Referência:
O documento de Wladimir Pomar sobre o PT e as organizações clandestinas, que já circula amplamente entre militantes da esquerda, não pode ser caracterizado, a rigor, como anticomunista. É preciso dizê-lo, de início, para evitar que o preconceito sobre o qual o próprio Wladimir previne, muito comum realmente entre alguns setores marxistas, acabe se impondo como obstáculo ao desenvolvimento de uma discussão bastante oportuna. Apesar de seu texto transpirar um profundo desprezo, nem sempre bem disfarçado, pelos comunistas organizados no que ele chama de "seitas", sua posição política não é a de um anticomunista. E isso coloca o debate como uma luta político-ideológica travada no interior das forças populares - por mais evidentes e radicais que sejam as contradições - e não como um confronto, desde já antagônico, ou seja, travado entre inimigos. As posições de Wladimir são, hoje, manifestações de um não comunista. Ou melhor, de um ex-comunista que procura, sinceramente, pensar novos caminhos para o socialismo no Brasil, embora não tenha conseguido clarificar, para si mesmo, a nova postura teórico-ideológica que adotou. Essa virada, a par de algumas questões políticas levantadas, é o que vamos abordar aqui. É verdade que a tradição da esquerda brasileira, herdada em grande parte da história mundial do socialismo, do comunismo e das lutas proletárias - como aponta o próprio Wladimir - ainda não conseguiu superar radicalmente o dogmatismo, o sectarismo e o doutrinarismo estéril. De um lado, a herança morta de Stalin e seus seguidores oprime o cérebro dos vivos, transformando o marxismo numa escolástica naturalista, na qual as fórmulas lógicas do inevitável condensam, misticamente, toda a riqueza do porvir. Partindo dessa premissa, não há mais do que um passo para a autoproclamação das "vanguardas proletárias" que, mesmo fora do movimento político real ou dentro dele, mas a reboque da política burguesa, consideram suas posições sempre "justas e corretas". Não é de estranhar, portanto, que alguns que tenham, por desventura, passado por tais maçonarias sintam uma irresistível tentação de "começar tudo outra vez", partir de uma suposta "estaca zero" na qual o socialismo seria apenas o luzir de uma esperança imaculada e o proletariado uma criança inocente balbuciando palavras puras. No entanto, embora a história não se repita, exceto como farsa, os recomeços nunca são absolutos. Cada ponto da história que tomamos como reinício é também um momento do todo em suas transformações, são águas diferentes de um mesmo rio no qual estamos nos banhando e, ao mesmo tempo, construindo seu curso. Essa dimensão da dialética é exatamente o que a filosofia rudimentar de Heráclito não podia perceber. Nossa dívida, nesse aspecto, começa com Hegel e assume incomparável grandeza com Marx, embora não termine com ele. Porque é próprio dessa dívida chamada dialética materialista (ou marxismo) acumular prática sobre teoria, e vice-versa, sem jamais chegar ao seu termo conclusivo. Mas se de um lado temos a herança stalinista, que uniu o sangue à burocracia, de outro temos os mais diversos gêneros e tons de "socialismo", a maioria deles completamente inofensivos aos interesses da burguesia. Não é por acaso que o "socialista Miterrand" faz um governo conservador na França, comprimindo os salários e ampliando o desemprego para tirar o capitalismo da crise. Como disse Lao Tsé: "Mal começaram a existir a prudência e a perspicácia, nasceu a hipocrisia". Da mesma forma, mal começou a nascer em nosso país um marxismo antidogmático, uma postura leninista anti-sectária, já nasceram o reformismo e o legalismo entre os setores da esquerda que, bem ou mal, foram revolucionários. Setores que pensavam sob o prisma leninista da combinação entre a luta legal e a ilegal, pois não confiavam nas instituições burguesas como terreno exclusivo da luta pelo socialismo. E se há algo no terreno organizativo que deva ser resgatado para as lutas proletárias contemporâneas é esse espírito de desconfiança nas instituições, essa disposição de organizar-se dentro e fora das leis burguesas. Allende, no Chile, entre tantos outros exemplos que poderiam ser lembrados, mostrou com seu próprio sangue e o sangue de seu povo que não temos mais o direito de nos iludir, por mais doce que possa ser essa ilusão, sobre a possibilidade de um socialismo que não seja revolucionário; sobre formas de luta cuja estratégia seja articulada exclusivamente no terreno das instituições. Assim, não é suficiente ser antidogmático para ser um marxista-leninista ou um verdadeiro socialista, é preciso também ser um revolucionário. E para tanto, se bem que não bastam as palavras grandiloqüentes, os discursos e as declarações de princípio, tampouco alguém se torna revolucionário por deixar de pronunciar a palavra revolução, por silêncios e omissões sobre o confronto estratégico com as classes dominantes, sobre as formas de luta e as questões de princípio. Ninguém se torna um revolucionário marxista ou um socialista de fato, apenas fazendo alegações sobre o estado "real" da consciência das massas e propondo fórmulas pragmáticas de fazer política. O documento de Wladimir não é marxista, nem leninista e tampouco socialista de fato, principalmente por três questões: 1. A tática que ele propõe para o movimento operário e popular é nitidamente reformista. 2. Sua estratégia de conquista do socialismo não discute o confronto inevitável com o Estado burguês e as formas políticas de preparar-se para ele, a fim de que as forças operário-populares possam ter uma possibilidade efetiva de vitória. 3. Faz a crítica do que ele chama de "grupos organizados dentro do PT " ou de "seitas", a partir de uma ótica legalista, propondo a sua diluição dentro do Partido dos Trabalhadores. Não vê possibilidade de convivência ("vai chegar a hora das definições", avisa Wladimir) entre organizações clandestinas que se pretendem marxistas e revolucionárias e o PT que, segundo seus segmentos avançados, pretende ser não apenas "socialista" mas também revolucionário. Comecemos pela primeira questão: "A palavra de ordem de desestabilizar a Nova República pode ser muito simpática para o grau de radicalismo e impaciência de certos setores das massas, pode soar como algo certo e revolucionário para muitos militantes, mas é extremamente irresponsável porque parte daquela premissa incorreta." Vejamos qual a premissa que, no seu entender, sustenta o erro: "Suas plataformas de luta (das organizações - A.G.F.) são como espingardas que espalham chumbo para todos os lados, na esperança de estimular todos ao mesmo tempo e criar uma situação revolucionária. Seu objetivo tático central de desestabilizar a Nova República, apesar de não dizer explicitamente, parte da premissa que existe ou está amadurecendo rapidamente uma situação revolucionária. Ou eles supõem ingenuamente que se pode desestabilizar um regime sem ter as condições para substituí-lo?" Segundo o raciocínio de Wladimir, a palavra de ordem de "desestabilizar a Nova República" está errada porque parte de uma premissa errada. Qual seria a premissa? Ora, a premissa de que existe ou está amadurecendo rapidamente uma situação revolucionária. Até aqui tudo certo. Mas como ele conclui que as organizações que está criticando pensem tal coisa, "apesar de não dizerem explicitamente"? O argumento é simples: "Ou eles supõem que se pode desestabilizar um regime sem ter as condições para substituí-lo?" Wladimir afirma que a tática está errada ("desestabilizar a Nova República") porque parte de uma premissa errada ("existência de uma situação revolucionária"). Depois afirma que a premissa errada ("existência de uma situação revolucionária") está implícita na própria tática. Ora, para desmoronar esse castelo de cartas, basta retirar uma que está na base.É absolutamente falso que a tática de "desestabilizar a Nova República" implique a idéia de que existe ou está amadurecendo rapidamente uma situação revolucionária em nosso país. Isso está implícito apenas no raciocínio de Wladimir e não na tática que ele pretende criticar. O que é algo estável? As acepções mais comuns dessa palavra constam nos dicionários: "que permanece firme", "que está bem ausente", "sólido", "equilíbrio estável", "permanente, duradouro", etc. (Caldas Aulete, RJ, Delta, 1958, p. 1997). Nesse momento de transição conservadora, tudo que as classes dominantes buscam, em conjunto, é conquistar esses atributos para o novo regime. Politicamente, isso só pode ser feito pela manutenção de sua base social de apoio. A idéia de centrar a ação política do movimento operário e popular na "desestabilização" da Nova República significa, evidentemente, impedir a solidificação do domínio burguês, disputar a base de massa desse novo regime, criando uma "alternativa de massas à esquerda". Significa, contrariando os interesses dominantes, tornar "sólido", "bem assente", o movimento operário e popular. A tese de que só podemos lutar contra a "solidificacão" do regime quando pudermos substituí-lo é um desprezo pela dialética mais elementar. Só podemos nos fortalecer enfraquecendo o inimigo, assim como ficamos mais fracos à medida que deixamos que ele se fortaleça. Aliás, as classes dominantes sabem disso muito bem. Se não pensarmos, pelo menos, nos termos dessa relação fundamental da luta de classes, nossas boas intenções vão submergir na perspectiva reformista. A idéia de que podemos primeiro nos fortalecer para, só depois, colocar na ordem do dia o enfraquecimento do inimigo de classe, é como pensar que na política é possível treinar antes de entrar no ringue. A lógica desenvolvida por Wladimir Pomar é exatamente essa: primeiro as massas devem perder a ilusão na dominação burguesa, acumular forças, e depois então combater a solidez do regime. Ele mesmo extrai essa conclusão: "A luta pela desestabilização da Nova República como objetivo tático central só pode colocar-se na ordem do dia quando as massas tiverem perdido as ilusões neste tipo de dominação burguesa, quando houverem acumulado forças suficientes no lado operário, democrático e popular para o confronto decisivo e quando o PT estiver suficientemente preparado para dirigir esse processo." E ainda acrescenta: "Fora disso, estamos diante de proposições políticas pouco sérias." Noutras palavras, só podemos disputar a base social do regime, lutar, portanto, pela sua "desestabilização", quando estivermos fortes. Mas como poderemos ser fortes politicamente, a ponto de um dia colocar em pauta a derrubada do regime burguês, se não formos ganhando paulatinamente, no movimento político em curso, amplas camadas populares para uma posição antagônica à dominação burguesa? Como se vê, o reformismo que atribuímos às posições de Wladimir não é uma palavra gratuita fruto da intolerância. É um conceito preciso, pois implica a definição, consciente ou não, de uma tática política que não acumula no sentido da revolução. Quando Lênin fala na "atualidade da revolução proletária" a nível internacional, ele se refere a todo um período histórico, iniciado neste século, de transição ao socialismo. Essa questão deve estar presente no conteúdo de qualquer análise política. Podemos agora entrar no segundo ponto, que diz respeito à estratégia de conquista do socialismo delineada no texto. Inicialmente, ele afirma: "Como aplicar um programa socialista (nos governos estaduais - A.G.F.) se nem sabemos ainda que socialismo queremos?" E mais adiante: "o PT corre o risco de ver muitos de seus militantes abraçarem as respostas prontas e acabadas de grupos políticos sectários ou ingressarem pelos descaminhos das dúvidas eternas." (fl. 1) O que o autor quer dizer com "respostas prontas e acabadas de grupos políticos sectários"? As organizações a que Wladimir se refere, com suas consideráveis diferenças políticas e ideológicas, procuram situar-se no terreno do marxismo revolucionário, todas elas certamente passíveis de erros e acertos. Nenhuma se considera, de antemão, a "vanguarda justa e correta dos trabalhadores", o que permite hoje um certo grau de unidade política entre elas. Mas Wladimir insinua que suas análises devem ser desconsideradas em bloco porque são "respostas prontas e acabadas de grupos sectários". O que o preocupa, de fato, é que tais organizações possuem, em linhas gerais, uma visão estratégica e tática mais ou menos definida. Quer dizer, só pode entrar no debate quem não sabe ao certo qual o socialismo que deseja. Ora, precisamente porque apresentam uma posição mais ou menos definida é que suas teses podem contribuir significativamente no debate geral dos socialistas. Que estranha discussão é essa na qual quem tem uma posição a apresentar fica excluído porque suas propostas estariam "prontas e acabadas"? E como Wladimir pede que os argumentos tenham base histórica, é de se perguntar de onde saiu essa tese de que a discussão entre socialistas só pode incluir quem tem uma posição vaga e indefinida. A história do movimento operário e do socialismo mostra exatamente o contrário: as discussões mais importantes e produtivas envolviam interlocutores com posições muito claras e definidas. Se ele pode afirmar que as organizações "já deveriam ter aprendido que possuem poucas condições para proclamar-se verdadeiramente marxistas, no sentido estrito do termo, pela falta de demonstração prática" (fl. 4), onde está o exemplo prático de que um partido sem qualquer articulação clandestina tenha feito uma revolução vitoriosa? Wladimir não compreendeu a afirmação marxista de Lênin de que "a prática é o critério da verdade". A prática aqui não significa uma relação imediata entre um enunciado e o evento, considerados fora do processo histórico global, tal como no modelo positivista. A prática como critério da verdade indica que o processo de apreensão teórica da realidade encontra seu fio condutor (seu critério, portanto) no processo de transformação prática dessa mesma realidade. Se não considerarmos desse modo, teremos que concordar com Popper - o mais prestigiado filósofo da burguesia na atualidade - quando diz que, pelo fato da Revolução Russa não ter dado certo, ficou demonstrado na prática que o marxismo é uma teoria completamente errada. A estratégia de luta pelo socialismo que o documento propõe é semelhante a do PC do B, pelo menos no que diz respeito à velha tese da "etapa democrática e popular". Vejamos: "Nas condições atuais, o PT apresenta-se como uma alternativa democrática e popular porque isso está mais de acordo com o grau de consciência, mobilização e organização das massas e permite ao partido disputar com a burguesia a hegemonia sobre elas. Ao mesmo tempo, o PT faz propaganda de seu programa socialista de modo que as massas tomem conhecimento dele e, no processo de luta democrático e popular, se convençam de que ele representa a saída para seus problemas. Em outras palavras, nosso programa socialista só deve apresentar-se como alternativa (até mesmo operário-popular) quando as massas estiverem convencidas do esgotamento das propostas democrático-burguesas (conservadoras e liberais) e a desestabilização do regime burguês estiver na ordem do dia." Por outro lado, o chamado programa "democrático, operário e popular" não é um programa socialista ou de transição ao socialismo em abstrato. Ele se distingue do programa "democrático e popular" à medida que já contém, nas medidas que propõe, claramente o seu direcionamento socialista. Dessa forma, o socialismo não aparece como palavra de ordem genérica, mas como uma alternativa concreta. A defesa da socialização integral dos meios de produção está, efetivamente, no terreno da propaganda. Mas pensar que essa propaganda, se não estiver articulada com um programa específico que aponte nesse sentido e com a luta política em curso, pode ser assimilado pelas massas é o mais grosseiro doutrinarismo. Ora, se não há uma revolução burguesa em andamento, pelo simples fato que a burguesia está no poder, e o programa "democrático e popular" não possui um eixo anticapitalista, as massas nunca haverão de ficar "convencidas do esgotamento das propostas democrático-burguesas" e, por conseqüência, a desestabilizacão do regime burguês jamais estará "na ordem do dia". Ou será que Wladimir pensa ainda, como ensina a pior tradição filosófica do "marxismo", que as massas passivamente (em virtude de uma atividade meramente pedagógica) tomarão consciência da necessidade do socialismo e o regime burguês, naturalmente, entrará em processo de desestabilização? Em outras palavras, se a proposta operário-popular, como forma concreta de propagandear a alternativa socialista, só deve ser colocada quando as massas estiverem convencidas de que o socialismo "representa a saída para os seus problemas" - como quer Wladimir - nesse caso ela já seria desnecessária. Tratar-se-ia, portanto, de implementar táticas imediatas para a tomada do poder. Porém, é evidente que a proposta "democrática e popular" - não leva a parte alguma, exceto a uma política caudatária da transição burguesa. Wladimir não conseguiu transferir para a análise política certas coisas que grande parte da esquerda, organizada ou não, já o fez. Não resta dúvida que a alternativa "democrática e popular" está mais de acordo, como ele diz, com "o grau de consciência, mobilização e organização das massas". No entanto, ao invés de permitir ao PT (ou qualquer outro partido) disputar com a burguesia a hegemonia das massas, contribui para reforçar a hegemonia burguesa. Na verdade, a ideologia burguesa, por ser hegemônica, é a que está mais de acordo com o grau de consciência das massas. Nem por isso devemos aderir a ela. Depois de pinçar alguns pontos escolhidamente genéricos dos programas políticos das organizações que pretende combater em bloco, afirma: "Entretanto, falando francamente, pode-se considerar suficientes as definições acima?" Ora, falando francamente, embora a maioria das organizações em foco reconheça abertamente suas limitações, será que são suficientes alguns pontos escolhidos exatamente pela sua generalidade para um julgamento tão peremptório? Será que alguém, como Wladimir, que acha natural e até positivo o fato do PT globalmente não saber ainda qual o socialismo que deseja, tem o direito de invalidar propostas pelo seu grau de generalidade? Mas nosso autor continua e, repentinamente, resolve falar em nome da "ciência marxista" para afirmar que os outros não a representam: "Se os grupos organizados dentro do PT atentassem um pouco mais para a ciência marxista que dizem representar, poderiam tirar algumas lições da experiência histórica da construção do socialismo, evitando a perene repetição dos chavões e fórmulas que nada resolvem." E o que nos diz agora como professor do marxismo? Repete uma noção marxista que tem mais de 60 anos, defendida por Lênin no seu livro Esquerdismos, doença infantil. . ., quando explica que diante da revolução num país mais adiantado, a Rússia, como laboratório de uma experiência de alcance internacional, voltaria a ser um país atrasado. E por que Lênin pensava assim? Pela evidência que a tática revolucionária e as condições de construção do socialismo, após a tomada do poder, só podem corresponder ao grau de desenvolvimento das relações capitalistas desse país e suas particularidades históricas e culturais. Noutras palavras. Wladimir diz o mesmo: ". . .em primeiro lugar, que o socialismo no Brasil só poderá ser resultado do grau de desenvolvimento do capitalismo brasileiro: que o socialismo em nosso país só poderá ser construído a partir das realizações do capitalismo aqui implantado e não a partir de sonhos, por mais generosos e igualitários que estes sejam. Em outras palavras, para saber como será o socialismo no Brasil, é necessário conhecer em profundidade como é o capitalismo no Brasil; qual o estágio de desenvolvimento alcançado por ele, quais as formas que ele utilizou para sua expansão, e assim por diante." Ele precisa nos dizer essa generalidade, que já é patrimônio universal do pensamento marxista, com foros de novidade extrema, porque quer insinuar que as organizações da esquerda revolucionária desconhecem os pontos gerais que vai apresentar sobre a sociedade brasileira. Acrescenta, então, que o capitalismo no Brasil se expandiu de forma desigual, com um tipo de desenvolvimento que criou uma diversificada camada de assalariados e, além do mais, que ocorreu de forma subordinada e dependente ao capitalismo internacional. Essa análise, Wladimir deveria saber, não é nova para setores organizados da esquerda brasileira. Graças, inclusive, ao senador Fernando Henrique Cardoso, no tempo em que ainda era um inofensivo professor semimarxista, pode-se dizer que essa abordagem se popularizou bastante entre socialistas e marxistas, organizados ou não. Mas o autor do documento em pauta quer concluir o seguinte: "Esses elementos do desenvolvimento capitalista brasileiro, mesmo estando muito longe de serem completos, nos mostram que no processo de construção socialista não poderemos seguir mecanicamente os preceitos de substituição imediata por meios administrativos ou executivos, da propriedade privada dos meios de produção e circulação pela propriedade social; nem substituir prontamente a economia mercantil por formas sociais de distribuição, circulação e consumo; nem implantar uma completa organização planificada da economia." Mas Wladimir não sabe que o programa "democrático, operário e popular" defendido por algumas das organizações a que ele se refere parte; exatamente, dessa constatação elementar: ele procura dar a entender que todas as organizações clandestinas pretendem implantar imediatamente a socialização integral dos meios de produção e, rapidamente, liquidar as relações mercantis. Isso é falso. Uma distorção completa da realidade. Tanto que os três aspectos iniciais da transformação socialista em nosso país indicadas no seu próprio texto, coincidem em linhas gerais com o programa "operário e popular", notadamente em relação aos aspectos econômicos da transição. Senão, vejamos: "a) estatizar ou tornar propriedade social as grandes empresas capitalistas, pertencentes a capital estrangeiro e nacional, aqui incluídas as empresas rurais. Essas empresas já constituem o setor fundamental da economia e serão a alavanca mais importante para a construção socialista; b) estatizar ou coletivizar as empresas médias, dependendo de sua importância no quadro da economia; c) permitir a existência da propriedade individual e familiar, deixando que elas tenham um certo desenvolvimento e evoluam no sentido cooperativo, principalmente através da utilização dos mecanismos econômicos". Mas há uma discrepância ética entre a postura dos comunistas que defendem a necessidade da organização clandestina e as posições de Wladimir. Observemos atentamente suas palavras: "Em termos políticos, só é possível ganhar o apoio e a participação das grandes camadas da pequena burguesia rural e urbana do Brasil na luta pela radical transformação da sociedade brasileira numa sociedade socialista se os operários garantirem a elas que sua pequena propriedade será mantida. Nem uma classe social na história, a não ser a classe operária, luta pela sua própria extinção. Nas condições brasileiras, sem aquele apoio e participação, os operarios não conseguirão realizar aquela transformação. E em segundo lugar, se a garantia dada aos pequenos proprietários de meios de produção for uma enganação, esses setores sociais se virarão contra o socialismo e mesmo que não consigam derrubar o novo regime, criarão enormes dificuldades para a sua consolidação e para a construção socialista." Na verdade, os comunistas, pelo menos em sua maioria, reconhecem a necessidade de dizer claramente a toda a sociedade quais são os seus objetivos finais: a abolição da propriedade privada em geral. E afirmam aos pequenos proprietários do campo e da cidade que suas posses serão mantidas por um determinado período e não para sempre. Wladimir não esclarece como é que fica esse problema na "transformação radical" que ele imagina para a sociedade. Diz, apenas, que a garantia da propriedade à pequena burguesia urbana e rural não pode ser uma "enganação". Estamos de pleno acordo nesse particular. Mas seu silêncio sobre o futuro dessa forma de propriedade coloca uma dúvida: ou ele está enganando os socialistas, à medida que pretende eternizar a pequena propriedade, ou ele está enganando os pequenos proprietários através da omissão. Passemos, finalmente, para a concepção de partido revolucionário de Wladimir Pomar e sua posição sobre as organizações clandestinas: "Em primeiro lugar porque elas possuem (as organizações - A.G.F.) um corpo sistematizado de idéias em torno dos principais problemas que enfrentamos e, em segundo lugar, porque todas elas possuem uma concepção de construção do PT que, na realidade, consiste em sua construção própria." "Todas essas organizações têm atrás de si uma história relativamente longa de tentativas de aplicação prática e revolucionária de diferentes tipos de interpretação do marxismo, sem que nenhuma tenha conseguido transformar em realidade concreta tais tentativas." "Por outro lado, (o fracasso - A.G.F.) também mostra o quanto a arrogância e autoconfiança demonstrada por essas organizações, como pretensas portadoras da verdade, não corresponde à sua história. O fato de que cada uma pensa dominar o marxismo, e possui seu marxismo particular, já deveria havê-las alertado para a necessidade de serem modestas e procurar aprender com os ensinamentos da história e da realidade." "Não negamos que possa haver um certo ranço anticomunista entre militantes e filiados do PT. Mas se ele existe isso se deve, em grande parte, a certas práticas aplicadas por militantes dos grupos organizados autodenominados comunistas." "O Brasil terá, pois, necessariamente, um caminho próprio de construção do socialismo, caminho determinado menos pelos princípios gerais e por nossos desejos e mais pelas condições reais do próprio país quando os trabalhadores conquistarem o poder. Neste momento as forças dos grupos organizados ajudarão pouco." "Aqueles que procuram construir o PT como um verdadeiro partido político socialista e de massas, e que procuram compreender que esse processo de construção demanda paciente e cuidadoso método democrático de luta de opiniões, de experimentações organizativas, de combinações da democracia mais ampla possível com a aplicação unitária das deliberações democráticas, consideram positivas a participação desses grupos organizados dentro do partido e também consideram a luta contra o anticomunismo uma questão de princípio." "Não só travamos a luta política para que o PT se consolide como um verdadeiro partido, tanto no terreno político como organizativo, mas também para ganhar os companheiros desses grupos para se integrarem definitivamente ao PT e ajudarem na sua construção. Evidentemente isso significa que chegará o momento de definições. Mas atualmente (o grifo é meu A.G.F.) seria um erro adotar medidas executivas. O PT ainda precisa passar por um prolongado processo democrático de definição mais completa de seu programa socialista, de sua estratégia, de suas formas de organização, inclusive com a participação de trabalhadores que não estão dentro do partido." "Por isso mesmo os militantes do PT devem compreender com clareza que os grupos organizados atuam no PT basicamente em seu próprio benefício e não em benefício da construção do PT." "Ao contrário do que afirmam os grupos organizados o marxismo não é propriedade sua nem de ninguém. E, muito menos, (. . .) é obrigatório estar integrado a uma seita que se autoproclama marxista e leninista, comunista e revolucionária, para ser tudo isso na verdadeira acepção da palavra." Sem a intenção de esgotar o assunto, pode-se notar que Wladimir estabelece uma contradição estratégica essencial entre o PT e as organizações clandestinas, inclusive em termos de princípios organizativos. Para os marxistas-leninistas não existe paradoxo entre respeitar as instâncias legítimas de uma organização de massas e, ao mesmo tempo, submeter-se ao centralismo-democrático de um partido clandestino de tipo leninista. A contradição entre uma estrutura e outra é apenas formal, e pode ser compatibilizada politicamente à medida que o próprio movimento alcança certa unidade classista. Sem dúvida, na acepção usual, no conteúdo não-leninista desse conceito, o PT é um partido e não uma frente. Não obstante, como reconhece Wladimir, seja um partido institucional com características frentistas. No sentido específico do conceito leninista, ou seja, uma organização normalmente clandestina, relativamente pequena, com normas de funcionamento e atividades baseadas no centralismo-democrático, o PT não é um partido. Não quer sê-lo, já pela sua própria vocação, instituída pelo seu nascimento relativamente espontâneo como "partido de massas". E nem deveria tentá-lo, pois isso neutralizaria o seu grande potencial como instrumento político das amplas lutas operárias e populares. Há setores importantes do PT que, mesmo não estando organizados em qualquer partido clandestino de tipo leninista, compreendem perfeitamente essa duplicidade necessária da organização das lutas proletárias e dos socialistas em geral. Tais setores entendem que não é o "legalismo" nem o "clandestinismo" que são capazes de construir a revolução e o socialismo, mas uma combinação de forcas organizativas. Certamente, se a posição de Wladimir conseguir se impor soberanamente, como hegemonia absoluta, chegará a "hora das definições", isto é, "da caça às bruxas". Chegará a hora, então, do anticomunismo como diretriz petista. Esperamos que isto não ocorra e que as posicões "legalistas" de combate às organizações clandestinas não se avolumem a tal ponto, pois isso significaria um obstáculo na luta efetiva pelo socialismo. O documento afirma, também, que as organizações clandestinas estabelecem uma relação meramente utilitária, que são oportunistas em sua relação no interior do PT, porque pensam exclusivamente em termos de sua própria construção. Isso não é apenas falso, mas uma calúnia contra as organizações. Em sua maioria, a bem da verdade, elas atuam, procurando construir um PT combativo, com posturas anti-reformistas e favoráveis ao socialismo de fato e não apenas de palavra. É certo que para quem defende que o socialismo, hoje, não é uma alternativa sequer entendida na perspectiva concreta do programa "democrático, operário e popular", isso pode representar a negação do "seu" petismo. Felizmente, porém, esse caso não tipifica a totalidade do PT hoje. Além disso, a maioria das organizações entende que a construção do PT como pólo político unificador das lutas operário-populares, como um verdadeiro partido de massas é uma tarefa de primeira grandeza. Algumas acham, até, que o PT poderá se transformar num partido leninista, um instrumento da tomada revolucionária do poder, possibilidade que não parece viável. O texto de Wladimir afirma que todas as organizações revolucionárias de nosso país sempre foram arrogantes, incompetentes e insinua, até, que jamais prestaram qualquer auxílio relevante às lutas operárias. Ora, para falar de arrogância com tal "competência" seria preciso que o autor dessas palavras falasse da competência, ele também, com menos arrogância. Se é verdade que a esquerda organizada, especialmente na sua vertente stalinista, apresenta limitações dessa ordem, Wladimir não está colaborando para romper esta tradição. Afinal, ele como representante que se tornou de um socialismo genérico e começante não poderia demonstrar tanta empáfia no combate às concepções alheias. E igualmente tanto desprezo por uma tradição que, mal ou bem, é a única que temos. Põe em dúvida a existência do anticomunismo no PT e, depois, ressalva que se existe um certo ranço anticomunista, isso é culpa, em grande parte, dos próprios comunistas. Renega explicitamente a tese de Lênin sobre o partido de vanguarda sem qualquer consideração teórica sobre o assunto, simplesmente como um capítulo encerrado, sobre o qual nada há para discutir. Finalmente, alerta aos militantes do PT, no mínimo com leviandade, no sentido de que "os grupos organizados atuam dentro do PT basicamente em seu próprio benefício e não em benefício da construção do PT ", contribuindo para ampliar o preconceito contra as organizações clandestinas e o marxismo-leninismo que busca formas correspondentes de organização e luta. Haveria muitas outras questões a serem abordadas no referido documento, cujas teses - para usar uma expressão do autor - "são como espingardas que espalham chumbo para todos os lados, na esperança de estimular a todos ao mesmo tempo". Nesse caso, todos os que potencialmente podem ser estimulados no combate às organizações clandestinas e ao marxismo-leninismo que busca, com erros e acertos, formas orgânicas de realização. Mas terminamos por aqui, esperando que da próxima vez Wladimir faça um esforço real para fundamentar teoricamente suas posições no terreno organizativo, ao invés de criticar apenas "pragmaticamente" as posições que considera adversárias. E, sobretudo, que use menos estereótipos contra a esquerda organizada, o que só faz mobilizar preconceitos já existentes, e utilize mais argumentos racionais e teóricos. Caso contrário, pode até ser confundido, por desavisados, com um anticomunista vulgar. Nota do editor: Adelmo Genro Filho baseou-se num texto que circulou em cópia xerox, inclusive sem título e unicamente com a assinatura de Wladimir Pomar, não constando a co-autoria de José Dirceu. Por essa razão refere-se apenas ao primeiro. |