Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. Marxismo, filosofia profana. Porto Alegre, Tchê, 1987. pp. 1-15. [Ref.: T193]

MARXISMO, FILOSOFIA PROFANA

Adelmo Genro Filho


Edição Original:

Edição: Tau Golin
Revisão: Paulo Custódio
Capa: Cristina Pozzobon
Composição: Sônia Scherer e Carlos Becker
Montagem e Fotolito: Adail Pedroso
Impressão: Pallotti - Santa Maria - RS
Editora: tchê! Editora Ltda.
Porto Alegre - RS - Brasil
Editor: Airton Ortiz
Impresso em outubro de 1986
Ó Adelmo Genro Filho

(Texto das orelhas do livro)

         Aos que se deterem no título deste livro concebendo o marxismo religiosamente, poderão imaginá-lo como obra que busca a sua negação. Flagrante engano. Pois, ao contrário, é a sua mais radical defesa. Traz o desafio de pensá-lo como "filosofia da práxis". É uma recusa à apologia e às formulações dogmáticas. Seu discurso teórico se coloca numa perspectiva revolucionária e proletária. É justamente na noção de práxis que Adelmo Genro Filho estabelece o critério de análise teórica e suas decorrências políticas.

         Em Marxismo, filosofia profana, o autor trata a dialética como premissa que "põe o homem no mundo e, o homem, através de sua apropriação prática e teórica desse mundo, se põe como história e dentro desta a própria história do mundo passa a revelar-se como processo da verdade". Estuda o "ecologismo libertário", onde revela pontos de ligação com a filosofia burguesa, ao mesmo tempo em que aponta as limitações de um certo marxismo tradicional em relação às problematizações colocadas pelas agudas questões ecológicas.

         Adelmo Genro Filho discute o conceito de ideologia, polemizando com Marilena Chauí. Extrai do leninismo uma conceituação não dissolvente de ideologia. Esse é um debate que confronta com visões de ideologia como "falsa consciência" ou como necessária negação da "verdade" teórica, com trânsito predominante principalmente entre acadêmicos. Concomitantemente ao debate, nesse particular, Adelmo também avança teoricamente na formulação do conceito de ideologia. A oportunidade dos ensaios do autor é exatamente a possibilidade de intervenção concreta na luta política, onde assume posições nos confrontos ideológicos e teóricos.

         Para o autor, a conquista de um socialismo que realmente mereça esse nome requer um marxismo militante e reflexivo. Onde a premissa seja a compreensão do homem como ser "prático-pensante", o qual encontra-se na base da categoria de práxis, tomada em seu conteúdo materialista. Propõe igualmente a reavaliação e reconstrução das formulações teóricas. Nada mais estranho ao marxismo do que a estagnação, o dogma e a religiosidade das explicações permanentes, usurpando o lugar da dialética. "O marxismo é, no plano das idéias, um movimento de construção teórica presidido pela categoria da práxis, sendo enriquecido por ela e enriquecendo-a progressivamente".

         A honestidade sóbria do autor em enfrentar as questões aqui colocadas estabelece uma disciplina igualmente inquietadora sobre os desafios postos aos marxistas, os quais, certamente, não são respondidos pelo dogmatismo e pela apologia arrogante de algumas inalteráveis e monolíticas categorias. Esse livro contém uma energia revolucionária incontida contra o conformismo e um estímulo à militância e à teoria. Realidade refletida nessa afirmação de Adelmo Genro Filho: "um verdadeiro revolucionário percebe todo o existente como algo profano".

Tau Golin


(Dedicatória)

         Para minhas fílhas, Júlia e Bruna, com amor.


(Agradecimentos)

         À Cassia Corintha Pinto que gentilmente corrigiu os originais. Ao Sérgio Weigert que leu, fez críticas e sugestões pertinentes. À Márcia, minha companheira, que me incentivou e ajudou a conceber esta publicação.


(Prefácio)

         Este livro reúne três ensaios antecedidos por uma "introdução". Nesta, há uma explicitação do ponto de vista sobre o marxismo que embasa os demais textos. Trata-se de uma recusa de qualquer abordagem apologética ou dogmática e é a tentativa de indicar um caminho para pensar a concepção de Marx e Engels, efetivamente, como "filosofia da práxis". É a proposta de um discurso teórico com uma perspectiva revolucionária e proletária, mas inserido na realidade dialética que ele se propõe compreender e direcionar. Portanto, em evolução e transformação.

         O primeiro ensaio trata da dialética, buscando discutir algumas questões filosóficas concernentes ao novo materialismo iniciado por Marx, especialmente a noção de práxis e certas implicações políticas que lhe são decorrentes. O segundo, se propõe a uma crítica do chamado "ecologismo libertário" e a indicar a coincidência de suas premissas ocultas com a filosofia burguesa, reconhecendo as deficiências do enfoque tradicional do marxismo em relação ao problema ecológico. O terceiro, na forma de uma polêmica direta com o texto de Marilena Chauí, procura extrair da práxis leninista um conceito não dissolvente de ideologia, em oposição ao uso que dele fez o próprio Marx na Ideologia Alemã.

         Os três ensaios estão conscientemente vinculados a lutas políticas concretas e atuais, posicionando-se em confrontos ideológicos e teóricos. Não encarnam, portanto, vocação ornamental ou acadêmica, mas a disposição de um pensamento comprometido com a luta de classes e a conquista de um socialismo que mereça esse nome. As limitações ficam por conta das impossibilidades do autor e não das intenções que o animam. O caráter desses escritos é, certamente, o de algo inacabado e transitório. No entanto, sua publicação revela a esperança de que possam contribuir, principalmente através do debate, para o avanço de um marxismo militante e reflexivo. Se em alguma medida isso ocorrer, os objetivos dessa publicação estarão contemplados.

A.G.F.


Introdução

         Como conciliar o marxismo com Marx, isto é, a dialética com o sistema, mesmo que este seja formulado em bases materialistas? Até que ponto pode-se acrescentar, desenvolver e "corrigir" as teses defendidas por Marx e Engels há mais de um século em nome dos próprios autores? Enfim, qual a substância, quais os limites da concepção geral que a dialética marxista não pode ultrapassar sob pena de trair-se a si mesma?

         O conhecimento humano, evidentemente, não parou nestes últimos cem anos. As ciências sociais avançaram, especialmente sob o influxo do próprio marxismo. As ciências naturais deram um salto gigantesco. Mas nem tudo nesse desenvolvimento global veio apenas "reafirmar" as teses marxistas ou exigir simplesmente sua "atualização".

         A tentativa de Lukács para encontrar uma solução que conciliasse o compromisso do marxismo com a dialética e, ao mesmo tempo, com sua identidade enquanto concepção, já foi sobejamente refutada. Entre outros, pelo próprio Lukács. Primeiro, ele tentou resolver a relação da dialética com o sistema em Marx, no seu livro História e Consciência de Classe, afirmando que o permanente seria o método e que tudo o mais estaria sujeito a revisão e atualização. Mais tarde, no seu ensaio As Bases Ontológicas do Pensamento e da Atividade do Homem, Lukács denuncia que até hoje o marxismo raramente foi entendido como ontologia. E acrescenta que o elemento filosófico fundante da contribuição de Marx foi ter proposto, em linhas gerais, "uma ontologia histórico-materialista", superando teórica e praticamente o idealismo "lógico-ontológico" de Hegel. Ora, se o marxismo é uma filosofia que superou outra filosofia, quer dizer, se se trata de uma concepção que envolve um pressuposto totalizante, não pode ser reduzido a um método. Não pode ser tratado como mera epistemologia da qual o método seria decorrente, já que essas duas dimensões estariam necessariamente articuladas a uma pressuposição ontológica. As categorias e leis que qualificam e normatizam o pensamento teórico e científico, implicam em premissas sobre a realidade em si mesma. O método está, em conseqüência, indissoluvelmente ligado a uma visão global do mundo e é tão histórico quanto ela. Quando um se move, o outro não pode ficar estático.

         Em geral, duas respostas têm sido oferecidas para essa questão da historicidade/permanência do marxismo. Uma delas considera que Marx fundou uma "nova ciência" e, para citar o caso de Althusser, joga o "último Marx", devidamente ungido de maturidade científica, contra os demais períodos de sua própria biografia, reputando-os simplesmente como "pré-marxistas". Sem dúvida, uma solução elegantemente acadêmica. O método, voltado estritamente para a objetividade e suas leis, que caracterizaria O Capital, torna-se a dimensão permanente da concepção. O marxismo, por linhas tortas, realiza o ideal de Comte e se integra ao espírito sem paixões das ciências naturais. Torna-se, em seus fundamentos não-filosóficos, uma disciplina científica que inaugura um novo "continente" do saber. Nesse sentido, uma disciplina permanente ou, pelo menos, tão duradoura quanto a existência de seu objeto: o desenvolvimento da sociedade no tempo.

         A outra resposta considera o marxismo como uma filosofia tradicional, um sistema fechado capaz de explicar o mundo de um só golpe, procurando tergiversar sobre aquelas passagens dos escritos de Marx e Engels que proclamam a morte da filosofia, seja pela sua "realização", seja pela sua "dissolução nas ciências positivas" enquanto filosofia propriamente dita.

         O problema fundamental, em qualquer das respostas oferecidas, é que pretendem abolir o desenvolvimento contraditório do marxismo, ou seja, a historicidade concreta que se manifesta desde a sua gênese enquanto concepção. Alguns querem fazê-lo suprimindo a dimensão ontológica, isto é, o caráter filosófico do marxismo, que é inerente a qualquer apreensão totalizante sobre o homem e o mundo. Outros, não querem admitir que o marxismo seja um ponto de ruptura na história da filosofia, que começa com ele o processo de superação de todas as filosofias anteriores, pois sabe que não é possível explicar exaustivamente a totalidade do mundo, embora reconheça como imprescindível a constituição de um saber afirmativo sobre essa totalidade. Por mais engenhoso e complexo que seja um sistema de idéias gerais sobre o universo e o homem, jamais poderá ser definitivo. Assim como este mundo não se deixa dominar através de uma única investida prática, mas vai se dobrando aos homens ao longo dos milênios, também a verdade não pode revelar a intimidade do real pela transparência ou brilho de um único e eterno sistema de categorias e leis.

         Portanto, antes de mais nada, é preciso resguardar a historicidade do marxismo se ele pretende revelar a historicidade do mundo e, por outro lado, é preciso afirmar que, num sentido muito importante, ele continua sendo uma filosofia, embora sem as pretensões ingênuas que perpassam as concepções filosóficas que o antecederam.

         Quando Castoriadis afirma que deixou de ser marxista para continuar sendo revolucionário, podemos discordar dele, notando, inclusive, que suas posições políticas não são as de um revolucionário. Devemos, porém, reconhecer que ele está respondendo, de modo negativo, é verdade, a uma questão que se coloca seriamente para todos os marxistas que não perderam o hábito da reflexão. Assim, diante da questão: Como ser marxista sem negar a dimensão ontológica que qualifica a concepção e sem, contudo, recusar a historicidade e a transitoriedade das formulações concretas da teoria? Há uma interrogação precedente: O que é afinal, o marxismo? Esta é anterior a tudo e não comporta uma resposta neutra, pois respondê-la é colocar as premissas da discussão sobre o relacionamento entre método e ontologia, entre a dialética e o sistema.

         Há, certamente, mais de uma resposta possível. Toda filosofia (e todo conceito) encerra uma determinada margem de imprecisão e dubiedade, pois é parte de um saber sempre incompleto, que se processa de modo permanente e contraditório. Aquilo que se disser de uma filosofia, de uma teoria, de uma idéia ou de um conceito, de algum modo, continuará a produzí-la.

         Por isso, não existe um Marx "puro", intocado em sua verdade substancial, que sobrevive numa altivez passiva frente a todas as interpretações, acréscimos, tergiversações e distorções. O que foi feito do marxismo por Stálin e seus seguidores, por Trotsky, pelos social-democratas, pelos eurocomunistas e afins não pode, simplesmente, ser abolido para que voltemos, indiferentes, ao lume que está no ponto de partida. Uma interpretação que potencialize o espírito revolucionário do marxismo, em cada momento histórico, não é uma "revelação" que nasce da leitura autêntica das fontes. Somente os textos sagrados possuem a qualidade ímpar de manter inalterado, através dos séculos, o sentido original de suas verdades. Os textos profanos, entre os quais o marxismo, exigem uma interpretação que implica, inevitavelmente, numa reconstrução do sentido.

         Essa reconstrução, ao que nos parece, passa atualmente pelo entendimento de que Marx significa o ponto nodal de uma grande ruptura histórica e filosófica que se estende por toda uma época. Não se trata de um autor que teria elaborado um sistema de idéias capaz de explicar exaustivamente todas as determinações desse período e, além do mais, de responder de antemão às novas indagações que nascem desse processo. Tampouco, de um cientista movido apenas por elevado amor ao conhecimento, que teria fundado uma nova disciplina, um novo "continente do saber". O primeiro é muito, o segundo é pouco.

         A substância do marxismo é o próprio movimento político e filosófico que se inicia com Marx e Engels, à medida que eles delinearam - pela primeira vez na história - um conceito materialista de práxis. Uma categoria que iluminou as conquistas teóricas e políticas não só de Marx e Engels, como de Lênin e outros de menor envergadura. Porém, a compreensão do homem como ser "prático-crítico", que está na base da categoria de práxis, tomada em seu conteúdo materialista, propõe uma reavaliação e reconstrução constantes das formulações teóricas a que dá origem, sem excluir aquelas dos autores considerados fundadores ou clássicos e sem excluir desse processo dialético, igualmente, o aprofundamento, pela riqueza das determinações históricas, da própria categoria axial e permanente durante a época que atravessamos, a saber, a práxis.

         É essa categoria, portanto, que nos fornece os critérios para indicar o duplo aspecto da persistência do marxismo, sem negar a dialética e, ao contrário, afirmando-a de modo efetivo. A identidade e a persistência do marxismo não podem ser compreendidas como algo à margem da história, mas exatamente pela concretude histórica de sua inserção. Assim, o primeiro aspecto da permanência é precisamente o significado histórico-concreto de sua existência, o caráter revolucionário do marxismo ao se opor frontalmente à ditadura que o capital exerce sobre a humanidade, conclamando os explorados e oprimidos a destruir praticamente o atual estado de coisas. É nos limites dessa práxis que o marxismo configura a duração de seu projeto histórico e político. Quando em 1860, respondendo a um questionário de suas filhas Jeny e Laura, Marx disse que sua frase preferida era "Nada do que é humano me é estranho", ele indicava a amplitude efetiva de um humanismo que, antes, nunca havia transposto os umbrais da generalização abstrata.

         O outro significado, que diz respeito também à persistência do marxismo, intimamente ligado ao primeiro, é a dimensão teórica do conceito de práxis, situada no interior do movimento de nossa época histórica. O marxismo é, no plano das idéias, um movimento de construção teórica presidido pela categoria da práxis, sendo enriquecido por ela e enriquecendo-a progressivamente.

         Enfim, o marxismo situa-se, não de modo supra-histórico, mas dentro da história. Trata-se de um processo teórico que procura iluminar e constituir um movimento prático que tem um ponto de partida (Marx), envolvendo um projeto histórico e determinadas premissas (em torno do conceito de práxis) de alcance ontológico.

         Ser marxista, em conseqüência, não implica hoje em deixar de ser revolucionário, como pretende Castoriadis, mas exatamente em situar-se nesse movimento crítico das idéias e da prática que leva, com muita justiça, o nome de Marx. Logo, para ser um verdadeiro marxista no sentido apontado, isto é, sem trair a identidade da concepção ou a dialética que ela quer abraçar, a condição elementar é perceber todo o existente como algo profano. Inclusive os clássicos. Pois se essa postura trabalha na dimensão da transitoriedade histórica da concepção, também é o único caminho para realizá-la.

         Esta introdução foi publicada, sob o título de Marxismo, filosofia profana, no jornal "Fazendo o Amanhã" n° 5, São Paulo, fevereiro de 1986. (Publica-se, aqui, com algumas modificações.)





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