Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987. pp. 53-68. [Ref.: T196]

CAPÍTULO III

O jornalismo
como forma de conhecimento:
os limites da visão funcionalista

         O ensaio de Robert E. Park, publicado nos Estados Unidos em 1940, no The American Journal of Sociology n.º 45 da Universidade de Chicago1 , foi referido como uma das abordagens funcionalistas mais interessantes para nossas reflexões. Voltemos a ele.

         Não por acaso, o autor inicia citando o filósofo William James2 , para distinguir duas formas de conhecimento: "o conhecimento de" e "o conhecimento acerca de". Para explicá-las transcreve as palavras do próprio filósofo:

         "Existem duas espécies de conhecimento ampla e praticamente distinguíveis: podemos chamar-lhes respectivamente conhecimento de trato e conhecimento acerca de . . . Nos espíritos que possuem alguma capacidade de falar, por mínima de que seja, existe, é verdade, algum conhecimento acerca de tudo. As coisas, pelo menos, podem ser classificadas e referidas às ocasiões de seu aparecimento. Mas, em geral, quanto menos analisamos uma coisa e quanto menor o número de suas relações que percebemos, menos sabemos acerca dessa coisa e mais do tipo de trato é a nossa familiaridade com ela. As duas espécies de conhecimento, portanto, como o espírito humano praticamente as exerce, são termos relativos. Isto é, a mesma idéia de uma coisa pode denominar-se conhecimento acerca dessa coisa, em confronto com uma idéia mais simples, ou de trato com ela em comparação com uma idéia dela ainda mais articulada e explícita".3

         Logo, "o conhecimento de" ou "conhecimento de trato" é aquele que, relativamente a um saber mais complexo e abstrato, não ultrapassa o aspecto fenomênico, que emana do uso familiar, da imediaticidade da experiência e do hábito que lhe corresponde. Não é um conhecimento produzido por qualquer procedimento formal, analítico ou sistemático. Tal "conhecimento de" (ou "de trato") - como diz Park - pode ser concebido como uma forma de ajustamento orgânico ou adaptação, que representa a acumulação e, por assim dizer, a fusão de longa série de experiências. "É essa espécie de conhecimento pessoal e individual que faz cada um de nós sentir-se à vontade no mundo que escolheu ou no qual está condenado a viver".4 Por outro lado, o "conhecimento acerca de" seria formal, produto de uma abstração controlada e criteriosa, isto é, lógico e teórico. Segundo o autor, essas duas formas de conhecimento são gêneros (e não "graus") diferentes e, portanto, possuem funções sociais distintas. Não obstante, adverte, pode-se pensar num contínuo entre todas as espécies de conhecimento. "Num contínuo dessa natureza - afirma Park - a notícia tem localização própria".5 Ela não proporcionaria um conhecimento sistemático e nem a revelação de fatos de ordem histórica, mas apenas a alusão a um "acontecimento".

         Como forma de conhecimento, a notícia, segundo Park, não cuida essencialmente nem do passado nem do futuro, mas do presente. "Pode-se dizer que a notícia só existe nesse presente", E prossegue: "Essa qualidade transitória e efêmera é da própria essência da notícia e está intimamente ligada a todos os outros caracteres que ela exibe. Tipos diferentes de notícias vivem um período diferente de tempo. Na mais elementar de suas formas, o relato de uma notícia é um mero lampejo a anunciar que um acontecimento ocorreu".6

         O aspecto mais importante, embora situado num contexto teórico limitado às categorias funcionalistas, é a indicação do autor sobre a "função" que exerce a notícia em relação aos indivíduos: "Na verdade, a notícia realiza, de certo modo, para o público, as mesmas funções que realiza a percepção para o indivíduo; isto é, não somente o informa como principalmente o orienta, inteirando cada um e todos do que está acontecendo".7

A notícia como função orgânica

         Certamente, partindo dos pressupostos teóricos que adota, Park não poderia ir além da função orgânica da notícia e da atividade jornalística, em que pese algumas pistas não desprezíveis que ele oferece. Ele aceita a classificação "pragmática" sobre o conhecimento feita por William James, o que compromete suas conclusões.

         O "conhecimento de trato" - indicado por Park como ponto inicial do contínuo onde se localiza a notícia - não é um "gênero" de conhecimento que possa ser concebido a-historicamente, fora das relações concretas de dominação e alienação. Da maneira como Park o define implica, inevitavelmente, um determinado conteúdo. Trata-se daquela esfera da vida cotidiana na qual a "práxis utilitária" configura os fenômenos da vida social como se fossem dados naturais e eternos, o mundo da pseudoconcreticidade.8 Por isso, a divisão sugerida por James, e assumida por Park, é redutora, pois supõe uma espécie de "senso comum" isento de contradições internas, cuja função seria somente reproduzir e reforçar as relações sociais vigentes, integrar os indivíduos na sociedade.

         O ponto de referência inicial do contínuo onde se Iocaliza o conhecimento jornalístico constitui, de fato, um "gênero" e não apenas um "grau" de abstração. No entanto, o aspecto central desse gênero de conhecimento é a apropriação do real pela via da singularidade, ou seja, pela reconstituição da integridade de sua dimensão fenomênica. Não é simplesmente, como quer o autor, uma espécie de conhecimento, que faz cada um de nós sentir-se a vontade no mundo que escolheu ou no qual está condenado a viver".9 O conteúdo atribuído por Park é o de um conhecimento elementar e, ao mesmo tempo, "positivo" nos termos em que foi definido por Auguste Comte.10

         Se é verdade que o gênero de conhecimento produzido pelo jornalismo corresponde, em certo sentido, às "mesmas funções que realiza a percepção para o indivíduo", essa comparação não pode ser levada às últimas conseqüências. Na percepção individual, a imediaticidade do real, o mundo enquanto fenômeno, é o ponto de partida. No jornalismo, ao contrário, a imediaticidade é o ponto de chegada, o resultado de todo um processo técnico e racional que envolve uma reprodução simbólica. Os fenômenos são reconstruídos através das diversas linguagens possíveis ao jornalismo em cada veículo. Conseqüentemente, não podemos falar de uma correspondência de funções entre o jornalismo e a percepção individual, mas sim de uma simulação" dessa correspondência. É a partir dessa simulação que surge propriamente um gênero de conhecimento, pois enquanto se tratar da relação imediata dos indivíduos com os fenômenos que povoam o cotidiano, da experiência sem intermediação técnica ou racional instituída sistematicamente, o que temos é realmente a percepção tal como a psicologia a descreve.11 Quer dizer, um grau determinado de conhecimento, um nível de abstração elementar.

         Anteriormente, indicamos o processo de reificação que se desenvolve com o fundamento mercantil das relações sociais no capitalismo contemporâneo. Porém, nem a percepção individual nem o "senso comum" são níveis de apropriação simbólica qualitativamente homogêneos, livres das contradições políticas, ideológicas e filosóficas que perpassam a sociedade de classes em seu conjunto.

         Existe, de fato, na percepção individual uma predominância do aspecto "positivo" (no sentido comteano) do fenômeno ou da coisa. No "senso comum" há uma hegemonia do "bom senso", isto é, das noções que implicam uma apreensão funcional e orgânica do mundo tal qual ele se apresenta. Mas a insensatez que se apoderou das massas na queda da Bastilha, na França de 1789, ou na tomada do Palácio de Inverno, em 1917 na Rússia, não se produziu no patamar da teoria ou da ciência, embora ambas tenham cumprido seu insubstituível papel. A "insensatez revolucionária" das massas humanas que se tornam, de repente, protagonistas das grandes transformações históricas nascem de elementos explosivos que estão latentes, embora normalmente subordinados, no interior do processo de percepção e das noções que formam o "senso comum" nas sociedades dotadas de antagonismo de classes.

         A partir de tais elementos potencialmente explosivos que atravessam todas as dimensões da produção simbólica de uma práxis socialmente dilacerada é que surge, de um lado, o reconhecimento da ideologia espontânea das classes dominadas e, de outro, a possibilidade de expansão da ideologia revolucionária a partir daquela.12

         Ao não compreender essa questão, Robert E. Park acaba definindo o conhecimento produzido pelo jornalismo com um mero reflexo empírico e necessariamente acrítico, cuja função é somente integrar os indivíduos no "status quo", situá-lo e adaptá-lo na organicidade social vigente. O jornalismo teria, assim, uma função estritamente "positiva" em relação à sociedade civil burguesa, tomada esta como referência universal. Da mesma maneira que ele toma a noção de William James sobre o "conhecimento de trato" como um gênero de saber através do qual o indivíduo reproduz a si mesmo e ao sistema, ele supõe que o jornalismo é uma forma de conhecimento que realiza socialmente as mesmas funções. Nota-se, claramente, que o conceito de conhecimento, tanto num caso como no outro, está limitado ao seu sentido vulgar de "reflexo" subjetivo de uma relação meramente operacional com o mundo, de uma intervenção estritamente manipulatória.

         Tal acepção, como é sobejamente sabido, foi transformada numa categoria "respeitável" da epistemologia pelo positivismo e transladada para a sociologia por Dürkheim. Entretanto, se tomarmos o conhecimento como a dimensão simbólica do processo global de apropriação coletiva da realidade, poderemos conceber o jornalismo como uma das modalidades partícipes desse processo e, igualmente, atravessado por contradições. Marx já indicou de forma inequívoca que a atividade prático-crítica dos homens está no coração do próprio conhecimento e, por isso mesmo, não se pode estabelecer uma contraposição absoluta entre sujeito e objeto, entre a percepção e a coisa ou, se preferirmos, entre a atividade social que produz o mundo humano e os conceitos que desvendam o universo: "O defeito fundamental de todo o materialismo anterior - inclusive o de Feuerbach - está em que só concebe o objeto, a realidade, o ato sensorial, sob a forma do objeto ou da percepção, mas não como atividade sensorial humana, como prática, não de modo subjetivo".13

         É oportuno assinalar aqui, embora de passagem, que essa tendência em reduzir os fenômenos históricos concretos ao seu papel "orgânico" no interior do sistema social, tal como fez Park em relação ao jornalismo, encontra algum paralelo em várias correntes da tradição marxista, especialmente no que tange às determinações consideradas superestruturais. Em Lukács temos o conceito problemático de "falsa consciência'', que se opõe a "consciência de classe", entendida como "a reação racional adequada que, deste modo, deve ser atribuída a uma situação típica determinada no processo de produção".14 Como sugere Adam Schaff, a consciência que existe realmente passa a ser uma "falsa consciência", enquanto que a consciência que não existe como algo efetivo no conjunto da classe torna-se a "verdadeira" consciência de classe.15

         Resulta desse enfoque que a consciência realmente existente, que pode ser detectada empiricamente nos indivíduos em situação normal, tem apenas um papel funcional de reprodução da sociedade. Noutras palavras: a consciência revolucionária nasce de uma possibilidade objetiva dada pela estrutura e suas contradições, mas não é constituída (pelo influxo da teoria e da ação de vanguarda) a partir dos elementos e contradições originárias e sim como algo externo que anteriormente já existia em sua plenitude. A dialética assim instaurada pressupõe uma concepção ontológica de natureza hegeliana, isto é, sob a égide e a precedência do conceito, o qual é suposto em sua forma pura antes da dinâmica concreta da realidade.

         A categoria central da crítica da cultura burguesa feita pela Escola de Frankfurt, especialmente por Adorno e Horkheimer, que sugeriram a expressão "indústria cultural", é a idéia de manipulação. No capitalismo desenvolvido, todas as manifestações culturais, orquestradas pela batuta mercantil, tornar-se-iam plenamente funcionais ao sistema de dominação.

         Por outro lado, a tese de Althusser sobre os "aparelhos ideológicos de Estado", enfocando o mesmo problema sob, o ângulo das instituições que preservam a dominação de classe, é o desenvolvimento lógico da concepção stalinista de que a base cria a superestrutura para servi-la. Entendendo a história como um "processo sem sujeito", Althusser concebe as classes sociais como "funções" do processo de produção e, em conseqüência, os "aparelhos ideológicos de Estado" são correias de transmissão que se movem num único sentido: do todo para as partes.16 Não é de se estranhar, portanto, que Vladimir Hudec, jornalista e professor tcheco afirme que a atividade jornalística deve ser harmônica com "as leis objetivas do desenvolvimento social", estabelecendo desse modo uma funcionalidade de caráter estritamente ideológico do jornalismo com leis naturais de progresso histórico.17

         Se o papel do jornalismo, para Hudec, se insere numa perspectiva dinâmica, mesmo assim ele se torna um epifenômeno da ideologia ou do conhecimento científico. Não é admitido como um modo de conhecimento dotado de certa autonomia epistemológica e, em virtude disso, um aspecto da apropriação simbólica da realidade, o que implica alguma margem de abertura para a significação que ele vai produzindo.

A significação como probabilidade e liberdade

         Quando Park relaciona a notícia com a política, ele parece ultrapassar a noção do jornalismo como um fenômeno orgânico do sistema social considerado em sua positividade: "Se bem intimamente ligada a ambas, a noticia não é História nem política. Não obstante, é o material que possibilita a ação política, distinguida de outras, formas de comportamento coletivo".18 O problema é que o seu conceito de política está, como os demais, no quadro de uma concepção funcionalista, o que lhe retira qualquer dimensão transformadora e propriamente histórica. Mas se colocarmos a afirmação de Park no contexto teórico da práxis, tomando a história não apenas como historiografia e sim como um processo de autoprodução ontológica do gênero humano, e tomarmos a política como a dinâmica dos conflitos em torno da qualificação da práxis social, o jornalismo vai se revelar sob nova luz. Vai aparecer, então, em seu potencial desalienante e humanizador.

         Quando as chamadas tendências "pós-marxistas" do pensamento contemporâneo19 caem na tentação de fazer a apologia das "pequenas comunidades" como único meio dos indivíduos reencontrarem sua "autonomia", essas correntes estão supondo que a liberdade individual em atribuir significação aos fenômenos, que emana da participação imediata na singularidade do mundo vivido, não pode encontrar sucedâneo. A idéia básica é que o indivíduo não pode ser sujeito efetivo e integral através das mediações criadas pelo aparato técnico-científico a que dão o nome, em alguns casos, de "heteronomia" em oposição à "autonomia", que seria realizável através da vivência imediata.20

         Tais concepções esbarram, em primeiro lugar, nas evidências de um mundo humano já universalmente constituído, cujo complexo de mediações não parece passível de regressão.21 Em segundo lugar, como indicou Marx, a humanidade só se coloca problemas quando, potencialmente, já existem as condições para equacioná-los. A imprensa, e mais intensamente os meios eletrônicos de comunicação de massa, representam os termos dessa equação. O jornalismo, como estrutura específica de comunicação que daí se origina, inserida no processo global do conhecimento, é a modalidade por excelência que, no dizer de Violette Morin, encerra virtudes cuja intensidade poderá um dia rivalizar com a já conhecida dimensão de seus "vícios". Por isso, a metáfora da "aldeia global" de McLuhan, expurgada de todas as sobreposições e ilações de caráter publicitário-imperialista que lhe atribui o autor, deve ser criticamente recuperada pelo pensamento humanista e revolucionário.22

         É nessa perspectiva que o jornalismo se impõe, de maneira angular, como possibilidade dos indivíduos em participar do mundo mediato pela via de sua feição dinâmica e singular, como algo sempre incompleto, atribuindo significações e totalizando de maneira permanente como se estivessem vivendo na imediaticidade de sua aldeia.

         O conteúdo dinâmico implícito na idéia de singularidade, confere uma característica evanescente à notícia. Do ponto de vista estritamente jornalístico, realmente "nada é mais velho do que uma notícia de ontem", se não for reelaborada com novos dados constituindo outra notícia: a de hoje.

         Assim, a importância de um "fato" enquanto notícia obedece a critérios diferentes em relação aos utilizados na hierarquização feita pelas ciências sociais ou naturais, de um lado, e pela arte de outro. Nas ciências, os fatos ou eventos são relevantes à medida que vão constituindo a universalidade.23 Quanto à arte, os fenômenos que a compõem são significativos na exata proporção de sua ambigüidade enquanto realidades irrepetíveis (singulares) e, ao mesmo tempo, enquanto representação "sensível" da universalidade social onde historicamente estão situados e com a qual estão inevitavelmente comprometidos.24 O jornalismo não produz um tipo de conhecimento, tal como a ciência, que dissolve a feição singular do mundo em categorias lógicas universais, mas precisamente reconstitui a singularidade, simbolicamente, tendo consciência que ela mesma se dissolve no tempo. O singular é, por natureza, efêmero. O jornalismo tampouco elabora uma espécie de representação cujo aspecto singular é arbitrário, projetado soberanamente pela subjetividade do autor, tal como acontece na arte, onde o típico é o eixo fundamental de contato com a realidade. O processo de significação produzido pelo jornalismo situa-se na exata contextura entre duas variáveis: l) as relações objetivas do evento, o grau de amplitude e radicalidade do acontecimento em relação a uma totalidade social considerada; 2) as relações e significações que são constituídas no ato de sua produção e comunicação.

O sujeito e o objeto: a dupla face do real

         A complexidade do fato jornalístico decorre da contradição inerente à produção do próprio mundo social. Essa contradição nasce da relação axiomática do sujeito com o mundo objetivo, na mesma medida em que a objetividade vai constituindo o substrato que confere realidade à autoprodução do sujeito. Logo, qualquer gênero de conhecimento é tanto revelação como atribuição de sentido ao real; assim como a projeção subjetiva não pode ser separada da atividade prática, a revelação das significações objetivas não pode ser separada da atribuição subjetiva de um sentido à atividade.

         É a dimensão objetiva da singularidade que diferencia o jornalismo da arte. Esse compromisso prioritário com a singularidade objetiva impede que o particular possa cristalizar-se - pelo menos em regra - enquanto categoria estética, como ocorre na produção artística. Na arte, o particular resulta de uma síntese na qual a subjetividade se impõe como ato essencialmente livre do criador. Por outro lado, é a exigência da singularidade em manter-se como tal que impede o jornalismo de tornar-se uma forma de conhecimento científico ou mero epifenômeno da ciência. Mas é, também, a margem colocada ao sujeito para atribuir sentido à atividade social e, portanto, para atribuir significado aos fenômenos objetivos, que situa o jornalismo na contextura referida anteriormente, isto é, frente àquela duplicidade "objetiva-subjetiva" dos fatos que ele trabalha.

         O caráter específico dessa "duplicidade", no caso do jornalismo, está nitidamente vinculado, ao mesmo tempo, com nexos de probabilidade (quantitativas) e de liberdade (qualitativas) em relação ao todo social. Para discutir essa especificidade é necessário clarificar a manifestação desse fenômeno no dia a dia do jornalismo.

         "Se é o inesperado que acontece - adverte Park - não é o totalmente inesperado que surge na notícia. Os acontecimentos que fizeram notícia no passado, como no presente, são realmente as coisas esperadas, assuntos caracteristicamente simples e comuns, como nascimentos e mortes, casamentos e enterros, as condições das colheitas, a guerra, a política e o tempo. São estas as coisas esperadas, mas são ao mesmo tempo as coisas imprevisíveis. São os incidentes e acasos que surgem no jogo da vida".25

         Parece que a importância social da informação sobre um evento, admitindo-se as premissas discutidas acima, depende de duas variáveis fundamentais: a baixa probabilidade do evento descrito e, além disso, a inserção qualitativa do referido evento na totalidade social em desenvolvimento. Ao indicar que "não é o totalmente inesperado que surge na notícia", certamente o autor está reconhecendo, pelo menos, a insuficiência do enfoque probabilístico.

         A inserção qualitativa a que estamos nos referindo só é possível porque há uma dimensão subjetiva da práxis, pois não é a sociedade, em si mesma, que possui uma essência teleológica, mas precisamente os homens enquanto seres pensantes.26 Disso decorre que as possibilidades do desenvolvimento histórico não se expressam apenas pela probabilidade mas, em seu fundamento especificamente humano, pela liberdade de opção dos indivíduos. Ao nível mais concreto, pela ação e o conflito das classes e grupos sociais. Portanto, o "preferencial sistêmico" para quantificar a probabilidade de um evento e suas conexões de amplitude e radicalidade com o todo social não é estritamente objetivo, nem único. Ele varia segundo os diferentes projetos sociais inscritos como possíveis na concreticidade do presente. Em conseqüência, a qualidade de uma informação envolve exatamente a totalidade do social (o que implica uma projeção) escolhida como referência teórica. Por isso, a noção de sistema é reducionista quando aplicada à sociedade. Retira a historicidade do processo social a partir de premissas objetivistas.

         Ao equiparar realidades ontológicas de ordens distintas, ou seja, as máquinas de informar e os organismos biológicos com a sociedade humana, está fazendo implicitamente uma opção qualitativa que não quer ou não consegue revelar. Esta opção, naturalmente, é pela sociedade positivamente considerada, isto é, alheia à autoprodução de sua própria essência.

         A questão da qualidade da informação que decorre, como vimos, da subjetividade e da liberdade que a história encerra, ultrapassa a noção de sistema e se liga ao conceito de totalidade concreta, ao todo considerado em processo de totalização objetiva e subjetiva.27

         O significado social de uma informação jornalística está intimamente relacionado tanto ao aspecto quantitativo quanto ao qualitativo. Um evento com probabilidade próxima de zero é jornalisticamente importante mesmo que não esteja vinculado às contradições fundamentais da sociedade. Por exemplo, um homem que conseguisse voar sem qualquer tipo de aparelho ou instrumento.

         Um evento de elevada probabilidade, como novas prisões políticas no Chile de Pinochet, é significativo e importante em virtude de seu enraizamento amplo e radical num processo que expressa tendências reais do desenvolvimento social. A significação desse fato, seria desnecessário acrescentar, depende também do aspecto subjetivo: a solidariedade ou oposição as tendências e possibilidades nas quais os eventos estão inseridos. Aqui entra não só a margem de importância que ideologicamente é atribuída aos fatos, como também um espaço determinado de arbítrio ideológico para a própria significação em termos qualitativos. As novas prisões no Chile de Pinochet, para os jornais do governo chileno, podem significar que o regime está disposto a "manter a ordem e a segurança dos cidadãos". Para um jornal liberal podem representar "mais um ato de arbítrio de um governo sem legitimidade". Nas páginas de um jornal de esquerda podem significar que "está se ampliando a resistência revolucionária do povo chileno".

         Em que pesem algumas sugestões criativas de Robert E. Park, as bases funcionalistas do referencial teórico que ele adota e, inclusive, suas opiniões explícitas sobre a "função" da notícia, não deixam qualquer dúvida sobre o conteúdo conservador e limitado de suas concepções. "A função da notícia - diz Park - é orientar o homem e a sociedade num mundo real. Na medida em que o consegue, tende a preservar a sanidade do indivíduo e a permanência da sociedade".28 Entenda-se, evidentemente, o "mundo real" como a forma pela qual ele está estruturado no presente. A "sanidade", compreenda-se como uma mentalidade competitiva, mesquinha e consumista. Por "conservação da sociedade" entenda-se a preservação do capitalismo e do "modo de vida norte-americano".

         


Notas de Rodapé

1) Park, Robert E. A notícia como forma de conhecimento: um capítulo da sociologia do conhecimento. In: STEINBERG, Charles, (org.) Meios de comunicação de massa. São Paulo, Cultrix, s/d. p. 168-85.
2) William James (1842-1910) foi um filósofo e psicologo norte-americano, principal representante da corrente denominada "pragmatismo", uma das variantes do "empirismo radical". James considerava que as dimensões material e espiritual são apenas dois aspectos de uma realidade constituída pela "experiência", de cuja premissa retirava a idéia de "ação útil" como único critério possível para a verdade.
3) JAMES, William. Apud: PARK, Robert E. Op. cit., p.168.
4) PARK, Robert E. Op. cit., p.169.
5) Ibidem, p.174.
6) Ibidem, p.175.
7) Ibidem, p.176.
8) "(. . .)a práxis utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade" (p.10). "No mundo da pseudoconcreticidade o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece" (p.12). In: KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. (Vale assinalar que o conceito de pseudoconcreticidade de Kosik, à medida que tenta explicar pelo viés epistemológico os processos produzidos no terreno da ideologia, torna-se bastante discutível. Preferimos considerar que esse conceito não possui o alcance que o autor lhe atribui).
9) Park, Robert E. Op. cit., p.169.
10) (Ver: Discurso sobre o espírito positivo, especialmente o item VII, pp.61-63). COMTE, Auguste. Comte. São Paulo, Abril Cultural, 1978.
11) O termo percepção é tomado, aqui, como aquela apreensão imediata do real que fornece os elementos que, através da generalização em maior ou menor grau, vão constituir os conceitos e as idéias mais abstratas.
12) GENRO FILHO, Adelmo. A ideologia da Marilena Chauí. In: Teoria e Política. São Paulo, Brasil Debates, 1985. p.69-88.
13) MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Textos. São Paulo, ed. Sociais, 1975. v.1, p.118.
14) LUKÁCS, Georg & SCHAFF, Adam. Sobre o conceito de consciência de classe. Porto, Escorpião, 1973. (Cadernos O homem e a sociedade), p.38.
15) Idem, p.12.
16) Em 1976, num texto intitulado Nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado, Althusser tenta responder às críticas que atribuíram aos seus conceitos certa dimensão "funcionalista", alegando que em seu ensaio de 1969/70 ele sublinhava o caráter "abstrato" de sua análise e punha explicitamente no centro de sua concepção a luta de classes. (Ver: ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. 2.ed., Rio de Janeiro, Graal. pp. 109-28). De fato, Althusser reconhecia a existência de contradição nos "AIE", seja em virtude da sobrevivência das ideologias antigas ou da emergência das novas, assim como afirmava a "primazia de luta de classes sobre as funções e o funcionamento do aparelho de Estado, dos aparelhos ideológicos de Estado". (Op. cit., pp.109-110). Mas a questão de fundo é que tais contradições são exteriores ao conceito "abstrato" - como ele mesmo admitiu - de Aparelhos Ideológicos de Estado. São realidades sociais definidas pelo seu aspecto não-contraditório, o que impede de apreendê-las concretamente na sua dinâmica intrínseca. Mais tarde, num texto datado de 1972, 'Elementos de autocrítica', Althusser chega a reconhecer um dos aspectos fundamentais de seu equívoco teórico: a oposição entre ciência e ideologia. Essa oposição está na base do conceito de "AIE" e do seu caráter "orgânico-funcionalista". Mas Althusser não vai mais longe. (Ver: Althusser, Louis. Resposta a John Louis/Elementos de autocrítica/Sustentação de tese em Amiens. Rio de Janeiro, Graal, 1978. (Posições 1).
17) HUDEC, Vladimir. O que é jornalismo? Lisboa, Caminho, 1980. (Col. Nosso Mundo) p.44.
18) PARK, Robert E. Op. cit., p. 176.
19) Podemos citar nesse campo, Cornelius Castoriadis, André Gorz, Ivan Ilitch, Daniel Cohn-Bendit e tantos outros. As teses mais proeminentes do chamado "pós-marxismo" estão localizadas numa confluência de três correntes: um marxismo com acento autogestionário, a tradição anarquista e os movimentos pacifistas e ecológicos.
20) Ver Ilitch, Ivan. A convivencialidade. Lisboa, Europa-América, 1976; GORZ, André. Adeus ao proletariado: para além do socialismo. Rio de Janeiro, Forense/Universitária, 1982.
21) O próprio Castoriadis reconhece as conseqüências globais de qualquer tipo de regressão das forças produtivas, o que aponta a dimensão utópica de propostas desse gênero:"É preciso levar em conta que não há praticamente nenhum objeto de vida moderna que de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, não implique eletricidade. Essa rejeição total é talvez aceitável - mas é preciso sabê-lo e é preciso dizê-lo". In: CASTORIADIS, Cornelius & COHN-BENDIT, Daniel. Da Ecologia à autonomia. São Paulo, Brasiliense, 1981. pp.25-6.
22) Sobre as concepções de McLuhan, Enzensberger observou: "Intuitivamente, pelo menos, conseguiu maior discernimento das forças produtivas dos meios de comunicação do que todas as comissões ideológicas do PUCS em suas intermináveis resoluções e diretrizes. Incapaz de formular qualquer teoria, McLuhan não consegue dar sentido a seu material, estabelecendo-o como denominador comum de uma reacionária doutrina de salvação. Se bem que não seja seu inventor, pelo menos foi o primeiro que expressamente formulou uma mística dos meios de comunicação, mística essa que transforma em fumaça todos os problemas políticos, iludindo seus seguidores. A promessa dessa mística é a salvação da humanidade através da tecnologia da televisão, e precisamente dessa que se pratica hoje em dia. O intento de McLuhan, ao tentar virar Marx pelo avesso, não é exatamente algo de novo. Partilha, com seus numerosos antecessores, da decisão de suprimir todos os problemas da base econômica, e do intuito idealista de minimizar a luta de classe no azul celeste de um vago humanismo. Tal e qual um novo Rousseau - débil reflexo, como todas as cópias - proclama o evangelho dos novos primitivos, convidando à volta a uma existência tribal pré-histórica na 'aldeia global', se bem que em um nível mais elevado". In: ENZENSBERGER, Hans-magnus. Elementos para uma teoria dos meios de comunicação. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978. (Biblioteca Tempo Universitário) p.116. Ver também: FINKELSTEIN, Sidney. McLuhan: a filosofia da insensatez. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.
23)Deve-se fazer uma resalva para a discussão que se trava em torno da Antropologia, sobre suas tendências universalizantes e particularistas. Mesmo quando a antropologia busca a reconstituição específica de realidades sociais particulares, ela parece fazê-lo através de um processo teórico que visa apreender a concreticidade dos fenômenos estudados por um movimento de dupla direção: de um lado, a especificação do objeto, de outro a revelação das universalidades que o compôem intimamente. Até a história, que precisa fazer o mais completo inventário dos acontecimentos singulares, deve fazê-lo sob o prisma da universalização dos conceitos e categorias capazes de estabelecer nexos e dar sentido aos fatos. "Disseram que a física se ocupa da queda dos corpos, e zomba das quedas dos corpos singulares, a queda de cada folha a cada outono. enquanto a história se ocupa dos fatos singulares. É um erro, pois, o que corresponderia à queda de cada folha não é o acontecimento histórico, como por exemplo, o casamento no século XVII ou em outros, mas sim o casamento de cada um dos súditos de Luís XIV . . . Ora, a História se ocupa disso tanto quanto a Física da queda de cada um dos corpos . . ." In: VEYNE, Paul. O inventário das diferenças / História e sociologia, São Paulo, Brasiliense, 1983. p.52.
24)
25)
26)
27)
28)

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