber específico.

         Assim, o fato de que a linguagem jornalística "persegue com todos os esforços conscientes ou inconscientes uma contigüidade recriada", como indica Cremilda, não significa que ela seja uma etapa de gradação da linguagem comum, mas sim uma linguagem referente a um processo social de outra ordem. Ela realiza a reprodução e o transporte de uma singularidade como algo prestes a ser vivido diretamente. Para tanto, ela está subordinada a normas e procedimentos técnicos que a distinguem da espontaneidade lógica, lingüística e epistemológica da linguagem comum. É isso que a torna, aliás, uma especialidade técnica no contexto da divisão do trabalho.

         Quando se lê o trabalho de Cremilda fica-se com a impressão de que a luta de classes, se existe, passa ao largo ou apenas tangencia o fenômeno jornalístico. Sua teorização eclética, misturando algumas premissas da Escola de Frankfurt (buscando discutir o jornalismo como um aspecto da cultura de massa), uma classificação meramente funcionalista do conteúdo das mensagens e uma pitada de lingüística, não poderia mesmo chegar a resultados muito sólidos. "A mensagem jornalística - afirma a autora - como um produto de consumo da indústria cultural desenvolveu uma componente verbal específica, que serve para chamar a atenção e conquistar o leitor para o produto/matéria".

         No final das contas, a linguagem jornalística e a própria estrutura da notícia são reduzidos a meros apelos formais da cultura de massas. "As hipóteses de ampliação desta parte estariam centradas na idéia/síntese de que os títulos e leads anunciam uma mercadoria, o produto oferecido pelo jornalismo na indústria cultural". Buscávamos a especificidade do jornalismo e chegamos, outra vez, na generalidade da mercadoria!

         "Na realidade, há uma incongruência básica entre a angulação-massa do jornalismo industrial e a angulação-elitista de uma frase racionalizada para a objetividade dos fatos noticiados". Aqui está a síntese da confusão feita pela autora: a essência do jornalismo industrial seria a "angulação-massa", que estaria em oposição à frase racionalizada que busca a objetividade dos fatos noticiados.

         Para Cremilda, a mensagem/consumo tende a absorver o espaço dedicado à mensagem-opinião, porque aquela se aproxima mais da mensagem-tipo de indústria cultural. Se é verdade que a mensagem-consumo tende a se generalizar, ela não se opõe à mensagem-opinião, mas tão somente em relação às opiniões individuais que não se ajustam ao status quo. E tampouco o jornalismo pode ser identificado integralmente como mensagem-consumo, embora ele produza notícias enquanto mercadorias e sua estrutura de produção seja capitalista-industrial.

         Nem toda a mensagem-consumo é jornalismo e nem a informação jornalística obedece, exclusivamente, a critérios de consumo mercantil. A necessidade da informação jornalística surgiu na forma de um mercado consumidor de notícias, à medida que, com a emergência do capitalismo, todas as necessidades sociais aparecem como mercado consumidor e todos os valores de uso na forma de mercadorias. Portanto, a relação do fenômeno jornalístico com a indústria cultural - definida esta segundo Adorno/Horkheimer - é de unidade e contradição. Uma relação tensa, de mútua pertinência em certos momentos, mas de não-identidade.

A necessidade do jornalismo: rompendo a tradição

         Criticando a ideologia da objetividade e imparcialidade do jornalismo, Nilson Lage afirma: "Um jornalismo que fosse a um só tempo objetivo, imparcial e verdadeiro excluiria toda outra forma de conhecimento, criando o objeto mitológico da sabedoria absoluta". De fato, essa exigência só pode partir de duas premissas: ou o conhecimento absoluto de um sujeito onisciente, ou a idéia de que a objetividade possui um significado inerente à sua positividade e autônomo em relação aos sujeitos. Essa última hipótese é mais harmônica em relação às tendências positivistas e funcionalistas que são dominantes no conjunto do pensamento burguês, sendo aquela que realmente sustenta as tímidas e sofríveis teorizações em torno da ideologia do jornalismo objetivo. Os manuais de jornalismo até admitem que não é possível eliminar de todo a subjetividade do repórter, mas que deve ser realizado um esforço para limitá-la ao máximo. Isso ocorre, na medida em que a função ideológica do jornalismo burguês é simplesmente reiterar o movimento de reprodução das relações capitalistas vigentes.

         "O conceito de objetividade posto em voga consiste basicamente em descrever os fatos tal como aparecem; é, na realidade, um abandono consciente das interpretações, ou do diálogo com a realidade, para extrair desta apenas o que se evidencia. A competência profissional passa a medir-se pelo primor da observação exata e minuciosa dos acontecimentos do dia-a-dia. No entanto, ao privilegiar as aparências e reordená-las num texto, incluindo algumas e suprimindo outras, colocando estas primeiro, aquela depois, o jornalista deixa inevitavelmente interferir fatores subjetivos. A interferência da subjetividade, nas escolhas e na ordenação, será tanto maior quanto mais objetivo, ou preso às aparências, o texto pretenda ser".

         Nilson Lage percebe que há uma complexa mediação, tanto objetiva como subjetiva, no processo de reprodução da singularidade fenomênica dos fatos jornalísticos. A atividade jornalística não envolve uma captação e reprodução dos fenômenos enquanto algo dotado de significado puramente objetivo, mas a reconstrução fenomênica já tornada significativa pelo subjetivismo da intermediação. Mas o autor reconhece certas "vantagens práticas" nas técnicas decorrentes do mito da objetividade e imparcialidade jornalística:

         "Essas reflexões não excluem, porém, as vantagens práticas da técnica que correspondem à proposição de um improvável ponto de equilíbrio diante do qual um fato ocorrido pudesse ser contado de uma só maneira justa. O procedimento resultante dessa forma de entender o texto informativo ofereceu certas vantagens; entre estas, o compromisso com a realidade material, a aceleração do processo de produção e troca de informações e a denúncia das fórmulas arcaicas de manipulação do texto. (... ) A proposta de uma linguagem absolutamente transparente, por trás da qual se apresentasse o fato íntegro, para que o leitor produzisse seu julgamento, conduziu os jornalistas a uma atitude de indagação e lhes deu, em certas circunstâncias, o poder de buscar o seu próprio ponto de equilíbrio, devolvendo um conceito de verdade extraído dos fatos com o extraordinário poder de convencimento dos próprios fatos".

         O autor reconhece que o jornalismo, na concepção moderna, não é sinônimo de manipulação e alienação. Ao contrário, oferece amplas possibilidades de uma apreensão viva e crítica da realidade social. Nesse sentido, já estabelece uma importante ruptura com o romantismo arcaico que opõe o "jornalismo opinativo" do século passado ao jornalismo atual, que seria alienante e manipulatório em sua própria essência. Nilson Lage, portanto, dá um passo à frente em relação a mentalidade artesanal que, via de regra, está por trás das críticas ao "jornalismo burguês" e ao "mito da objetividade". Não obstante, permanece um vácuo teórico entre a criticável tese da objetividade e imparcialidade do jornalismo e as "vantagens práticas" que ela enseja. Afinal, por que uma técnica nascida da inspiração de uma teoria equivocada tornou-se tão eficaz e importante socialmente?

         Acontece que, por trás dessa técnica, não existe apenas uma visão equivocada que supõe a possibilidade de um conhecimento puramente objetivo, mas sobretudo um processo histórico de constituição de uma necessidade social qualitativamente nova - a necessidade da informação de caráter jornalístico. Uma nova forma de conhecimento social cristalizado no singular, que implica uma radical integração da totalidade social, um novo dinamismo e a atividade dos sujeitos individuais e particulares como constitutiva dessa totalidade. O desenvolvimento das relações mercantis e a expansão do modo de produção capitalista, que estão na base desse processo histórico, colocam a necessidade de um volume de informações que corresponda a essa integração universal dos indivíduos e dos grupos sociais.

         Por outro lado, a natureza dessa informação não pode ser arbitrária, pois deve corresponder ao dinamismo que está associado a essa integração e, ao mesmo tempo, à contigüidade efetiva criada pela integração da sociedade humana através de mediações técnicas que rompem as barreiras do tempo e do espaço. É evidente que, historicamente, esse tecido social que conduziu a uma totalidade integrada e dinâmica foi realizado em função da mercadoria, como é igualmente evidente que sua permanência independe da mercadoria.

         O desenvolvimento capitalista impõe o surgimento de uma forma de conhecimento social cristalizado no singular, recolocando numa qualidade inteiramente nova a questão da relação dos indivíduos com os fenômenos que se propõem de maneira imediata na experiência cotidiana. Essa forma de conhecimento se, por um lado, possibilita a manipulação externa dos aparatos do processo de comunicação, por outro, encarna uma possibilidade duplamente revolucionária: 1) a possibilidade da crítica radical sobre essa manipulação que se exteriorizou; 2) e o caráter incompleto que decorre da natureza essencial dessa modalidade de conhecimento; por mais que ela pressuponha e direcione um determinado ponto de vista político, ideológico, moral e filosófico, o singular convida a subjetividade a integrá-lo numa totalidade mais ampla dotada de sentido e valores. A essência, de qualquer modo, não é oferecida como uma substância pronta, ela admite uma certa pluralidade de desdobramentos de parte da subjetividade.

         A análise de Nilson Lage sobre o jornalismo não ultrapassa os aspectos lingüísticos e lógicos do fenômeno. Mas ela indica a existência de uma tensão entre as determinações ideológicas e manipulatórias do jornalismo e as potencialidades técnicas que ele desperta, em consonância com as necessidades de informação colocadas pela sociedade moderna. Não obstante, a contradição fica apenas assinalada, já que ele não encontra uma síntese teórica adequada, capaz de unir as ambigüidades e contradições numa totalidade lógica abrangente. Lage procura livrar-se da tradição de Frankfurt, que reduz a notícia à mercadoria e o jornalismo à manipulação, evitando a apologia do individualismo artesanal que normalmente está por trás das críticas da "esquerda" acadêmica. Tampouco embarca na canoa do tecnicismo empirista que considera o jornalismo como uma atividade neutra, imparcial e capaz de revelar a autêntica "objetividade dos fatos".

         É verdade, como diz Nilson Lage, que a comunicação jornalística é, por definição, referencial, isto é, fala de algo no mundo, exterior ao emissor, ao receptor e ao processo de comunicação em si. "Isto impõe o uso quase obrigatório da terceira pessoa". Mas, resta saber por que motivo a comunicação jornalística é "referencial". Talvez essa indagação possa ser respondida se relembrarmos que o jornalismo é, em certo sentido, uma espécie de "simulação" da imediaticidade, já que a realidade distante é reconstituída enquanto singularidade.

         Nas relações imediatas da aldeia pré-capitalista a totalidade restrita do mundo social envolvia de modo significativo os indivíduos que se comunicavam. Todos eram partes legitimamente integrantes da singularidade fenomênica do real. O mesmo ocorre, hoje, ao nível das relações pessoais diretas. Neste caso, os emissores e receptores são partícipes de uma mesma dimensão da realidade, ou seja, da realidade imediata. A personalização do processo comunicativo, por isso, é um aspecto necessário dos significados que vão sendo construídos. As emoções e os juízos de valor explicitamente colocados pelos indivíduos que se comunicam envolvem significados pertinentes ao mesmo nível da realidade. No jornalismo, porém, os intermediários (inclusive os jornalistas) não integram objetivamente a mesma ordem de significados dos fenômenos noticiados (reproduzidos artificialmente como imediaticidade) e assim transportados ao público. A rigor, os intermediários não são mais - fundamentalmente - indivíduos, mas classes e grupos sociais.

         De qualquer modo, trata-se de coletividades, de mediações sociais, que produzem industrialmente as informações jornalísticas. O repórter, o redator, o editor, etc., atuam como momentos dessa coletividade industrial. Assim, a presença pessoal de cada um na notícia deve, humildemente, corresponder a esse distanciamento efetivo da realidade que está sendo reproduzida. Portanto, a linguagem do jornalismo é "referencial" na medida em que ela fala de algo que, de fato, é concretamente exterior tanto ao emissor quanto ao receptor individualmente considerados.

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