Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. Contra o socialismo legalista. Porto Alegre, Tchê, 1987. pp. 31-58. [Ref.: T195]
APÊNDICE I

Algumas considerações sobre as
tendências organizadas no PT

José Dirceu
Wladimir Pomar

         O Partido dos Trabalhadores ingressou em 1986 tendo que enfrentar diversos desafios decorrentes de sua firme postura contra a transição conservadora. Desafios em suas relações externas, tendo que mostrar-se uma real alternativa de governo, tanto naquelas cidades onde conquistou prefeituras, como em boa parte dos estados onde os resultados eleitorais de 1985 demonstraram que o partido é uma força capaz de concorrer e conquistar o governo estadual. Desafios também em suas relações internas, pois a realidade de ser governo numa cidade como Fortaleza e a possibilidade de governar estados como São Paulo, Goiás, Ceará, Sergipe, Espírito Santo ou outros, vem assustando muitos companheiros e coloca inúmeras indagações.

         A burguesia permitirá que o PT, considerado socialista, radical e intransigente, ganhe as eleições em alguns desses estados, e, em caso positivo, permitirá que o PT assuma o governo? Caso assumamos governos estaduais, o partido aplicará seu programa socialista? Ou correrá o risco de se transformar num partido de tipo social-democrata? Temos quadros e competência para governar? Como aplicar um programa socialista se nem sabemos ainda que socialismo queremos?

         As indagações e os temores não param aí. Relacionam-se também com a Constituinte, com a atividade parlamentar do partido, com as mudanças na estrutura sindical, com as relações entre o movimento social e o movimento institucional e, em grande medida, com o próprio PT, com o tipo de partido que devemos construir para alcançar as transformações sociais necessárias para libertar os trabalhadores da exploração e da opressão.

         Para responder a essas indagações, o partido, como um todo, terá que fazer um grande esforço para entender a própria sociedade brasileira, as tendências do movimento social e os reflexos dessas tendências na esfera política e institucional e nas demais esferas da sociedade. Mais do que nunca se coloca para todo o partido o debate aberto, sincero e franco das questões de fundo com que se defronta.

         Se esse debate não acontecer, o PT corre o risco de ver muitos de seus militantes abraçarem as respostas prontas e acabadas de grupos políticos sectários ou ingressarem pelos descaminhos das dúvidas eternas. É compreendendo as perspectivas dessa maneira, que decidimos contribuir para o debate com este texto. Nele procuramos discutir algumas das posturas ideológicas e políticas das correntes organizadas que atuam no PT. Em primeiro lugar porque elas possuem um corpo sistematizado de idéias em torno dos principais problemas que enfrentamos e, em segundo lugar, porque todas elas, apesar das diferenças que apresentam entre si neste aspecto, possuem uma concepção de construção do PT que, na realidade, consiste em sua construção própria. E esta é uma questão-chave para o futuro.

         1. Rápido histórico

         É publicamente conhecido que atuam no PT a Organização Revolucionária Marxista Democracia Socialista (ORMDS), o Partido Revolucionário Comunista (PRC), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), a Fração IV Internacional - O Trabalho e o Movimento Comunista Revolucionário (MCR). A Convergência Socialista (CS), dependendo de seus humores, ora afirma atuar no PT, ora afirma estar fora. Grupos de menor expressão, como a Causa Operária e, agora, a Esquerda, também procuram o espaço do PT para atuar e veicular suas idéias e propostas.

         Todas essas organizações se autodenominam marxistas, marxistas-leninistas, e, em alguns casos, marxistas-leninistas-trotskistas. Todas se consideram anti-stalinistas. Para a maior parte dos militantes do PT todas essas autodeterminações e considerações soam esotéricas e resultam em confusões dos mais diferentes tipos. Eis porque achamos conveniente este breve histórico dessas organizações.

         A DS foi fundada em 1979 como resultado das cisões e fusões de pequenos grupos trotskistas, isto é, grupos que tomam as idéias do antigo revolucionário russo Trotsky como orientação teórica de suas atividades. O grupo reunido em torno do O Trabalho também se considera trotskista, assim como a Causa Operária (uma cisão do O Trabalho) e a Convergência Socialista.

         Na sua origem, os grupos chamados trotskistas surgiram no Brasil no período de 1927/28 tanto em função da divisão do movimento comunista da União Soviética, com a expulsão de Trotsky do Partido Comunista (bolchevique), quanto em função de divergências em relação ao movimento operário no próprio Brasil, dentro do Partido Comunista do Brasil (PCB, na época). Basicamente, os trotskistas reivindicavam a pureza operária do partido, negando qualquer tipo de aliança de classe; proclamavam a necessidade de sindicatos revolucionários e da revolução permanente para o socialismo, negando qualquer etapa nacional, nacional-democrática ou democrática-burguesa no processo revolucionário. E negavam qualquer possibilidade de construção do socialismo em um só país, portanto na União Soviética, atacando-a principalmente por não fazer a revolução mundial e estar dominada pela burocracia operária.

         Do ponto de vista prático, os grupos trotskistas jamais conseguiram ter uma forte expressão política no Brasil, mesmo em comparação com o PCB. Alguns setores atuais do trotskismo, como a DS, tendem a reconhecer esse fato, explicando-o mais pela fraqueza do movimento operário do que pelas próprias concepções ideológicas e políticas que os embasam. Na atualidade, a CS e a Causa Operária são os grupos trotskistas que guardam mais fidelidade às origens, mantendo as características que marcavam o trotskismo em seus primórdios. A DS e O Trabalho representam uma evolução no sentido de que, se procuram guardar fidelidade formal ao que chamam de "programa marxista", procuram ao mesmo tempo adaptar-se à realidade da luta política do país através de políticas e posturas que muitas vezes entram em contradição com o chamado "programa marxista".

         Tanto a DS, quanto o O Trabalho, a CS e a Causa Operária são filiadas a diferentes frações ou grupos do que consideram uma corrente ideológica e política de expressão internacional, a IV Internacional.

         O PCBR, o PRC e o MCR são correntes que saíram do PCB em períodos mais recentes. O PCBR surgiu de uma das cisões que abalou PC após o golpe militar de 1964. O PRC é uma ala do PC do B, este por sua vez fruto da cisão no PCB em 1962. O MCR é uma fusão de grupos rompidos seja com o PCB, seja com a AP (Ação Popular), com o PC do B (Ala Vermelha) ou com o Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP). Destas correntes organizadas dentro do PT, que também se reivindicam marxistas-leninistas, a que possui um corpo de idéias mais sistematizado, inclusive com um programa máximo e um programa mínimo, é o PRC.

         Em termos gerais, todas elas consideram-se comunistas revolucionárias e pólos concretos de unificação dos comunistas para a construção de um partido de vanguarda da classe operária. Todas declaram-se pela revolução socialista, com um grau maior ou menor de elaboração teórica a respeito, pela pureza ideológica e política da classe operária e, até há pouco, consideravam que o país vivia uma situação pré-revolucionária. Também com grau variado de explicitação, essas correntes definem-se como antitrotskistas e antireformistas. Sua história, inclusive no que respeita à luta contra o reformismo, está ligada a ações concretas para transformar em realidade, em passado mais ou menos recente, diferentes tipos de luta armada.

         O PRC e o MCR possuem, ainda, uma postura anti-stalinista definida teoricamente e não mantêm nenhum laço internacional.

         Evidentemente, informações gerais desse tipo não demonstram a justeza ou não das propostas ideológicas e políticas dessas organizações e não podem ser consideradas além dos limites do que são realmente, isto é, informações genéricas. Entretanto, essas informações trazem embutidas algumas questões que merecem a reflexão dos militantes do PT.

         Todas essas organizações têm atrás de si uma história relativamente longa de tentativas de aplicação prática e revolucionária de diferentes tipos de interpretação do marxismo, sem que nenhuma tenha conseguido transformar em realidade concreta tais tentativas. Seus fracassos resultaram em crises que são a causa de diversas cisões ou rachas enfrentadas por essas organizações.

         Apesar dos erros e fracassos, essa história demonstra, porém, uma dose de persistência revolucionária, que merece uma apreciação positiva e não deve ser desprezada. Ao contrário, mostra que apesar de todos os processos de conciliação levados a cabo pela burguesia, existem no Brasil setores sociais que não perderam a perspectiva da transformação radical da sociedade brasileira como condição para liquidar a exploração e a opressão.

         Por outro lado, também mostra o quanto a arrogância e autoconfiança demonstrada por essas organizações, como pretensas portadoras da verdade, não corresponde a sua história. O próprio fato de que cada uma pensa dominar o marxismo, e possui seu marxismo particular, já deveria havê-las alertado para a necessidade de serem modestas e procurar aprender com os ensinamentos da história e da realidade.

         Elas já deveriam ter aprendido que possuem poucas condições para proclamar-se verdadeiramente marxistas, no sentido estrito do termo, pela falta de demonstração prática. Afinal, segundo o marxismo, a prática é ou não o critério da verdade?

         Entretanto, não são essas as questões principais da ação das organizações dentro do PT que devem merecer nossa atenção. o que mais nos interessa discutir agora é sua postura de que são a "esquerda" do PT por causa de suas concepções sobre socialismo, sobre a luta contra a transição da Aliança Democrática e sobre a construção de um partido revolucionário. Essas questões incluem, necessariamente, a postura e a ação dessas organizações e de seus militantes dentro do PT, o que também pretendemos discutir.

         Uma preliminar a essa discussão se faz necessária. Os dirigentes dessas organizações abusam do direito de acusar de anticomunistas aqueles que dentro do PT, os criticam. Não negamos que possa haver um certo ranço anticomunista entre militantes e filiados do PT. Mas se ele existe isso se deve, em grande parte, a certas práticas aplicadas por militantes dos grupos organizados autodenominados comunistas. As críticas a elas, porém, não podem ser confundidas com anticomunismo. Defendemos seu direito de existência dentro do partido, consideramos mesmo que elas jogam um papel de certa importância na construção do PT como um verdadeiro partido político de classe, consideramos muito importante que tenham propostas e posições políticas definidas, mas isso não quer dizer que concordemos com suas posições e que não vamos criticá-las e mesmo combatê-las politicamente.

         Os grupos organizados dentro do PT precisam deixar de lado a postura de certos artistas e intelectuais brasileiros que se consideram imunes a criticas e acham um absurdo quando alguém tenta fazê-las. À medida que o PT enfrenta maiores desafios, o embate ideológico e político vai se aguçar dentro e fora do partido e será inevitável travar esse embate tanto contra as concepções atrasadas e despolitizantes, pela direita, como contra as concepções pseudo-avançadas, doutrinaristas, pela esquerda.

         2. Socialismo

         As organizações que estamos discutindo aqui têm concepções mais ou menos idênticas sobre o socialismo. Extraímos de alguns de seus textos fundamentais suas idéias básicas a respeito desse tema programático de grande importância para o PT.

         DS ("O que é a Democracia Socialista...")

         "Sob o socialismo, os meios de produção - . . . - serão propriedade coletiva e sua gestão será democraticamente deliberada e exercida pelo conjunto da sociedade em benefício de todos."

         "(Uma) sociedade socialista é impossível sem a propriedade coletiva dos meios de produção e das riquezas produzidas, sem a planificação da economia e de sua gestão pela classe operária em seu conjunto, através de conselhos de trabalhadores democraticamente centralizados, isto é, a autogestão planificada dos trabalhadores."

         PRC (Resolução Política do II Congresso):

         "Esta estrutura objetiva do desenvolvimento do capitalismo descarta, desde logo, a possibilidade de uma revolução dirigida por qualquer fração da burguesia. Por outro lado, determina que a pequena burguesia assalariada e o campesinato são incapazes de uma ação histórica independente. Devido as características do desenvolvimento capitalista e do processo de diferenciação de classes, uma luta no país coloca necessariamente em confronto os interesses do capital contra os interesses históricos do proletariado. A única revolução possível nesta sociedade é a revolução socialista."

         PRC (Programa):

         "Na sua marcha em direção à sociedade sem classes, a revolução social do proletariado, num primeiro momento, substituirá a propriedade privada dos meios de produção e circulação pela propriedade social, submeterá os meios de produção e o conjunto do processo econômico ao controle operário, substituirá a produção mercantil e as formas de distribuição, circulação e consumo burguesas e pequeno-burguesas por formas sociais, substituirá a anarquia da economia capitalista pela organização planificada da produção social, assegurará o bem estar material e cultural crescente a todos os membros da sociedade, abolirá os impostos, lutará incessantemente contra o burocratismo e combaterá no plano das idéias as ideologias reacionárias, crendices, religiões, preconceitos e pontos de vista retrógrados."

         MCR (Manifesto de Fundação)

         "(Os) comunistas organizados no MCR, analisando a formação social brasileira, afirmam que estão criadas as condições gerais que apontam já para a construção de um Brasil Socialista."

         "Para nós, o caráter da revolução é socialista. Vivemos num país com relações de produção capitalistas desenvolvidas, na cidade e no campo."

         "( A) solução para a miséria, a opressão e exploração do povo brasileiro, não se dará com reformas e nos marcos de um regime burguês. O aprofundamento da democracia para as massas significa, em última instância e como necessidade histórica, romper revolucionariamente com a ordem burguesa e iniciar a construção do socialismo."

         As concepções dos demais grupos organizados sobre o socialismo não se diferenciam muito do exposto acima. E é interessante lembrar que todas elas, indefectivelmente, criticam as insuficientes definições programáticas do PT, entre as quais a definição sobre o socialismo. Entretanto. falando francamente, pode-se considerar suficientes as definições acima?

         A DS e o PRC são incapazes de sair dos princípios ou definições gerais sobre o socialismo, válidos para todos os países do mundo. Esse é justamente um dos exemplos mais flagrantes de seu doutrinarismo. Transformam em fórmulas gerais alguns conceitos marxistas e consideram-se prontos para aplicá-los em qualquer situação e em qualquer tempo. E acusam os outros de atrasados por não seguir o mesmo caminho. O MCR, por sua vez, não chega sequer a avançar qualquer idéia sobre o seu socialismo.

         Quando Marx fez algumas projeções gerais sobre o socialismo, ele sempre pensava em termos de transformação dos países capitalistas avançados. Isto é, países onde a produção havia se tornado crescentemente social, através da concentração e centralização capitalista, em contradição com a apropriação privada dos meios de produção e da própria produção; onde a capacidade produtiva havia alcançado um alto estágio com o desenvolvimento das forças produtivas materiais, da ciência e da técnica; e onde, em função disso tudo, a sociedade estaria dividida basicamente em duas classes, a dos burgueses e a dos assalariados.

         Nessas condições, para Marx, o socialismo seria a primeira fase de uma sociedade em que os meios de produção passariam a ser propriedade coletiva, em que a gestão desses meios seria realizada democraticamente pelos próprios trabalhadores, em que a produção seria planificada de acordo com as necessidades sociais, em que seria edificado um novo Estado para dirigir a transição da antiga para a nova sociedade e exercer a ditadura política contra as antigas classes dominantes expropriadas. Nessa fase, ao contrário do que pensa o PRC, não seria possível abolir os impostos simplesmente porque, sem eles, não seria possível sustentar o Estado nem realizar de forma planificada a distribuição dos recursos entre a sociedade. Marx não era idealista e sonhador a esse ponto.

         Nessa fase seria necessário desenvolver ainda mais as forças produtivas materiais, principalmente as ciências, a técnica e o nível cultural e técnico dos membros da sociedade. Criar, pois, as condições reais para extinguir a divisão social do trabalho e as classes e, assim, criar as bases para acabar com o próprio Estado. Essa segunda fase do socialismo, em que a sociedade ingressaria numa sociedade sem classes, sem qualquer tipo de exploração e opressão, teria por base a abundância material da produção, com capacidade para atender as necessidades sociais e culturais completas de cada um de seus membros. Isso tornaria inútil a economia mercantil e, portanto, os meios de troca como o dinheiro.

         Marx baseava todas essas previsões gerais não em sonhos e fantasias, mas no próprio processo avançado de desenvolvimento do capitalismo. Hoje, inclusive, olhando o avanço das forças produtivas do capitalismo, da cibernética, da informática, da automação, da robótica, da eletrônica, dos esforços para criar o operário polivalente, da imensa capacidade produtiva alcançada, em contraposição à tendência de criar um exército de reserva cada vez maior, é possível ver ainda mais claramente as condições para a implantação do socialismo conforme traçado em linhas gerais por Marx.

         Entretanto, ele não chegou a assistir aos trabalhadores realizando revoluções e iniciando a construção do socialismo justamente em países que nada tinham a ver com o capitalismo avançado. Não é culpa dos operários da Rússia, da China e de outros países se suas burguesias nacionais foram incapazes de desenvolver as forças produtivas do capitalismo e se as condições para a revolução se criaram antes do pleno desenvolvimento da sociedade burguesa. O que interessava aos trabalhadores desses países era liquidar com os diversos tipos de exploração e opressão então existentes e não iam ficar perguntando se estavam dadas ou não todas as condições para a construção do socialismo.

         Mas é evidente que isso colocou para os operários e demais trabalhadores desses países problemas nem sequer sonhados. Como socializar os meios de produção em países onde esses meios estão rudimentarmente desenvolvidos? Além disso, como socializar tudo se a própria revolução foi realizada em conjunto com a pequena burguesia camponesa e com a pequena burguesia urbana (aqui incluídos não só a pequena burguesia assalariada, mas os pequenos industriais e os pequenos comerciantes) que esperavam da revolução justamente as condições para fazer evoluir sua própria economia individual? Como liquidar a economia mercantil capitalista em regiões onde nem mesmo a economia mercantil simples era suficientemente desenvolvida? Como planificar a economia onde esta encontrava-se longe de um grau suficiente de concentração e centralização?

         Esses foram somente alguns dos problemas e das indagações que aqueles países tiveram que enfrentar, às vezes sem êxito e com inúmeras idas e vindas que continuam ainda por hoje. Isso para ficar restrito à economia e não entrar nos problemas ainda mais complexos da institucionalização da democracia em países que não haviam sequer conhecido e experimentado os mecanismos da democracia burguesa, saindo quase que diretamente do absolutismo feudal para o socialismo.

         Se os grupos organizados dentro do PT atentassem um pouco mais para a ciência, em especial para a ciência marxista que dizem representar, poderiam tirar algumas lições da experiência histórica de construção do socialismo, evitando a perene repetição dos chavões e fórmulas que nada resolvem. E chegariam à conclusão, em primeiro lugar, que o socialismo no Brasil só pode ser resultado do grau de desenvolvimento do capitalismo brasileiro; que o socialismo em nosso país só poderá ser construído a partir das realizações do capitalismo aqui implantado e não a partir de sonhos, por mais generosos e igualitários que estes sejam. Em outras palavras, para saber como será o socialismo no Brasil é necessário conhecer em profundidade como é o capitalismo no Brasil, qual o estágio de desenvolvimento alcançado por ele, quais as formas que ele utilizou para sua expansão, e assim por diante.

         O estudo da sociedade capitalista brasileira, que tem sido realizado de forma fragmentária e dispersa, nos dá alguns elementos:

         a) o capitalismo expandiu-se aqui de forma regionalmente muito desigual. No centro-sul e no sul do país há um capitalismo relativamente concentrado e, principalmente em São Paulo, alcançou um razoável grau de centralização. Mas no resto do Brasil, o capitalismo está disperso por pequenas empresas, com algumas poucas exceções, e aproveita-se em medida considerável de formas atrasadas de produção. Em muitas regiões chega a predominar a economia mercantil simples e não a economia mercantil capitalista. E mesmo nas áreas mais desenvolvidas é bastante disseminada a existência de cerca de 2,5 milhões de pequenas empresas familiares, industriais e comerciais, além de uma agricultura de pequenos produtores que contrasta com as agropecuárias capitalistas e os latifúndios.

         b) esse tipo de expansão capitalista no Brasil, do ponto de vista social expandiu uma diversificada camada de assalariados urbanos e rurais na indústria, no comércio, nos serviços em geral e na agricultura, incluindo aí uma pequena burguesia de extensão razoável. Além disso, apesar do processo de expropriação a que foram e continuam sendo submetidos os camponeses e os pequenos e médios proprietários urbanos, essas camadas cresceram em termos absolutos acompanhando o crescimento da população. A pequena burguesia proprietária, incluindo donos de pequenas empresas industriais, comerciais e de serviços (familiares e com alguns assalariados), autônomos e camponeses abrange uma considerável massa da população brasileira.

         c) o desenvolvimento capitalista brasileiro ocorreu de forma subordinada e dependente do capitalismo internacional, tanto com a penetração do capital estrangeiro no país, quanto com a quase completa dependência científica e tecnológica. A penetração capitalista estrangeira sob a forma de investimentos diretos e empréstimos colocou, por um lado, os setores fundamentais da economia brasileira nas mãos das multinacionais e, por outro, transformou o país no maior devedor do mundo, deixando-o à mercê dos interesses do capital financeiro internacional.

         Esses elementos do desenvolvimento capitalista brasileiro, mesmo estando muito longe de serem completos, nos mostram que no processo de construção socialista não poderemos seguir mecanicamente os preceitos de substituição imediata, por meios administrativos ou executivos, da propriedade privada dos meios de produção e circulação pela propriedade social; nem substituir prontamente a economia mercantil por formas sociais de distribuição, circulação e consumo; nem implantar uma completa organização planificada da economia. As leis econômicas em ação numa determinada sociedade não podem ser extintas ou modificadas por decretos, mesmo quando estes decretos possuem um considerável respaldo político de massas, como demonstrou a experiência de construção dos países socialistas.

         No Brasil ainda não foram esgotadas, pelo desenvolvimento capitalista, as formas econômicas pequeno-burguesas nem a economia mercantil simples. O próprio desenvolvimento diferenciado do capitalismo e seu grau médio de desenvolvimento não permitiu que a economia mercantil capitalista alcançasse um patamar elevado. Nessas condições, se no Brasil existem numerosas empresas capitalistas que deverão ser transformadas em propriedade social por meio da estatização, estando o Estado nas mãos dos trabalhadores, por outro lado existem milhões de pequenos produtores e pequenos proprietários cujos meios de produção não convém estatizar ou mesmo coletivizar imediatamente.

         A estatização ou a coletivização administrativa da pequena produção e da pequena propriedade de meios de produção, tanto urbana quanto rural, demonstrou ser prejudicial no socialismo, tanto do ponto de vista econômico quanto político. Economicamente porque exigiu, para seu controle, a formação de urna pesada máquina burocrática cuja eficiência é muito discutível, entorpecendo a iniciativa dos pequenos produtores estatizados ou coletivizados e impedindo o aproveitamento de todas as potencialidades para desenvolver mais rapidamente as forças produtivas materiais. A médio prazo, levou a economia à estagnação, criando desequilíbrios entre a produção e o consumo e entre os diversos ramos produtivos.

         Tendo em conta essa experiência e as atuais condições propiciadas pelo desenvolvimento capitalista no Brasil, num primeiro momento será possível:

         a) estatizar ou tornar propriedade social as grandes empresas capitalistas, pertencentes ao capital estrangeiro e nacional, aqui incluídas as empresas rurais. Estas empresas já constituem o setor fundamental da economia e serão a alavanca mais importante para a construção socialista.

         b) estatizar ou coletivizar as empresas médias. dependendo de sua importância no quadro da economia.

         c) permitir a existência da propriedade individual e familiar, deixando que elas tenham um certo desenvolvimento e evoluam no sentido cooperativo, principalmente através da utilização dos mecanismos econômicos.

         Entre essas três formas de propriedade - estatal, coletiva e individual - provavelmente aparecerão formas mistas necessárias ao processo de aperfeiçoamento no rumo da completa socialização. Empresas do Estado poderão estabelecer formas diversas de cooperação com empresas coletivas e empresas individuais; empresas individuais poderão cooperar-se para algumas operações produtivas ou de circulação, e assim por diante. Mas só a prática real da economia poderá colocar essas questões de modo claro.

         A existência dessas formas de propriedade, resultantes de uma expansão capitalista não plenamente desenvolvida, também vai exigir diferentes formas de organização do trabalho e uma adequada combinação entre a planificação e a economia mercantil. Muitos confundem as formas de propriedade com as formas de organização do trabalho, o que cria embaraços ao pleno desenvolvimento das potencialidades do trabalho. É plenamente possível que uma empresa estatizada, portanto de propriedade social, tenha um alto grau de autonomia na elaboração de seu plano de produção e na organização interna do trabalho. Assim, controle da propriedade pelo Estado, planejamento estatal, autogestão democrática, distribuição conforme a produção, produção conforme as necessidades estabelecidas pelo Estado e também detectadas no mercado, tudo isso demanda uma combinação global e flexível no sentido de desenvolver as forças produtivas, aprofundar o processo de socialização dos meios de produção, acelerar a produtividade do trabalho e a economicidade da produção e atender as crescentes necessidades materiais e culturais do povo.

         Nesse sentido é preciso combater a utopia de que o mercado desaparecerá no dia seguinte em que os trabalhadores estiverem no poder. Enquanto a produção social for limitada, enquanto essa limitação obrigar que continue vigorando o ganho segundo o trabalho e não conforme as necessidades, isso significará que os trabalhadores continuarão tendo que trabalhar como uma obrigação de sobrevivência e significará que a sociedade ainda não pôde ver-se livre do mercado. Evidentemente, no socialismo poderão desaparecer os excessos do consumismo burguês. Mas isso não significa que as massas deixarão de consumir ou deixarão de desejar possuir todos os bens de consumo que a indústria moderna permite fabricar, como rádios, televisores, geladeiras, carros e assim por diante. O socialismo não pretende nivelar o padrão de vida da população por baixo, mas sim por cima.

         Em termos políticos, só é possível ganhar o apoio e a participação das grandes camadas da pequena burguesia rural e urbana do Brasil na luta pela radical transformação da sociedade brasileira numa sociedade socialista se os operários garantirem a elas que sua pequena propriedade será mantida. Nenhuma classe social na história, a não ser a classe operária, luta por sua própria extinção. Nas condições brasileiras, sem aquele apoio e participação os operários não conseguirão realizar aquela transformação. Em segundo lugar, se a garantia dada aos pequenos proprietários de meios de produção for uma enganação, esses setores sociais se virarão contra o socialismo e mesmo que não consigam derrubar o novo regime, criarão enormes dificuldades para a sua consolidação e para a construção socialista.

         Esses problemas colocam, por seu turno, a questão da democracia no socialismo. É certo que as questões relacionadas com a superestrutura do socialismo, com as formas institucionais da democracia socialista e com as formas legais que devem conformá-la, dependem mais diretamente das injunções e da correlação de forças políticas. Uma resistência maior ou menor da burguesia, interna e internacional, pode conduzir a processos de centralização que prejudicam a implantação e a continuidade plena da democracia, prejudicando-a. Uma reduzida experiência histórica democrática também leva a diferentes erros e problemas na construção da democracia socialista. A experiência tem mostrado, inclusive, que pode haver um descompasso entre o avanço da estrutura econômica e o ritmo mais lento de democratização da superestrutura.

         Todas essas questões, tratadas aqui de forma sucinta, chamam a nossa atenção para o fato de que o socialismo, se possui princípios gerais válidos para todos os países, não pode ser encarado de modo uniforme simplesmente porque cada país apresenta um processo e um grau diferente de desenvolvimento capitalista. O Brasil terá, pois, necessariamente, um caminho próprio de construção do socialismo, caminho determinado menos pelos princípios gerais e por nossos desejos e mais pelas condições reais do próprio país quando os trabalhadores conquistarem o poder. Nesse momento, as fórmulas dos grupos organizados ajudarão muito pouco.

         3. Transição conservadora

         As concepções básicas dos agrupamentos que estamos estudando a respeito da transição conservadora são as seguintes:

         DS:

         "No processo de superação da ditadura militar para um novo regime controlado pela burguesia, a "Nova República", é a existência do PT que está garantindo um pólo político não subordinado a esta transição burguesa, oposto à conciliação de classes..."

         "(Devemos) adotar uma tática na atual conjuntura, que coloque como objetivo a construção de uma alternativa operária e popular à transição conservadora..."

         "A construção desta alternativa operária e popular se dará em torno dos grandes enfrentamentos de classe... e na unificação desta intervenção em torno de uma plataforma de exigências imediatas do movimento operário e popular."

         "O objetivo do movimento operário e popular é o de reduzir o mais possível o controle burguês sobre o processo .... no limite visando desestabilizar a transição."

         "A política dos revolucionários para o processo constituinte deve expressar-se fundamentalmente através do PT e da CUT respondendo a quatro questões:

         a) O PT deve se lançar no processo defendendo um programa socialista de transformação da sociedade.(...)

         b) O PT e a CUT devem lutar por ações unitárias do movimento operário e popular, refletindo a luta por bandeiras comuns e visando obter conquistas democráticas e sociais.

         c) A participação do movimento operário e popular na constituinte não deve ter um sentido parlamentarista. Devemos entendê-la como uma luta de massas....

         d) A participação do PT no processo constituinte não significa compromisso ou reconhecimento da legitimidade da constituição que daí resultar".

         PRC:

         "A desenvoltura da burguesia em se rearticular sob as graves condições de crise econômica e política atestam as insuficiências políticas e táticas dos comunistas revolucionários e das forças de esquerda em geral, a sua falta de inserção junto à classe operária e demais classes oprimidas e exploradas..."

         "O alvo principal da tática do PRC é a desestabilização da "Nova República", expressão organizada da contra-revolução no Brasil."

         "(Faz) parte desse objetivo tático central a criação de uma alternativa operária e popular, enquanto um campo político de massa à esquerda, constituído em cima de um processo de mobilização estimulado por plataformas de luta."

         "No processo da transição burguesa, apesar do isolamento, foi possível manter um pólo mínimo anticonciliação.... visível principalmente nos campos de influência e nas bases do PT e da CUT. "

         "Nossa política de alianças, servindo à construção de alternativa operária e popular deve articular duas esferas: a unidade de ação política da esquerda revolucionária... e a unificação de um campo político amplo de oposição ao governo e à "Nova República", que, no momento, tem como referenciais de massa principais o PT e a CUT. "

         "(Entre a consolidação da transição burguesa e sua instabilização) há um período decisivo para esta disputa, que vai até a promulgação da nova Constituição. Uma outra vitória da burguesia... atrasará o processo político em muitos anos e a revolução estará ainda mais distante do que agora."

         "Constata-se que os referenciais políticos das massas encontram-se fundamentalmente, no terreno da institucionalidade parlamentar e partidária."

         "No interior da luta democrática, a questão mais importante a ser respondida pelos revolucionários é a posição sobre a Assembléia Nacional Constituinte. A luta e a mobilização política em torno da Constituinte assinalam hoje o caráter central desta reivindicação no patamar das lutas democráticas."

         A longa transcrição das posições da DS e do PRC é necessária para que se veja com clareza suas concepções centrais. O O Trabalho e o MCR não possuem idéias tão bem elaboradas, mas suas posições coincidem muito com as daquelas outras duas organizações. Podemos dizer, assim, que no terreno da tática, apesar das nuances numa ou noutra posição, essas organizações possuem um razoável grau de unidade política.

         O PRC, por exemplo, discrepa sutilmente da DS quanto à existência de um pólo político contraposto à transição conservadora. Enquanto a DS considera que o PT é que garante esse pólo, o PRC acha que esse pólo é "visível principalmente nos campos de influência e nas bases do PT e da CUT". Em outras palavras, o PRC não diz, mas coloca em dúvida, que as direções do PT e da CUT estejam visíveis na constituição desse pólo de resistência à burguesia.

         Mas isso é secundário. O importante é compreender que análise essas organizações fazem da conjuntura criada pelo processo de transição conservadora e que tática propõem em correspondência. Para ser franco, a análise conjuntural realizada pelos diversos grupos organizados dentro do PT, mesmo proclamando-se exaustivamente marxistas e leninistas, não contêm um mínimo de análise de classes, do movimento e das tendências das diversas classes sociais e do reflexo desses movimentos nos diversos terrenos da superestrutura. Sua análise limita-se a constatar as mudanças superficiais, a forma "civilizada" que "a contra-revolução no Brasil assume", assim como em diversos outros países, integrando "o quadro da luta de classes em plano internacional", "num período de crise prolongada do capitalismo no âmbito internacional".

         Esse tipo de análise conduz, inevitavelmente, que elas andem às cegas no quadro conjuntural e sempre atrasadas em relação aos movimentos táticos da burguesia. Isso não quer dizer que estejamos imunes a esse mal. Entretanto, ao contrário dos agrupamentos organizados, não consideramos correto substituir as insuficiências das análises conjunturais por proposições táticas doutrinaristas que se chocam com o nível de luta, consciência e organização das massas e que nos reduzem, no melhor dos casos, a bons propagandistas de objetivos de um futuro distante.

         A análise conjuntural feita pelo PRC, pela DS e pelos demais grupos, entretanto, parte de uma premissa teórica errada que permeia todas as suas propostas táticas. Quando eles culpam, por exemplo, os revolucionários comunistas e as forças de esquerda em geral, pela desenvoltura da burguesia em resolver sua crise, eles partem da idéia de que a inserção junto à classe operária e demais classes oprimidas e exploradas, por si só, impediria os movimentos da burguesia. Eles desprezam totalmente as condições objetivas ou materiais do movimento operário, democrático e popular. Colocam de lado qualquer possibilidade de que, mesmo que a política da esquerda seja correta, as condições das massas ainda não hajam amadurecido para assimilar e transformar em ação prática e em força política suas propostas.

         Não compreendem que as massas precisam, muitas vezes, viver a própria experiência da luta para encontrar o caminho mais certo. A posição do PT e da CUT (e não só de suas bases) foi fundamentalmente correta em relação ao Colégio Eleitoral e à eleição de Trancredo. E, apesar de erros e defeitos evidentes e reconhecidos por todos, o PT e a CUT acham-se inseridos na classe operária e demais classes exploradas. Mesmo assim, ambos ficaram taticamente isolados, marcharam contra a corrente, porque as massas resolveram viver a experiência da conciliação, enganadas pelas promessas da burguesia liberal e liberal-conservadora. É esse tipo de dicotomia que exige a adoção de diferentes táticas nos diversos momentos da luta de classes.

         Entretanto, como aqueles agrupamentos organizados partem da premissa de que a massa está sempre pronta, e naturalmente revolucionária, tudo dependeria do fator subjetivo, da política certa ou errada da vanguarda. Não é por acaso que todos apostam na "desestabilização" da Nova República como alvo ou objetivo central da sua tática. Tudo dependeria, como afirma o PRC, para construir uma alternativa operária e popular, de se criar "um campo político de massa à esquerda, constituído em cima de um processo de mobilização estimulado por plataformas de luta".

         Essa concepção tática é idealista, isto é, supõe que, tendo uma boa plataforma de lutas, seja possível estimular a mobilização, criar um campo político, constituir uma alternativa, desestabilizar o regime e tomar o poder . Não é por acaso, apesar dos escorregões teóricos, que esses agrupamentos não possuem eixo tático central. Suas plataformas de luta são como espingardas que espalham chumbo por todos os lados, na esperança de estimular todos ao mesmo tempo e criar uma "situação revolucionária". Seu objetivo tático central de "desestabilizar a Nova República", apesar de não dizer explicitamente, parte da premissa que existe ou está amadurecendo rapidamente uma situação revolucionária. Ou eles supõem ingenuamente que se pode desestabilizar um regime ser ter as condições para substituí-lo?

         A palavra de ordem de desestabilizar a Nova República pode ser muito simpática para o grau de radicalismo e impaciência de certos setores das massas, pode soar como algo certo e revolucionário para muitos militantes, mas é extremamente irresponsável porque parte daquela premissa incorreta. Não existe uma situação revolucionária no Brasil e o próprio PRC reconhece que os "referenciais políticos das massas encontram-se fundamentalmente, no terreno da institucionalidade parlamentar e partidária" e não na desilusão em relação a essas instituições, surgidas do próprio processo de luta das massas. Nessas condições, esses agrupamentos colocam objetivos táticos que já se confundem com objetivos estratégicos antes que a situação tenha amadurecido para isso. A luta pela desestabilização da Nova República como objetivo tático central só pode colocar-se na ordem do dia quando as massas tiverem perdido as ilusões nesse tipo de dominação burguesa, quando houverem acumulado forças suficientes no lado operário, democrático e popular para o confronto decisivo e quando o PT estiver suficientemente preparado para dirigir esse processo. Fora disso, estamos diante de proposições políticas pouco sérias.

         Por isso, ao mesmo tempo que concordamos com o PRC e com a DS quando afirmam a necessidade de considerar a luta e a mobilização em torno da Constituinte como o aspecto central da luta democrática, discordamos do caráter catastrofista que, principalmente o PRC, quer imprimir a essa luta. Evidentemente, sua suposição de que o período "que vai até a promulgação da nova Constituição" é decisivo para a disputa "entre a consolidação da transição burguesa e sua instabilização" e de que "uma outra vitória da burguesia... atrasará o processo político em muitos anos e a revolução estará ainda mais distante" está coerente com sua suposição de que vivemos ou estamos às vésperas de uma situação revolucionária. Mas, está muito longe da situação real. E, para quem não acreditava que a luta pela Constituinte pudesse representar qualquer papel na mobilização das massas e agora considera isso decisivo para a própria revolução, a transformação foi radical demais.

         A luta pela Constituinte como eixo da luta democrática, incluindo a luta pela mais ampla participação popular na Constituinte, a luta pela transformação do Congresso Constituinte numa Assembléia Nacional Constituinte destinada explicitamente a elaborar, discutir e aprovar a nova Constituição e a luta para incorporar à Constituição as aspirações e reivindicações das massas trabalhadoras, será muito importante para elevar a mobilização, a organização e a consciência dos trabalhadores. Ela é um instrumento imprescindível para desmascarar os objetivos da transição conservadora e para levar as massas a compreenderem, cada vez mais, as limitações das instituições e da democracia burguesa em atender as aspirações democráticas das massas e a necessidade de um novo tipo, ao mesmo tempo democrático e popular, de instituições. Por esse motivo, é também indispensável combinar a luta em torno da Constituinte com a luta pelas demais aspirações e reivindicações econômicas e políticas dos trabalhadores.

         Entretanto, é muito cedo para dizer que a vitória da burguesia nesse processo constituirá a consolidação da transição conservadora e a transferência da revolução para dias distantes. Ou que uma vitória democrática e popular constituirá a derrota definitiva da transição conservadora e o adiantamento da revolução. Não se pode tratar a luta política e as mudanças na correlação de forças mecanicamente.

         Mesmo porque, em determinadas condições, como diversas vezes a história mostrou, a vitória da burguesia pode apressar o surgimento de uma situação revolucionária. E seria uma insensatez, a partir dessa constatação, trabalhar pela vitória da burguesia. Como vemos, a aplicação mecânica de certos preceitos pode levar ao absurdo e deve ser evitada.

         A partir dessas considerações críticas é que não podemos aceitar, também, a postura de que o PT deve lançar-se no processo constituinte "defendendo um programa socialista de transformações da sociedade". Nas condições atuais, o PT apresenta-se como uma alternativa democrática e popular porque isso está mais de acordo com o grau de consciência, mobilização e organização das massas e permite ao partido disputar com a burguesia a hegemonia sobre elas. Ao mesmo tempo, o PT faz propaganda de seu programa socialista de modo que as massas tomem conhecimento dele e, no processo de luta democrática e popular, se convençam de que ele representa a saída para seus problemas. Em outras palavras, nosso programa socialista só deve apresentar-se como alternativa (até mesmo operário-popular) quando as massas estiverem convencidas do esgotamento das propostas democráticos-burguesas (conservadoras e liberais) e a desestabilização do regime burguês (seja a Nova República ou outro qualquer) estiver na ordem do dia. Antes disso, colocar o programa socialista como programa de ação e, ainda mais, o programa socialista fechado que está na cabeça dos agrupamentos organizados, levará o PT ao isolamento, a perder aliados, a não aproveitar as brechas para ampliar a participação democrática das massas populares e assim por diante.

         Assim, pois, apesar de algumas formulações pontuais mais acertadas, os grupos organizados dentro do PT não conseguem distinguir objetivos estratégicos de objetivos táticos e caem, em geral, no doutrinarismo puro e simples nas questões políticas.

         4. A construção do partido

         O título deste ponto é ambígüo como a posição aparente dos grupos organizados dentro do PT a respeito do assunto. Vejamos:

         DS:

         "(O PT representa) um esforço de setores fundamentais da vanguarda do movimento operário e popular no sentido de construir um partido político próprio dos trabalhadores, com uma política própria."

         "No entanto, o PT não é hoje um partido operário revolucionário. Em primeiro lugar, por ter definições programáticas muito insuficientes, (em segundo lugar, por estar) longe de ser um partido de militância, de combate, (por ser) um partido heterogêneo, que inclui correntes muito diversas, algumas delas não revolucionárias, (e por não ter) uma definição internacionalista clara, (nem) a compreensão de que é necessária a construção de uma Internacional."

         "(A) construção de um partido revolucionário de massas não pode ser um processo linear, a partir apenas do crescimento de uma organização revolucionária, mas tem de passar por processos intermediários, requer mediações, como a construção de um partido operário independente como o PT."

         "O PT só poderá evoluir até chegar a ser um partido revolucionário a partir de duas condições. Em primeiro lugar, sobre a base um grande ascenso das lutas operárias... deve haver uma mudança na correlação de forças entre as várias correntes do movimento operário em favor dos que estão mais à esquerda. Em segundo lugar, deve haver uma organização marxista revolucionária forte o bastante para ter uma influência decisiva na direção do PT, de modo a ser capaz de contribuir para que ele assuma um programa e uma ação revolucionários de forma completa."

         "Nosso objetivo estratégico central, para viabilizar a formação de um partido comunista revolucionário de massas, é a fusão dos marxistas revolucionários com o setor mais amplo possível da vanguarda classista. Assim, procuramos no interior do processo de construção do PT e da CUT colaborar da forma mais estreita possível com o conjunto desta vanguarda, apoiar seu processo de politização, de formação política revolucionária, integrar o maior número possível de ativistas do movimento sindical e dos movimentos populares na DS, implantando a DS nos setores fundamentais do proletariado."

         "(Aprofundar) a democracia interna do partido, a capacidade de convivência entre todas as correntes que participam dele, o respeito pelo conjunto das deliberações do partido (não) significa o funcionamento do PT segundo o critério do centralismo democrático..."

         PRC:

         "O Partido Revolucionário Comunista, estruturado partidariamente de maneira independente e em moldes leninistas, reivindica-se como possibilidade concreta de unificação dos comunistas, pela construção do partido de vanguarda da classe operária."

         "A ação política que se guia por uma tática correta deve ser também uma ação organizativa, que não pode admitir qualquer dissolução frentista do PRC nem se submeter a outras instâncias dirigentes que não sejam as do nosso próprio partido."

         "O PRC deve dar especial atenção... à Central Única dos Trabalhadores e ao PT. O PRC entende que tanto a CUT como o PT são instâncias especialmente favoráveis para iniciar de forma concreta a constituição de tal alternativa (operária e popular). Nem o PT nem a CUT se tornarão a alternativa operária e popular."

         "A intervenção na CUT e no PT visa reproduzir de forma ampliada a nossa política."

         "Os militantes do PRC atuam na esfera partidária-institucional no PT, exclusivamente. Isso por ser o PT o único partido não integrado à transição burguesa... E porque inexistem condições agora para a criação de outro partido legal mais avançado que tenha nacionalmente base de massa."

         "O PRC não alimenta falsas expectativas em relação a um papel estratégico revolucionário do PT. Trata-se de uma organização político-frentista hegemonizada por posições reformistas, aprisionada nos marcos da ideologia burguesa dominante na sociedade."

         "(O) PRC reconhece que participam do PT ou o apóiam muitos operários avançados."

         O PRC considera que não há centralismo em uma organização política institucional e frentista como o PT. Reconhece que as conclusões das instâncias dirigentes são as posições próprias desse partido, mas não as tem como obrigatórias para os seus militantes."

         "Em se tratando de um partido institucional, frentista e de massas, o PT deve admitir no seu interior a diversidade político-ideológica e organizativa, incluindo o direito dos comunistas à participação sem nenhuma espécie de discriminação. O combate ao anticomunismo constitui para o PRC questão de princípio."

         "Os membros do PRC no PT procurarão criar uma base política e de massas em tomo das posições revolucionárias, realizando filiações dirigidas, buscando hegemonizar legitimamente alguns diretórios importantes e acumulando forças na disputa interna. Tarefas que significam, também, num sentido político imediato a construção do PT, mas não a reprodução das posições nele hegemônicas."

         "Ao mesmo tempo, denunciaremos o "socialismo" do PCB, PCdoB, PDT, PSB e do PT."

         O TRABALHO:

         "(A Fração é uma) legítima corrente do partido cujas reuniões desenvolvem e discutem os meios de fazer avançar a construção do PT."

         "A reflexão sobre nossa própria Direção Nacional é necessária (pois) a primeira tarefa dessa nova direção será a de controlar a aplicação das resoluções deste Encontro... Os Comitês regionais devem ser ampliados."

         "A integração direta de novos companheiros com base na concordância com as resoluções aqui aprovadas. é fundamental para ampliar nossa corrente."

         As concepções acima transcritas resumem as características principais dos grupos organizados que atuam no PT:

         a) todos eles possuem uma política própria, uma estrutura organizativa própria, direção e disciplina próprias;

         b) com motivos aparentemente diferentes, todos eles negam-se a aceitar a disciplina democrática do PT, que chamam de centralismo. Ou seja, negam-se a aplicar as deliberações adotadas pelo PT, se não concordarem com elas;

         c) todos eles consideram o PT um espaço privilegiado para aplicar suas próprias políticas e recrutar militantes para suas organizações;

         d) todos eles, cada um a seu modo, consideram que o resto do PT possui propostas ideológicas, políticas e organizativas atrasadas, reformistas etc;

         e) todos eles, consideram-se no direito de atuar livremente dentro do PT e qualquer crítica a suas propostas ou prática é tomada como ataque aos comunistas revolucionários.

         Essas características são típicas das seitas políticas que existiram nos primórdios do movimento operário no século XIX. Condições muito particulares da segunda metade do século XX fizeram com que essas seitas ressurgissem com força e com a dispersão e divisão que as marca. As complicações do processo de construção do socialismo nos países que fizeram revoluções, os fracassos das diversas organizações comunistas e revolucionárias que proliferaram no Brasil da década de 60 para cá, a complexidade da luta de classes e, particularmente, o surgimento de um novo movimento operário desvinculado das organizações que até então se denominavam vanguardas revolucionárias da classe operária, teve efeitos diferenciados na ampla gama de marxistas e comunistas brasileiros. Alguns aferraram-se ou aferram-se a um ou outro tipo de doutrinarismo, querendo submeter a realidade a seus esquemas teóricos, como é o caso dos agrupamentos que estudamos.

         Entretanto, é preciso compreendê-los, por sua vez, como frutos de uma situação real e bastante concreta, impossível de superar através de medidas administrativas ou por votações. Aqueles que procuram construir o PT como um verdadeiro partido político, socialista e de massas, e que procuram compreender que esse processo de construção demanda um paciente e cuidadoso método democrático de luta de opiniões, de experimentações organizativas, de combinação da democracia mais ampla possível com a aplicação unitária das deliberações democráticas, consideram positiva a participação desses grupos organizados dentro do partido e também consideram a luta contra o anticomunismo uma questão de princípio.

         Essa atitude positiva, porém, não significa complacência com as concepções incorretas e doutrinaristas dessas seitas, nem com suas práticas antidemocráticas e antipetistas, em muitos aspectos. Entendemos que, objetivamente, a participação desses grupos dá ao PT um certo caráter de frente, já que eles proclamam que seguem a sua própria política e disciplina e não a política e disciplina do PT. Mas não concordamos em que essa postura deles prevaleça e o PT se torne uma instituição frentista. Não só travamos a luta política para que o PT se consolide como verdadeiro partido, tanto no terreno político como organizativo, mas também para ganhar os companheiros desses grupos para se integrarem definitivamente ao PT e ajudarem na sua construção. Evidentemente isso significa que chegará um momento de definições. Mas, atualmente, seria um erro adotar medidas executivas. O PT ainda precisa passar por um prolongado processo democrático de definição mais completa de seu programa socialista, de sua estratégia, de suas formas de organização, inclusive com a participação dos trabalhadores que não estão dentro do partido. Adotar programas e políticas doutrinaristas, mesmo no campo da organização, seria o caminho mais fácil, mas também o mais estéril. O máximo que o PT conseguiria seria transformar-se em mais uma seita. E revolucionarismo e sectarismo nada têm em comum, já que não basta fazer um discurso radical para ser revolucionário.

         Por isso mesmo os militantes do PT devem compreender com clareza que os grupos organizados atuam no PT basicamente em seu próprio benefício e não em benefício da construção do PT. A DS e O Trabalho não dizem isso explicitamente, mas basta ler com atenção seus documentos para constatar essa verdade. O PRC diz tal coisa explícita e claramente, afirmando inclusive que deve combater o "socialismo" do PT. É certo que existem militantes dessas organizações cuja prática, no processo de discussão política e de descoberta da realidade da luta de classes, foi se tornando cada vez mais petista e se diferenciando das posturas teóricas e das proposições de suas organizações. Mas é preciso diferenciar a prática desses militantes da prática de sua organização como um todo, incentivando aquela e combatendo esta, inclusive para que tais militantes tomem consciência das diferenças e não induzam militantes petistas em erro.

         Ao contrário do que afirmam os grupos organizados, o marxismo não é propriedade sua nem de ninguém. E, muito menos, não é obrigatório estar integrado a uma seita que se autoproclama marxista e leninista, comunista e revolucionária, para ser tudo isso na verdadeira acepção de palavras. Na verdade, essa tentativa de monopólio só serve para confundir e criar preconceitos entre os militantes petistas que estão começando a se interessar pelo estudo e pela necessidade da teoria da luta de classes, estudo que deve passar necessariamente pelo marxismo e pela compreensão do leninismo, do comunismo e de outras correntes históricas do movimento operário, para se tornar completa. E, em lugar de viver afirmando que o PT está hegenonizado por posições reformistas seria preferível que substituíssem esses chavões por uma discussão séria em torno do conteúdo dessas posições que consideram reformistas.

         5. Conclusão

         Estes são alguns pontos para o debate que se devem aprofundar em função, como dissemos, das novas exigências e desafios colocados ante o PT. São, mais do que tudo, um levantamento dos problemas que consideramos necessário aprofundar através da contribuição de todos os companheiros que militam no PT, inclusive os que estão nos grupos organizados. E esperemos que estes, em lugar de ficarem restritos às formulações doutrinárias, façam um esforço real para fundamentar as suas posições com base nos ensinamentos da história.