Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. Contra o socialismo legalista. Porto Alegre, Tchê, 1987. pp. 1-09. [Ref.: T193]

Contra o socialismo legalista

Adelmo Genro Filho


Edição Original:

Edição: Tau Golin
Edição de texto: Cássia Corintha Pinto
Capa: Cristina Pozzobon
Montagem e Arte final: Clairton Rodrigues
Impressão: Pallotti - Santa Maria - RS
Fotolito: Vilnei Machado
Impressão: Pallotti - Santa Maria - RS
Editora: tchê! Editora Ltda.
Porto Alegre - RS - Brasil
Editor: Airton Ortiz
Impresso em setembro de 1987
© Adelmo Genro Filho

(Texto das orelhas do livro)

         Opondo-se frontalmente às teses que pregam a necessidade de dissolução ou exclusão das organizações marxistas-leninistas "com personalidade própria", que se propõem a construir o PT como "partido de massas capaz de cumprir um papel revolucionário", os dois textos de Adelmo Genro Filho que compõem este livro analisam e criticam o chamado socialismo legalista". Segundo o autor, essa concepção política sobre a conquista do socialismo, "apesar das sinuosidades com que têm sido formuladas, vai expondo cada vez mais nitidamente suas teses centrais", cuja resultante seria a transformação do PT num partido perfeitamente integrado à ordem burguesa.

         O "socialismo legalista", desse modo, poderia ser entendido como o caminho particular para a constituição de uma alternativa partidária "social-democrata" no Brasil, semelhante aos partidos europeus originados da II internacional. Em outras palavras, seria realização de um projeto para a transformação do PT num partido de base operária que reproduziria a dominação capitalista.

         Os textos de Genro Filho reunidos neste livro se inserem, portanto, numa polêmica fundamental dentro do Partido dos Trabalhadores, em oposição às idéias de Wladimir Pomar (cujos artigos são publicados em apêndice), considerado pelo autor como o principal ideólogo do "socialismo legalista". O debate vivo aqui apresentado interessa não apenas aos militantes da esquerda e simpatizantes do socialismo, mas também aos estudiosos na área das ciências sociais e políticas, dispostos a colher um material vivo para a compreensão dos embates teóricos e políticos no interior do movimento operário e popular.

A Editora


Apresentação desnecessária

Florestan Fernandes

         O companheiro Adelmo Genro Filho distinguiu-me com o convite para escrever um prefácio para este livro. Trata-se de uma apresentação desnecessária. Os escritos dele, de Wladimir Pomar ou deste em colaboração com José Dirceu possuem um perfil próprio. O que é mais importante, sustentam-se sobre argumentos que atravessam a interpretação do desenvolvimento da sociedade brasileira e propõem o enigma histórico que o PT terá de responder, para tornar-se (ou não) um partido proletário revolucionário.

         Hoje, todos se proclamam revolucionários e exercem o direito legítimo de escolha dos caminhos distintos, que podem levar à revolução proletária. Desde que Togliatti endossou o conceito de policentrismo, Garaudy reconheceu que vários caminhos conduzem ao socialismo, Gorz (antes de abjurar Marx e o proletariado) descobriu o impulso revolucionário do trabalhador intelectualizado e o eurocomunismo entrou em circulação, a revolução socialista perdeu a sua poesia e o advento do comunismo passou a ser negligenciado. O arco capitalista revelou-se muito forte e desorientou a imaginação criativa dos intelectuais, gerando a tragédia que Hobsbawm descreveu com sábia ironia, bem documentada, de uma disjunção entre "tradição cultural revolucionária" e "tendências políticas conservadoras" do regime de classes, sob o capitalismo avançado.

         Sou acima de tudo um intelectual, com uma experiência militante magra, de uma dezena de anos, nas condições de uma ditadura ultra-repressiva (a do Estado novo) e uma prática acadêmica mais profunda e marcante. Mas, como Lênin, desconfio dos intelectuais. Eles inventaram o cooperativismo, o socialismo, o anarquismo, o comunismo - mas existem intelectuais e intelectuais. Sem teoria não há revolução. No entanto, depois da derrota das revoluções de 1848-1850, Marx ironizou os extremistas, todos intelectuais, que se deitavam em seus sofás e maldiziam a revolução, que era impossível. E Lênin, um intelectual da cabeça aos pés - o "estrategista da revolução russa", segundo Trotsky - indicou repetidas vezes o quanto os intelectuais contribuíam para aburguesar o marxismo. Os "socialistas de cátedra" foram, como são em nossos dias os marxistas de cátedra, um perigo para os ritmos históricos oscilantes da luta de classes. De repente, homens como Gorz desabam e os marxistas de gabinete não sabem o que fazer com seus conhecimentos sobre Marx e Engels, a revolução russa, a revolução e a contra-revolução sob o capitalismo monopolista da era atual, etc.

         A questão é mais grave no Brasil. Os intelectuais são universitários e sua erudição se prende à carreira acadêmica, não à atividade revolucionária. Pode-se arrolar as várias modas, que procedem da Europa e em parte dos Estados Unidos, como " pacotes culturais" da esquerda: Lukács, Sartre, Goldman, Gramsci, Althusser, a Escola de Frankfurt, Castoriadis e Lefort, Habermas. . . As estrelas sobem, empalidecem e somem! Fica como permanente a ânsia de entrar na "nova onda", de caminhar à frente, de estar sempre na moda. Ora, os operários não têm nada a ver com esse mundo de idéias, escavado nos livros. Marx foi, desde o princípio, contra essa espécie de "marxismo". O socialismo científico ou o comunismo não brotaram só da crítica da filosofia, da economia e da história "burguesas". Eles nasceram do confronto da crítica com o concreto, fornecido pela existência da força de trabalho como mercadoria, da mais valia, da aceleração da acumulação capitalista, da luta de classes e da forma política de democracia corporificada na ditadura do proletariado. No Brasil, como no resto da América Latina, ficamos prisioneiros de sucessivas reflexões sobre o marxismo, que vinham prontas e acabadas de fora. Os "intérpretes" fabricavam colonialmente a cabeça dos revolucionários de gabinete. . .

         Enquanto isso, a partir do último decênio do século XIX (e em particular do primeiro quartel do século XX) os trabalhadores construíam a categoria histórica de trabalho livre, inexistente no universo escravista. Foram largos e difíceis anos de dura guerra cotidiana contra o despotismo patronal e a repressão policial. Ao fim, a categoria histórica trabalho livre se forja historicamente e os intelectuais, anarquistas, socialistas ou comunistas, não se dão conta dessa realidade e o que ela significava! Os patrões resistiram, nas fazendas e nas fábricas, tentando manter a condição do trabalhador como substituto e equivalente do escravo, nas relações de produção e nas relações de mercado. Os trabalhadores resistiram, primeiro, e defenderam ofensivamente a sua dignidade humana, em seguida, e a história do Brasil ganhou essa categoria, que marca o início da modernidade, a manifestação primordial do proletariado como classe e o desabrochar do movimento operário. Esses trabalhadores raramente eram ativistas. Trabalhavam no campo e nas fabricas, sem noções claras a respeito do novo mundo que estavam construindo historicamente. Os dirigentes sindicalistas, anarquistas, socialistas e comunistas sequer tiveram consciência da grandeza do momento histórico que estavam vivendo e não concorreram voluntariamente para a formação objetiva dessa categoria, como dado da condição proletária e da transformação histórica da sociedade brasileira. Suas "teorias" (mais ou menos confusas e dogmáticas), já pressupunham o trabalho livre como premissa histórica e legal. Eles não se indagavam como a categoria se constituiria socialmente, na desagregação do modo de produção escravista e da desorganização do trabalho escravo. Parecia-lhes que uma coisa gerava a outra, automaticamente, de forma mecanicista. A transformação dialética não veio pois, da cabeça dos intelectuais. Surgiu dos antagonismos dos trabalhadores e da elaboração de uma totalidade histórica na qual a oposição entre capital e trabalho exigia concretamente aquela premissa histórica.

         Poder-se-ía percorrer toda a evolução da sociedade de classes no Brasil assinalando tais desencontros, produto de uma vanguarda intelectual "radical" de origem burguesa ou aburguesada e de seus contatos tangenciais com a formação da classe operária e o desenvolvimento das lutas sociais dos trabalhadores. Os sindicatos e, principalmente, os partidos reclamam uma descrição diversa, porque se vêem como demiurgos do real, como criadores do movimento operário. Todavia, os trabalhadores ergueram pedra a pedra o seu mundo, por sua conta e risco, apesar de suas limitações de organização de classe, de consciência social e de potencial de autodefesa ou de ofensiva políticas. Em conseqüência, ocorreu algo paradoxal: o movimento operário estava "teoricamente" atrás das doutrinas sustentadas pelos partidos ou pelos intelectuais acadêmicos, mas sempre estiveram à sua frente "praticamente" nos enfrentamentos com a burguesia.

         A obsessão por imitar os centros estrangeiros de difusão cultural ou a necessidade de submissão às diretrizes de direções sindicais e partidárias autoritárias omitiram do campo de visão dos intelectuais (nesse caso ativistas ou acadêmicos) o quanto ficavam atrás do movimento dos trabalhadores (e suas oscilações e, o pior, o quanto era literalmente inútil o arsenal teórico importado, aplicável às condições da luta de classes nos países industriais avançados ou nos quais eclodiam as revoluções proletárias. Só muito mais tarde, sob a incorporação ao capitalismo monopolista, depois da segunda guerra mundial e, em especial, sob a industrialização maciça desencadeada pelo novo modelo de associação da burguesia nacional ao imperialismo, que a opacidade começou a dissipar-se e que os estudos dos trabalhadores abriram novas vias à construção teórica. Não é o caso de fazer-se um balanço, aqui e agora, das descobertas feitas. Mas tais estudos abriram as portas para encadear as lutas dentro das fábricas (até 1978) e as greves com a produção teórica de cunho empírico e a reflexão de âmbito revolucionário.

         Houve, também, um desdobramento, mas sem continuidade: os que foram à guerrilha, na crítica aos partidos e organizações a que pertenciam, fizeram diagnósticos de profundidade, inovadores e enraizados na situação histórica brasileira e latino-americana. Os dois florescimentos teóricos não se interpenetraram e seria bom se isso tivesse acontecido, por causa dos conhecimentos críticos que se acumularam sobre a reforma agrária, o potencial revolucionário espontâneo dos trabalhadores do campo e da cidade e as equações políticas dos tipos de partidos proletários, que tais contribuições sugeriam ou deixavam implícitas.

         No fim do século XX, as perspectivas parecem alterar-se rápida e profundamente. A hibernação dos dois PCs não deve provocar ilusões: ambos sofreram progressos teóricos. As fraturas internas e as dissenções doutrinárias enriqueceram o quadro da meditação política centrada na luta de classes. De outro lado, como em outros países da América Latina, apareceram partidos que abrangem um leque interno de opções, que vão do humanitarismo e do reformismo radical à social democracia, ao socialismo revolucionário e ao comunismo. O PT é o partido típico, mas o PDT e o PSB participam de algumas dessas características. A reviravolta que se delineia é dupla. De um lado, a fermentação teórica revolucionaria imbrica-se com o ativismo político e enquadra-se nas condições concretas da luta de classes. Os sindicatos encorparam, acompanhando o amadurecimento da classe, e as centrais operárias marcham em nova direção, como se exemplifica com a CUT e com sua Oposição Sindical, empenhadas em transcender ao radicalismo burguês e em ultrapassar o sindicalismo economicista. A questão central sobe à tona: como organizar o partido e quais são, no Brasil, as vias da revolução proletária? Mesmo antigos líderes, como Luiz Carlos Prestes, se voltam com espírito objetivo para essa indagação. Luta de classes e revolução, não mais como revolução dentro da ordem (como aprofundamento da revolução burguesa) mas como revolução contra a ordem (como meio para criar uma nova sociedade, sob hegemonia do proletariado, e de chegar ao socialismo e ao comunismo).

         Se se tomar a década de 1920 como ponto de referência, demoramos mais de sessenta anos para chegarmos a um ponto de partida correto e superarmos os dramas da fraseologia revolucionária. Se se compara essa evolução com a vitória da revolução em Cuba, gastamos mais de um quarto de século para entrelaçar a construção da teoria com as potencialidades revolucionárias dos trabalhadores. Ora, tudo poderia ser mais simples se a história brasileira caminhasse mais depressa e se se tivesse posto de lado as ficções transplantadas como "verdades científicas". Confiou-se demais na prioridade da revolução burguesa; na importância estratégica do desenvolvimento democrático prévio da sociedade civil, como etapa necessária de um "salto qualitativo", mito que a revolução cubana desmontou para sempre, com referência às correntes históricas da América Latina. Várias ilusões se sedimentaram e se soldaram entre si, bloqueando o horizonte intelectual dos dirigentes sindicais e partidários, e, através deles, fazendo estragos irreparáveis nas orientações e na velocidade dos movimentos sociais dos proletários. Essas ilusões voaram pelos ares, graças à contrarevolução de 1964, à intensidade da repressão e da opressão dos trabalhadores sob a ditadura e à busca de saídas lastreadas na situação brasileira, com as exigências teóricas e práticas que elas impõem aos novos partidos proletários e à renovação dos velhos partidos proletários.

         Este livro contém ensaios escritos dentro desse contexto histórico e político. O seu desafio situa-se no PT. Como ele deve encarnar as tarefas políticas das classes trabalhadoras? O que ele representa como agente dinâmico de difusão institucional do socialismo no seio das classes trabalhadoras e no meio ambiente (isto é, entre os seus aliados de classes possíveis)? Quais são os meios e os objetivos da revolução socialista dentro do PT? Como se aprofundará e se superará a carência de organização da classe e do partido, enfim que tipo de revolução proletária está ao alcance e na mira do PT? Há polêmicas estéreis e artificiais como se o PT deveria ser um "partido de frente" e de "Massa" ou um "partido de quadros" e de "vanguarda". Os revolucionários devem aprender a ter paciência e a acompanhar as classes trabalhadoras. Até hoje, ficaram a reboque de seus avanços, no solo histórico brasileiro. Não podem, agora, retomar a práxis ultrapassada de vanguardas fictícias, que supunham que a história caminhava em uma direção, enquanto ela ia em outro rumo bem diferente.Daí a importância dos debates e até dos embates melindrosos. Eles são duros, porém amadurecem a capacidade de ação política organizada. O PT não pode repetir os erros danosos do dogmatismo e, se puder, deve evitar a todo custo os erros ainda mais graves do oportunismo e das ilusões utópicas ou românticas. Não estamos na Europa, na Rússia da década de 1910, na China revolucionaria e, sequer, em situação comparável à de Cuba em 1959. Por isso, é aconselhável não pensar que "Marx e o marxismo estão mortos" e entender que as classes trabalhadoras negam a ordem social existente na sociedade capitalista, aqui e alhures. Cabe-lhes destruir a classe e o regime de classes. Cabe-lhes, também, conduzir a transição para o socialismo. A conquista do poder tem de situar-se no momento certo e não como artifício para resolver, dentro do capitalismo e para o capitalismo, os problemas e os dilemas sociais que a burguesia não consegue enfrentar.

         O socialismo comprometido com a democracia burguesa ainda é uma forma de reprodução do sistema capitalista de poder. A revolução proletária volta-se para a emancipação coletiva dos trabalhadores pelos próprios trabalhadores. Ou o PT decifra a solução correta desse necessidade histórica na cena brasileira ou ele engrossará as fileiras dos partidos reformistas imantados à "reforma capitalista do capitalismo", ao "capitalismo melhorado" ou ao "Capitalismo do bem estar social". Penso ser esta a principal resposta deste livro às indagações, às esperanças e às convicções que nos lançam, dentro do PT, à luta pelo socialismo proletário e revolucionário.

São Paulo, 03 de setembro de 1987.


(Contra capa)

Contra o socialismo legalista

         O socialismo comprometido com a democracia burguesa ainda é uma forma de reprodução do sistema capitalista de poder.

         A revolução proletária volta-se para a emancipação coletiva dos trabalhadores pelos próprios trabalhadores.

         Ou o PT decifra a solução correta dessa necessidade histórica na cena brasileira ou ele engrossará as fileiras dos partidos reformistas imantados à "reforma capitalista do capitalismo", ao "capitalismo melhorado" ou ao "capitalismo do bem estar social".

         Penso ser esta a principal resposta deste livro às indagações, às esperanças e às convicções que nos lançam, dentro do PT, à luta pelo socialismo proletário e revolucionário.





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