Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. Marxismo, filosofia profana. Porto Alegre, Tchê, 1986. pp. 82-103. [Ref.: T193]
A ideologia de Marilena Chauí

         A pergunta que este artigo pretende responder é a seguinte: Marilena Chauí tem uma ideologia? A questão é relevante, pois seu pequeno livro - O que é Ideologia, (1) que tem recebido enorme acolhida do público leitor, especialmente entre estudantes e professores - deixa claro que ela mesma pensa não ter ideologia e recomenda aos explorados e oprimidos evitá-la, "porque falar em ideologia dos dominados é um contra-senso, visto que a ideologia é um instrumento de dominação". (2) É interessante que a autora diga isso de modo tão peremptório, sem esclarecer que se trata de um contra-senso apenas em relação ao conceito que ela própria toma como verdadeiro. É como se alguém dissesse: "Eu afirmo que as pontes são feitas de cimento, portanto é um contra-senso falar em pontes de madeira".

         Vejamos, primeiro, nas palavras da autora, como pode ser negada ou superada a ideologia: "Com isto, Marx e Engels dão à teoria um sentido inteiramente novo enquanto crítica revolucionária: a teoria não está encarregada de 'conscientizar' os indivíduos, não está encarregada de criar a consciência verdadeira para opô-la à consciência falsa, e com isto mudar o mundo. A teoria está encarregada de desvendar os processos reais e históricos enquanto resultados e enquanto condições da prática humana em situações determinadas, prática que dá origem à existência e à conservação da dominação de uns poucos sobre todos os outros. A teoria está encarregada de apontar os processos objetivos que conduzem à exploração e à dominação e aqueles que podem conduzir à liberdade". (3)

         Assim, o papel da teoria é desvendar os processos reais e históricos, apontando tanto os caminhos objetivos que conduzem à exploração e à dominação quanto aqueles que podem conduzir à liberdade. Quer dizer, a teoria tem uma função crítica que lhe é inerente mas, em si mesma, não assume valores externos ao processo objetivo. A teoria, então, é isenta em relação aos valores a partir dos quais os homens farão suas opções no campo objetivo das possibilidades. São os homens reais e concretos, como reconhece Marilena Chauí, que escolhem o caminho a seguir. Ora, tanto do ponto de vista prático como teórico, essa é uma questão fundamental em termos políticos. Por isso, tentemos encontrar onde, no âmbito do sistema de categorias usado pela autora, está situado esse momento decisivo da auto-produção histórica dos homens. Já vimos que não está contemplado pela teoria, pois na dimensão teórica apenas são desvendados os processos objetivos e os caminhos possíveis. Ao pensar teoricamente sobre a realidade, o sujeito histórico reconhece as alternativas, mas ainda não decidiu entre a dominação e a liberdade, não sabe se vale a pena rebelar-se. Não há dúvida que é possível, e até necessário, do ponto de vista analítico, estabelecer uma relativa distinção entre conhecimento e valores, entre teoria e ideologia. Caso contrário, não se poderia entender porque os intelectuais "socialistas", em sua maioria, não são revolucionários. O equívoco consiste em pensar que são realidades opostas ou mutuamente excludentes, em não perceber a articulação ontológica no interior da consciência entre o "conhecer" e o "querer", entre o "saber" e a "opção". Em que medida podemos separar, radicalmente, o conhecimento teórico produzido por Marx e Lênin da alternativa revolucionária e socialista que escolheram? O problema é que a teoria não apenas "desvenda" o real em sua objetividade, indicando possibilidades, mas também "produz" a objetividade e "cria" novas possibilidades que sequer existiam adormecidas no processo objetivamente dado. A teoria desvenda o real tanto quanto o produz. O real produz a teoria à medida mesmo em que é desvendado por ela. Mas vamos adiante no texto da autora para tentar descobrir se o sujeito, que está oculto na teoria, aparece, como tal, na prática.

         "Percebemos, então, que a teoria - ao contrário da ideologia - não está encarregada de tomar o lugar da prática, fazendo a realidade depender das idéias. Também não está encarregada de guiar a prática, fazendo com que a atividade histórica dependa da consciência 'verdadeira'. E também não está encarregada de se inutilizar enquanto teoria para valorizar apenas a prática, visto que a alienação prática reproduz a prática alienada". (4)

         De fato, a teoria não tem um papel diretivo absoluto sobre a prática e, por outro lado, também não pode inutilizar-se como tal, pois a prática, deixada a si mesma, tende a reproduzir-se eternamente como prática alienada. Sobre isso, nenhuma discordância. Mas volta a questão do sujeito "oculto", aquele que toma a decisão de rebelar-se, aquele que não só reconhece a possibilidade da revolução em termos teóricos, mas em toda sua existência ou num único instante incendeia sua alma e joga sua vida para concretizá-la. Estávamos em busca do homem concreto, que pertence a uma sociedade, a uma época e a uma classe determinadas, o homem que "faz" a história imerso em determinadas condições, e por enquanto não encontramos nada mais vivo do que um espantalho teórico que "desvenda" soberanamente o processo objetivo do alto de sua cátedra. Na ideologia ele é sempre um dominado, pois não existe ideologia revolucionária. Na teoria ele percebe que pode libertar-se, mas ainda não entrou em ação para transformar a realidade. Talvez pudéssemos encontrá-lo na dimensão da prática, como modesto artesão que se esconde nessa categoria e cotidianamente, pedra sobre pedra, vai construindo a pirâmide da história. Mas a "dialética" que será vista a seguir visa, ao contrário, precisamente elidir a questão. É a dialética do "esconde-esconde":

         "A relação entre teoria e prática é revolucionária porque é dialética. Vimos que a dialética é o movimento das contradições e que a contradição é a existência de uma relação de negação interna entre termos que só existem graças a essa negação". (5)

         O que se diz aqui, no final das contas, é que a dialética é realmente dialética. Convenhamos, uma idéia excessivamente genérica e óbvia para resolver o nosso problema. A palavra dialética é muito pouco para explicar algo tão concreto e particular como uma revolução feita pelos homens. Portanto, vamos adiante para tentar descobrir o mistério:

         "Que significa dizer que a relação entre a teoria e prática é dialética e não ideológica (como aquela relação que mostramos ser feita pelos positivistas)? A relação entre a teoria e a prática é uma relação simultânea e recíproca por meio da qual a teoria nega a prática enquanto prática imediata, isto é, nega a prática como um fato dado para revelá-lo em suas mediações e como práxis social, ou seja, como atividade socialmente produzida e produtora da existência social. A teoria nega a prática como comportamento e ação dados, mostrando que se trata de processos históricos determinados pela ação dos homens que, depois, passam a determinar suas ações. Revela o modo pelo qual os homens criam suas condições de vida e são, depois, submetidos por essas próprias condições". (6)

         Já tínhamos visto: a teoria não muda a vida. Ela nega teoricamente a prática, mostrando aos homens que foram suas próprias ações que produziram as condições que os submetem. A teoria indica, tão somente, que foram os próprios homens que criaram as circunstâncias que os fazem pensar que não foram eles que produziram tais circunstâncias. Logo, a teoria mostra aos homens que eles podem, se quiserem, mudá-las. Mas isso só poderá ser feito de modo prático e revolucionariamente. Em que dimensão da consciência social os homens tomam a decisão de fazê-lo, se, livres de qualquer ideologia, eles percebem teoricamente que é possível mudar a realidade? Seria no interior da prática a gênese do momento revolucionário e, portanto, qualitativo, do processo histórico? Vejamos o que diz Marilena Chauí sobre a prática:

         "A prática, por sua vez, nega a teoria como um saber separado e autônomo, como puro movimento de idéias se produzindo umas às outras na cabeça dos teóricos. Nega a teoria como um saber acabado que guiaria e comandaria de fora a ação dos homens. E negando a teoria enquanto saber separado do real que pretende governar esse real, a prática faz com que a teoria se descubra como conhecimento das condições reais da prática existente, de sua alienação e de sua transformação". (7)

         Continuamos na mesma situação. A teoria nega a prática enquanto prática imediata, mostrando suas mediações com a práxis social, como atividade socialmente produzida e produtora da existência humana. A prática, por sua vez, nega a teoria como saber acabado e autônomo que guiaria e comandaria de fora a ação dos homens. No entanto, a relação dialética que produz o conhecimento da situação real ainda não é práxis revolucionária e nem mesmo militância sindical. A atividade propriamente revolucionária, como transformação do mundo, fica completamente exterior ao esquema teórico proposto. A postura teórica de Marilena Chauí é estritamente epistemológica, como relação abstrata entre dois conceitos (teoria e prática) que se relacionam genericamente para produzir o "saber real" sobre a história. Efetivamente, suprimida a ideologia dos dominados e tomada a teoria como mera revelação da objetividade, suprime-se igualmente, no âmbito dessa reflexão, o antagonismo de interesses, as contradições de classe. O que move o mundo e a história, nessa perspectiva, é a contradição entre teoria e ideologia. O homem concreto fica substituído por dois homens abstratos: um que conhece teoricamente a história real, mas nem por isso se transforma num revolucionário, e outro que, por não ter acesso à teoria, é um eterno prisioneiro da ideologia, um ser alienado.

         Enfim, podemos suspender a busca. O "sujeito" da história não será encontrado. O apelo final do livro, no sentido de que os oprimidos assumam sua condição de "sujeitos" e deixem de ser "pacientes" da história, retorna como interrogação aos detentores do "saber real". Essa dialética misteriosa, cujos sujeitos são as classes em luta, sendo que a luta se explica pelas classes e estas se explicam pela luta, sem que possamos saberem que dimensão subjetiva se constitui o momento revolucionário (pois estamos falando dos homens) tem uma paternidade bem conhecida. Trata-se de Louis Althusser, indiscutivelmente o pai do "estruturalismo marxista". Mas trata-se do primeiro Althusser e não do último que, em sua autocrítica, escreveu:

         "Porém, eu via a ideologia como elemento universal da existência histórica, e não ia muito além. Deixei assim por conta a diferença de regiões da ideologia, e as tendências de classe antagônicas que as atravessam, as dividem, as reagrupam e as opõem. A ausência da 'contradição' fazia seu trabalho: não era questão das classes na ideologia". (8)

         É bem verdade que nem Marilena Chauí defende exatamente a antiga posição de Althusser, nem este fez uma auto crítica radical. Marilena Chauí se afasta de Althusser em duas questões importantes: 1) Quanto à gênese da ideologia, que ela percebe como um momento historicamente determinado em virtude da alienação, como produto da divisão do trabalho e da divisão da sociedade em classes. Althusser pensava na ideologia como "efeito" insuperável de qualquer tipo de estrutura social; 2) quanto à existência da ideologia dos dominados, que Althusser já admitia e Marilena Chauí considera um "contra-senso". Neste ponto, o primeiro Althusser ia mais longe do que a atual Marilena Chauí, embora, ao admiti-la, Althusser entre num beco sem saída. Pois, se a ciência é a verdade única e suprema, a luta ideológica transforma-se numa luta da "ciência marxista" contra a ideologia. Como resultado desse processo, a "ideologia subordinada" dos explorados, que serve apenas para expressar formas ingênuas e incipientes de protesto, acaba se transformando em algo caudatário da teoria científica, uma "ideologia científica" que é deduzida completamente da ciência mesma. Quer dizer, para Althusser, embora admitindo a ideologia dos dominados como algo real, subordinado ao sistema de concepções da ideologia burguesa dominante, trata-se de substituí-la por algo que lhe é exterior, de transformá-la num epifenômeno da doutrina científica. A dialética aqui tem mão única, vai apenas da teoria para a ideologia espontânea do proletariado e, assim mesmo, de forma negativa. A ideologia espontânea, quando manda seus eflúvios para a teoria, apenas prejudica a ciência. Logo, quem tem o "saber" são os teóricos do marxismo, os cientistas. Ao proletariado cabe aprender e obedecer as prescrições da doutrina.

         Mas há um aspecto fundamental de plena coincidência entre um e outro. Tanto para Althusser como para Marilena Chauí existe uma oposição e uma distinção cruciais entre a ciência, de um lado, e a ideologia de outro. Ela até adverte, tal como faz Althusser, que: "Por ilusão não devemos entender 'ficção', 'fantasia', 'invenção gratuita e arbitrária', 'erro' 'falsidade', pois com isso suporíamos que há ideologias falsas ou erradas e outras que seriam verdadeiras e corretas". (9) Ela opõe claramente ideologia ao "saber real", à "teoria", às "idéias não ideológicas". Vejamos, ainda, suas próprias palavras:

         "Portanto, enquanto não houver um conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar o significado da prática imediata dos homens, enquanto a experiência comum da vida for mantida sem crítica e sem pensamento a ideologia se manterá". (10)

         O que há de comum com Althusser é que não há contradições antagônicas no plano ideológico, não há luta de classes ao nível da ideologia, pois trata-se de uma dimensão unívoca de legitimação e reprodução das relações sociais. E isso não é uma identidade secundária, pois trata-se do que há de mais conservador e manipulatório nas posições teóricas formuladas por Louis Althusser.

         Para discutir melhor as idéias de Marilena Chauí sobre a natureza da ideologia, vamos analisar alguns aspectos de sua concepção em seu desenvolvimento.

         "Um dos traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, em tomar as idéias como independentes da realidade histórica e social, de modo a fazer com que tais idéias expliquem aquela realidade, quando na verdade é essa realidade que torna compreensíveis as idéias elaboradas". (11)

         Mais adiante, a autora mostra a relação entre as concepções científicas e filosóficas da burguesia com a realidade do capitalismo em ascensão, que passam a expressar e a justificar a divisão entre proprietários dos meios de produção e trabalhadores assalariados. E conclui: "Vejamos, novamente, como as idéias que parecem resultar do puro esforço intelectual, de uma elaboração teórica objetiva e neutra, de puros conceitos nascidos da observação científica e da especulação metafísica, sem qualquer laço de dependência com as condições sociais e históricas, são, na verdade, expressões dessas condições reais, porém de modo invertido e dissimulado. Com tais idéias pretende-se explicar a realidade, sem se perceber que são elas que precisam ser explicadas pela realidade". (12) A tese de que as idéias dominantes em cada época expressam os interesses das classes dominantes é, sem dúvida, um patrimônio do marxismo. Mas afirmar que, pelo fato da ideologia dominante não explicar a realidade social, é aquela que deve ser "explicada" pela realidade não acrescenta nada sobre a natureza da própria ideologia. Implica apenas num reforço sobre o caráter falacioso e parcial que apresenta a ideologia das classes dominantes, ao refletir sobre o universo histórico-social a partir de um ângulo particular. Tentar extrair mais dessa afirmação é instaurar um círculo vicioso, pois já estaria contido no raciocínio, como pressuposto implícito, aquilo que se pretende demonstrar: que é possível um conhecimento "não-ideológico", capaz de aprender a realidade social de maneira estritamente objetiva, sem condicionamentos históricos ou de classe. A realidade em si mesma, enquanto objetividade, não pode explicar nada. Somente o sujeito pode explicar a objetividade e, igualmente, "explicar" as explicações fornecidas pela ideologia dominante. Portanto, não se pode falar em "ciência" e "ideologia" como dois estatutos opostos e mutuamente exclusivos, como se houvesse uma linha demarcatória fixa e aprioristicamente definida. A história do conhecimento e das idéias em geral indica, não apenas que existe uma articulação permanente entre as teorias científicas e ideologia, mas, também, que uma se transforma constantemente na outra.

         A situação do proletariado como classe está em contradição com as relações sociais que constituem o capital e, dessa forma, com a própria burguesia, que detém os meios de produção e atualiza a lógica capitalista.

         A consciência espontânea do proletariado brota constantemente dessa contradição objetiva, da sua condição de classe, como expressão mesma da sua particularidade no interior da totalidade social, mas sem deixar de manifestar-se idealmente no interior dessa totalidade. Em síntese, a ideologia espontânea do proletariado, tal como acontece concretamente nas relações que constituem o proletariado como classe, encarna uma contradição com dois pólos reais. A particularidade da classe, com sua existência diferenciada e específica no modo de produção capitalista, e a universalidade desse modo de produção onde está inserida e sem o qual não poderia existir. Na ideologia essa contradição se manifesta como resistência espontânea à exploração e à dominação e, por outro lado, nos limites sindicalistas e economicistas dessa luta quando travada espontaneamente. Os indivíduos que formam sua vanguarda, sejam ou não oriundos de seu meio, são portadores ou da teoria ou da ideologia revolucionária e, na melhor das hipóteses, de ambas. As premissas da teoria revolucionária, no caso, o marxismo, não estão ligadas apenas à particularidade da situação de classe, mas também às conquistas universais do pensamento humano e, inclusive, a toda a tradição intelectual anterior. As premissas da ideologia nascem diretamente da experiência cotidiana do proletariado. Mas se a teoria e a ideologia não entram em relação dialética com base na experiência política da classe, permanecem ineficazes, a primeira como generalidade abstrata e a segunda como rebeldia inconseqüente. Através da ação política organizada, na qual é imprescindível a formação de uma vanguarda, a teoria torna-se concretamente revolucionária ao fundir-se como práxis na dinâmica da luta de classes. A ideologia, por seu lado, deixa de ser expressão fragmentada de rebeldia para transformar-se num projeto revolucionário articulado tanto à experiência quanto à teoria. Porém, amplos setores da classe operária só assumem uma ideologia revolucionária se esta não se apresentar como negação pura e simples de sua ideologia espontânea, como algo meramente doutrinário, mas sim como superação com base em sua própria experiência. Não se trata de algo a ser "substituído", mas transformado por dentro a partir da própria contradição que a ideologia espontânea encarna. E a teoria só se transforma numa força material, quer dizer, política, se penetra nas massas de modo prático ao articular-se com a ideologia espontânea. Ambas são elevadas, na práxis, através de um processo crítico que se dá nos dois sentidos, a um patamar superior. Por isso, as amplas massas exploradas e oprimidas, em particular o proletariado, podem fazer a revolução sem aprender a teoria "teoricamente", podem realizar a teoria revolucionária sem ler uma única página d' O Capital de Karl Marx, desde que entrem em interação com sua vanguarda de classe. Um operário pode assumir facilmente uma postura e uma militância revolucionária sem compreender teoricamente um centésimo do que sabe a Marilena Chauí. Um intelectual pode compreender profundamente o capitalismo, fazer teses e livros sobre o conceito de ideologia, e ser um pacífico professor universitário sem assumir realmente a ideologia revolucionária.

         A ideologia revolucionária do proletariado é uma síntese que só a práxis política pode realizar, que só na práxis política pode realizar-se. A ideologia espontânea do proletariado existe como tensão permanente entre a situação particular do proletariado diante do capital (que gera idéias de resistência, crítica e rebeldia geralmente no contexto de situações particulares e de modo fragmentário) e a universalidade das relações capitalistas (que condiciona a predominância de certos valores universais na sociedade, em termos éticos, filosóficos, estéticos, jurídicos e políticos), dos quais o proletariado não consegue desvencilhar-se ao manifestar espontaneamente suas carências e esperanças.

         Mas a ideologia revolucionária do proletariado, se, por um lado, não se identifica com a ideologia espontânea, por outro, também não se identifica com o marxismo enquanto teoria ou doutrina "científica". É uma fusão da teoria com a consciência espontânea no interior de uma práxis especial, na qual ambas se modificam. A ideologia espontânea eleva-se ao patamar de uma ideologia revolucionária de classe. A teoria, que teve sua gênese na cultura universal reafirma sua universalidade de modo concreto, ao ligar-se ao proletariado e aos seus interesses de classe.

         O marxismo reconhece sua gênese universal, mas retorna a ela de modo histórico, para realizar efetivamente a universalidade concreta de suas premissas através da revolução proletária e da conquista de uma sociedade sem classes. Nessa medida, o marxismo critica a universalidade abstrata das premissas do pensamento burguês e aponta a particularidade concreta de seus fins políticos. Numa palavra, o pensamento burguês afirma abstratamente seus fins universais e é concretamente burguês. O marxismo afirma concretamente seus fins universais assumindo politicamente sua particularidade de classe, como condição mesma para realizá-los.

         A ideologia revolucionária do proletariado não é o dado imediato oferecido pela consciência espontânea, nem uma verdade teórica que se define como oposição a essa consciência. Tampouco uma "consciência verdadeira" em oposição à "falsa consciência", mas uma consciência revolucionária possível que se produz na práxis política a partir da fusão da teoria revolucionária com a consciência espontânea.

         O capitalismo é o primeiro modo de produção que gera nas suas entranhas materiais, não um novo modo de produção, mas tão somente suas premissas materiais e políticas. O próprio capitalismo nasceu, literalmente, no ventre do feudalismo enquanto realidade material e social, enquanto relações sociais de produção decorrentes da acumulação mercantil. O socialismo, por ser exatamente a negação de relações sociais cuja concretitude é dada pela sua universalidade - pois a relação mercantil não pode ser abolida do particular para o geral e sim deste para o particular - não pode nascer antes que se imponha o poder político do proletariado. Antes da revolução proletária levada a termo como ato consciente, não obstante esse ato seja a supressão de uma contradição objetivamente configurada. Aliás, é precisamente por isso que ele é possível. Assim, não existem no capitalismo relações orgânicas capazes de propiciar uma práxis no sentido revolucionário, para que a ideologia de classe do proletariado surja naturalmente como consciência revolucionária. Disso decorre uma situação aparentemente paradoxal: as contradições que se originam das relações mercantis e inspiram os intelectuais socialistas e os operários sindicalistas, são as mesmas que impedem a realização espontânea da fusão entre a "teoria abstrata" e a "prática economicista", impedindo que ambas se assimilem e se transformem em práxis revolucionária. Somente um partido de vanguarda, referenciado na experiência leninista (em geral recusada tanto pelos "socialistas" como pelos sindicalistas mais proeminentes), pode se constituir no fulcro dinâmico desse processo. Ou seja, constituir uma práxis orgânica distinta e oposta à práxis mercantil que vigora espontaneamente no capitalismo. Portanto, a rigor, a ideologia revolucionária do proletariado existe apenas por seus elementos constitutivos, como síntese possível, mas que não é dada aprioristicamente, seja pela teoria, seja pela ideologia espontânea.

         Retornemos ao texto de Marilena Chauí.

         "É, portanto, das relações sociais que precisamos partir para compreender o quê, como e porquê os homens agem e pensam de maneiras determinadas, sendo capazes de atribuir sentido a tais relações, de conservá-las ou de transformá-las. Porém, novamente não se trata de tomar essas relações como um dado ou como um fato observável, pois neste caso estaríamos em plena ideologia. Trata-se, pelo contrário, de compreender a própria origem das relações sociais, de suas diferenças temporais, em uma palavra, de encará-las como processos históricos". (13)

         Como se pode perceber mais claramente aqui, a nossa autora reduz a ideologia a uma postura epistemológica que, produzida pela divisão do trabalho e pelas relações de dominação como modo de sua reprodução, toma os fenômenos sociais de forma idealista, como lógica que se impõe pela imediaticidade das experiências e dos fatos. Tal fenômeno decorre, em última análise, da alienação, ou seja, das condições reais de existência social dos homens que não lhes aparecem como produzidas por eles, mas, ao contrário, eles se percebem produzidos por tais condições e atribuem a origem da vida social a forças ignoradas. Para a autora, portanto, a necessidade da ideologia nasce da divisão da sociedade em classes, precisamente o que a ideologia visa ocultar, cristalizando em "verdades" a imagem invertida do real que nasce das relações de dominação, visando torná-las autônomas e legítimas. Temos agora, à primeira vista, o círculo de uma reprodução eterna do capitalismo, já que a ideologia é unívoca, isto é, só existe como dominação e para a dominação. Como sair dele? A teoria ou o "saber real" pode superar a ideologia, romper o círculo vicioso, se tiver consciência da historicidade de seu objeto, ou seja, da sociedade como processo histórico. O problema parece resolvido com a intervenção da teoria. Não obstante, embora tenha sido aumentado o percurso, voltamos ao mesmo ponto. Estamos aqui diante de algo muito semelhante ao velho argumento teológico da "causa primeira": se tudo deve ter uma causa, o universo necessariamente implica numa causa anterior a ele, que só pode ter sido Deus. Diante do que um lógico e ateu como Bertrand Russel contestava: se a premissa de que tudo deve ter uma causa é realmente universal, isso deve necessariamente incluir Deus. Marilena Chauí raciocina assim: se todo o real é histórico, é necessário que algo deixe de ser histórico para apanhar o real em sua dimensão de historicidade. No entanto, a consciência da historicidade é ainda uma consciência histórica. À maneira de Bertrand Russel poderíamos dizer: se tudo deve ter uma história, a premissa alcança também a "teoria", isto é, o "Deus" da Marilena Chauí. Assim, o marxismo não tem uma dimensão supra-histórica, mas "supra-burguesa", o que é muito diferente, já que a relação crítica com seu objeto reafirma exatamente sua historicidade como conhecimento teórico. A teoria pode ser mais ampla que seu objeto, fazendo então a história e constituindo-se como historicidade nesse fazer sempre inconcluso.

         No esquema da autora, a ideologia nasce de relações sociais historicamente determinadas apenas para reproduzi-las. E a teoria, por sua missão crítica inerente, desce do Olimpo para des-nudar as relações alienadas. O proletariado, que por uma estranha coincidência parece ser o beneficiário dessa revelação, apenas estabelece uma relação com a teoria para ser iluminado e, ao mesmo tempo, para mostrar a impotência da teoria se afastada da prática. A rigor, no âmago dessa "dialética" abstrata está a presunção do intelectual pequeno-burguês jactando-se do seu saber e oferecendo seus préstimos teóricos ao proletariado, desde que este reconheça sua nulidade como classe dirigente, abdicando suas pretensões particulares de poder e aceitando a tutela de uma "teoria" que está acima de seu "mesquinho instinto de classe". O que está por trás dessa concepção, camuflada por frases radicais e apelos críticos, é a tutela do proletariado pelo "socialismo de cátedra" que, como sugere a expressão, só é realizável efetivamente como tese de mestrado ou doutorado. Trata-se de uma vulgar pedagogia, na qual o proletariado entra apenas como cobaia para que o "saber real" demonstre toda sua grandeza, pois os mestres e educandos não trocam nunca seus papéis.

         Nesse contexto teórico, a ditadura do proletariado, isto é, o poder de classe dos operários que tem na ideologia uma de suas determinações fundamentais, torna-se perfeitamente dispensável. Algo tão "absurdo" quanto a ideologia revolucionária do proletariado. Realmente, se a consciência de classe inexiste como possibilidade revolucionária, os operários combativos devem tornar-se pupilos de quaisquer intelectuais simpatizantes do socialismo que manifestem, com a devida sinuosidade, uma "visão crítica" em relação ao capitalismo.

         É interessante observar a coincidência: a filosofia oficial da União Soviética, fiel às suas origens stalinistas, considera a "ideologia revolucionária" como um mero derivado da "doutrina científica" do marxismo, o que efetivamente serve para legitimar a manipulação política e ideológica das massas; o althusserianismo, fiel às mesmas premissas teóricas, afirma que a ideologia é o oposto da ciência e só se pode falar em "ideologia revolucionária" como luta da ciência contra as ideologias; o renegado Colleti é contra "todas" as ideologias, inclusive o marxismo; filósofos e epistemólogos burgueses como Popper, Bachelard, Mário Bunge, etc., convergem num ponto básico: a ideologia é considerada como um desagradável resíduo que se refugia nos escaninhos da produção científica. Todos, enfim, se negam a reconhecer na ideologia mais do que um epifenômeno da ciência, seja fazendo sua apologia, como no caso do stalinismo, seja denunciando-a como inimiga do saber objetivo e científico. E isso, certamente, não ocorre por acaso. A ideologia é um sistema de idéias mais ou menos delineado que implica num compromisso do sujeito diante da totalidade do mundo histórico-social, e não apenas num compromisso epistemológico diante dos objetos reconhecidos em sua positividade. A ideologia implica numa postura ativa da consciência frente à realidade histórica do mundo, envolvendo negação ou afirmação desse mundo de parte do sujeito consciente. Negar a possibilidade da ideologia revolucionária é posicionar-se, ontologicamente, como objeto entre os objetos ou, na melhor das hipóteses, acreditar que a objetividade - por meio da teoria - pode desvelar sua "verdade" independente da postura efetivamente revolucionária do sujeito, a qual exige uma atividade prático-crítica.

         A ideologia dominante no capitalismo visa, obviamente, reproduzir as relações burguesas. A ideologia revolucionária aponta para a destruição do capitalismo e a construção de uma sociedade sem exploradores ou opressores. Dizer que toda a ideologia é, necessariamente, um instrumento de dominação significa pensar a luta de classes na forma de uma paródia na qual se enfrentam, não o proletariado e a burguesia, mas uma suposta sabedoria teórica (que é "crítica" por sua natureza) e a alienação dos dominados que, enquanto não tiverem acesso ao "saber real" produzido pela Marilena Chauí e seus confrades acadêmicos, estarão condenados a reproduzir eternamente a própria dominação no fogo brando de sua consciência invertida. Desse modo, a profecia não poderia ser outra: "Porém, o que faz da ideologia uma força quase impossível de ser destruída é o fato de que a dominação real é justamente aquilo que a ideologia tem por finalidade ocultar". (14) A única solução para o impasse brota tão sutil como um raio no céu azul: "Portanto, enquanto a teoria não mostrar o significado da prática imediata dos homens, enquanto a experiência comum da vida for mantida sem crítica e sem pensamento, a ideologia se manterá". (15) Agora, meio envergonhada de seu verdadeiro nome - "Teoria" - fica explícito o sentido preciso do que foi chamado de "saber real", a varinha de condão da transformação social e da liberdade que transforma o príncipe encantado da ideologia num sapo.

         Mas para que o desencantamento se realize de modo prático é preciso esperar que as amplas massas assimilem uma certa visão teórica da realidade. E como, de fato, isso é impossível de acontecer antes da revolução, a ideologia "é quase impossível de remover". Pode deduzir-se, então, que a transformação social fica adiada até que as massas possam se matricular na universidade.

         Não há dúvida que a ideologia burguesa cumpre a função de reproduzir e legitimar as relações capitalistas. E também não há dúvida que uma parcela do proletariado e, em menor proporção, de outras camadas oprimidas, pode e deve assimilar uma razoável visão teórica da realidade social e histórica. Mas, na melhor das hipóteses, poderão ser contados em dezenas ou centenas de milhares e nunca em milhões. Portanto, uma parcela relativamente pequena das massas exploradas, que deverá constituir-se, exatamente, na vanguarda revolucionária. A grande maioria assumirá uma ideologia revolucionária e não uma consciência propriamente teórica. Nos momentos de crise revolucionária, as grandes massas passam a adotar, embora de modo impreciso em sua configuração lógica e abstrata, um novo sistema de valores políticos, jurídicos, éticos e filosóficos, na forma de um projeto de poder que apresenta duas referências nítidas: a destruição do existente e a construção de uma nova realidade, a qual vai sendo construída na relação dinâmica entre a experiência cotidiana e a direção política de sua vanguarda. É precisamente esse instinto de classe, essa energia revolucionária, essa consciência rebelde que se incorpora ao senso comum nos momentos de crise revolucionária, que faz das massas sujeitos da história mesmo sem a assimilação abstrata da teoria. Ocorre uma "inversão" na "consciência invertida" do senso comum, ou seja, na ideologia espontânea dos dominados, embora não no sentido proposto pela autora, em que a teoria "revela" a gênese histórico-social das idéias e das próprias condições que as produziram como alienação. Mas no sentido em que a contradição entre a particularidade da ideologia espontânea do proletariado e o sistema global de valores dominantes, que legitimam a exploração, acaba gerando uma explosão na consciência dos dominados que, nesse momento, se autonomiza em relação a certos valores fundamentais da ideologia burguesa. A particularidade da consciência proletária se projeta como reivindicação universal de poder na sociedade.

         Marilena Chauí diz que "a transformação das idéias não depende delas mesmas, de alguma força interna que teriam (como na história do Espírito hegeliano, ou como nas etapas do Espírito Humano de August Comte), mas depende da transformação das relações econômicas e políticas". (16) Portanto, a ideologia serve para legitimar e reproduzir as relações econômicas e políticas de dominação. Por outro lado, a transformação das idéias depende da transformação das relações econômicas e políticas. Novamente o impasse. Para resolvê-lo, a autora pede socorro a Althusser: "Com isto, podemos perceber que há entre a ideologia e a estrutura de uma sociedade aquilo que Louis Althusser chama de 'contemporaneidade' ou correspondência temporal entre estrutura social e idéias ideológicas. Compreendemos também como as idéias não ideológicas (aquelas que estão empenhadas em compreender a gênese ou história real) são capazes de ultrapassar o tempo em que são pensadas". (17)

         Embora essa questão já tenha sido discutida, é importante que voltemos um pouco a ela. Se, efetivamente, são as idéias "não ideológicas" que superam a ideologia, como podemos pensar, por exemplo, a passagem do feudalismo ao capitalismo? Há duas alternativas. A primeira é que as concepções burguesas eram, quando revolucionárias, "não ideológicas" e, posteriormente, transformaram-se em ideologia. Ora, mesmo sendo mais progressista que a ideologia feudal, a ideologia dos capitalistas que lutavam contra o feudalismo sempre foi ideologia burguesa. Embora se colocasse na perspectiva do desenvolvimento das forças produtivas, sempre teve a marca de seus interesses de classe exploradora. A segunda hipótese, é que apesar de estar envolvida numa perspectiva ideológica, as concepções burguesas continham um "saber real" superior e menos condicionado pela ideologia que o saber feudal. No entanto, esta hipótese é igualmente inaceitável, pois o "saber" mais concreto da burguesia não surgiu apesar da ideologia burguesa, mas graças a ela. Foi a perspectiva de classe da burguesia, seus interesses particulares, que propiciaram sua postura cientificista e progressista. Em síntese, por mais estranho que possa parecer aos olhos de Marilena Chauí, foram as idéias "ideológicas" da burguesia que propiciaram, em todos os campos, um enorme desenvolvimento do que ela chama de "idéias não ideológicas". O mesmo ocorre com o proletariado. São suas "idéias ideológicas" (de classe) que podem, articulando-se dialéticamente com a teoria revolucionária, transformar-se em práxis revolucionária e fornecer as condições para um desenvolvimento ainda maior do conhecimento teórico. Somente a ideologia revolucionária do proletariado torna possível uma verdadeira ampliação do "saber real" sobre a história e a sociedade, precisamente em função do projeto de concreta universalização humana que ele propõe.

         Antes de concluir, um breve comentário sobre as "fontes". As reflexões de Marilena Chauí, ao apresentar a "concepção marxista de ideologia", estão baseadas principalmente na Ideologia Alemã. Nesse aspecto, a autocrítica de Althusser é bastante radical e poderia ter inspirado nossa autora. Ele diz o seguinte:

         "No entanto, e mesmo nos equívocos da Ideologia Alemã, esse disfarce do erro em ideologia podia ter, e tinha de fato, outro sentido. A ideologia não era mais do que o 'nome' marxista do erro. Mas, desde a Ideologia Alemã, que praticava ela própria essa redução, sentia-se bem que por trás da oposição da 'verdade positiva', à ilusão ideológica, qualquer outra ruptura, não somente teórica, mas política e ideológica, e de outra envergadura, estava prestes a se consumar. Essa ruptura era a ruptura de Marx, não com a ideologia em geral e não somente com as concepções ideológicas da história existentes, mas com a ideologia burguesa, com a concepção do mundo burguês dominante no poder, e que reinava não somente sobre as práticas sociais, mas também nas ideologias práticas e teóricas, na Filosofia e até nas obras de Economia Política e do socialismo utópico." (18)

         O marxismo, na verdade, não tem uma teoria da ideologia. Qualquer "leitura' que tente encontrar, em estilo hermenêutico, essa teoria, está inapelavelmente condenada ao fracasso. As duas interpretações que se pode fazer desse conceito nos textos de Marx são insuficientes. Uma é a que fez Althusser e faz Marilena Chauí, a partir da Ideologia Alemã, como "falsa consciência", cuja função exclusiva é reproduzir as relações de dominação. A outra é como conceito "positivo", enquanto "sistema de concepções políticas, jurídicas, éticas e filosóficas". Trata-se, em nosso entender, de construir um conceito teórico de ideologia, tarefa que, obviamente, não nos propomos neste texto.

         O que pretendemos afirmar é que a oposição entre "saber real" (ou "teoria" ou "idéias não ideológicas" ou "ciência" - palavra que Marilena não ousa pronunciar) e ideologia é por demais simplista e traz sérias conseqüências políticas e teóricas. No final das contas, implica um elogio da "Teoria" como crítica transcendente e na diluição da classe operária como sujeito efetivo da revolução. E o que é pior, tende a substituir pelo pensamento acadêmico (no sentido que, em si mesmo, pretende ser "não ideológico") a concepção revolucionária do proletariado. Somente uma ideologia revolucionária pode oferecer uma perspectiva histórica e política para uma teoria revolucionária. Somente uma teoria que consiga atingir um conhecimento mais concreto do que o "saber" constrangido pela ideologia burguesa pode, em contrapartida, tornar conseqüente e revolucionária a ideologia espontânea do proletariado. A ideologia não é ciência nem o oposto da ciência. Não é teoria nem é, necessariamente, ilusão ou inversão do real. A ideologia não é necessariamente a legitimação e reprodução das relações de exploração e opressão, tampouco uma visão inevitavelmente "contemporânea" ou "transtemporal" em relação à uma sociedade considerada. A ideologia não é um epifenômeno, seja positivo ou negativo, em relação ao "saber" que desvenda a pura objetividade. Numa sociedade dividida em classes, como é o capitalismo, a ideologia é um ponto de vista de classe determinado. Ela é qualitativamente distinta do "saber real", "teórico" ou "científico", embora só possa existir em articulação dialética com ele. Uma articulação que, em relação à consciência das classes dominantes opressoras, tende, necessariamente, ao dilaceramento, constituindo-se numa síntese cada vez mais precária. Em relação às classes revolucionárias, especialmente ao proletariado, essa dialética oferece possibilidades de uma mútua produção e desenvolvimento harmônico.

         Exatamente esse ponto de vista de classe, essa ideologia proletária, que deve constituir, por dentro da teoria, a dimensão enérgica do marxismo para que ele se realize como práxis revolucionária, é o que falta para Marilena Chauí. Em que pese suas declaradas e reconhecidas boas intenções, ocorre um fenômeno que ela mesma aponta quando se refere ao papel político de certos intelectuais: se os trabalhadores decidirem destruir o poder burguês, "é possível que os intelectuais progressistas, sem o saber, passem para o lado da burguesia". (19) Só que isso ocorre desde já no terreno teórico e ideológico. Assim, a pergunta inicial que fizemos só pode ser respondida de uma maneira: Marilena Chauí, ao defender uma postura anti-ideológica na teoria, demonstra que ela mesma possui uma ideologia. No entanto, não se trata da ideologia revolucionária do proletariado, mas de uma ideologia que (utilizando-nos da distinção indicada no seu livro entre "oposição" e "contradição") está em oposição à ideologia burguesa, mas não em contradição antagônica com ela. Enfim, uma ideologia que recusa a perspectiva de classe da elaboração teórica, propondo um "saber real" sobre a sociedade e a história que, embora desempenhando uma função "crítica" ao desvendar a gênese objetiva da alienação, por seu conteúdo pretende estar acima dos interesses de classe. E se nem toda a ideologia legitima a opressão, aquela professada por Marilena Chauí cumpre academicamente essa tarefa.


Notas de Rodapé

1) CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia.
2) Ib., p.115
3) Ib., p. 80-1
4) Ib., p.81
5) Ib., p.81
6) Ib., p.81-2
7) Ib., p.82
8) ALTHUSSER, Louis.Resposta a John Lewis.
9) CHAUÍ, Marilena, Op. cit., p.104.
10) Ib., p. 86
11) Ib., p.10-11
12) Ib., p.16
13) Ib., p.19-20
14) Ib., p.87
15) Ib., p.86
16) Ib., p.119
17) Ib., p.119
18) ALTHUSSER, Louis. Op. cit., p.92
19) CHAUÍ, Marilena. Op. cit., p.96


Bibliografia

1) ALTHUSSER, Louis. Resposta a John Lewis/Elementos de Autocrítica: sustentação de tese em Amiens. Rio de Janeiro, Graal, 1978. (Col. Posições, 1)
2) CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 12. ed. São Paulo, Brasiliense, 1984. (Col. Primeiros Passos)


         Este texto foi publicado na revista TEORIA & POLÍTICA n° 7. São Paulo, Brasil Debates, 1985.