Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. Sobre o conceito de componês na ciência social brasileira. Florianópolis, UFSC, mimeo., 1984, 12 pp. [Texto datilografado da monografia elaborada por Adelmo Genro Filho para a disciplina "Sociedades Camponesas", do Curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Mestrado) da Universidade Federal de Santa Catarina, ministrada pelo professor Klaar A.A.W. Woortman e cursada no primeiro semestre de 1984.] [Ref.: T081]
Sobre o conceito de camponês
na ciência social brasileira

         Este trabalho pretende indicar, em traços gerais, alguns enfoques da ciência social no Brasil sobre o conceito de camponês. Ao delinear alguns parâmetros das discussões que têm sido travadas sobre esse tema em nosso país, e reconhecendo as imensas conseqüências políticas e sociais desse debate que é travado ainda em nossos dias, pressupõe que não se trata ainda de um assunto encerrado. Embora muitas "etapas" desse processo tenham sido definitivamente superadas, as grandes transformações econômicas, sociais e políticas que está atravessando nosso país nos últimos anos, nas quais milhões de homens, mulheres e crianças têm sido vítimas e ao mesmo tempo protagonistas de circunstâncias épicas e trágicas, demonstram com suficiente vigor que ‘a questão camponesa’ ainda não foi resolvida. E, além do mais, que não se trata de um problema simples. Certamente, será preciso mais do que uma espátula para abrir definitivamente os caminhos de equacionamento da questão agrária. Não obstante, cabe à teoria, se puder e tiver a coragem suficiente para fazê-lo, não só a função de compreender e explicar, mas também a de iluminar alternativas e, desse modo, armar a consciência dos que sofrem a lógica do capital mas se rebelam frente a esse destino. A fome, a expropriação de camponeses em nome da modernização, a expulsão dos posseiros em nome das leis ou das armas, o assassinato constante de lideranças do campo, os diversos movimentos de resistência, tudo isso não é alheio aos pesquisadores e teóricos. Portanto, o breve levantamento que ora fazemos, em que pese suas limitações óbvias, situa-se na perspectiva dessa preocupação.

         Na década de 60, a discussão sobre os camponeses no Brasil era, sobretudo, uma abordagem "indireta". Situava-se no contexto de um debate mais amplo sobre o caráter da sociedade brasileira. Ao invés de estudos e pesquisas particulares sobre o tema, o camponês era o simples elo de uma cadeia teórica que procurava, genericamente, decifrar nossa formação social e, a partir daí, deduzir os rumos de uma luta pela transformação social. E, se mais tarde, as universidades começaram a produzir em série trabalhos às vezes enfadonhos e inócuos chamados "estudos de comunidade", caindo no extremo oposto de um empirismo capaz de ver as arvores mas incapaz de perceber a floresta, é bem verdade que a década de 60 foi pródiga em abstrações e generalizações carentes de dados e pesquisas de campo.

         Um dos pólos da discussão travada nessa década foi Nelson Werneck Sodré, autor de inúmeras obras que hoje, de uma forma ou de outra, são clássicas na historiografia e sociologia brasileira. Segundo sua análise da sociedade "o principal freio ao desenvolvimento industrial do país - à generalização das relações capitalistas de produção e à expansão do mercado interno - reside no latifúndio que, por sua vinculação com o capital estrangeiro é também inimigo da Nação. Em outros termos, apesar do ‘aparelho de Estado, em nosso país, estar na posse da burguesia’ (citado de Nelson Werneck - A.G.F.) o capitalismo nacional não se desenvolve mais porque existe uma camada social no campo, constituída pelos latifundiários ( sustentáculo de relações "coloniais", ‘feudais’; ‘semi-feudais’etc.) que impede o pleno desenvolvimento das relações capitalistas e o aumento da produtividade de trabalho."(1)

         No contexto dessa análise o camponês aparecia, fundamentalmente, como uma transposição teórica do camponês feudal da Idade Média. Uma camada social que, quase em sua totalidade, era explorada e oprimida pelo latifúndio e estava apartada das relações capitalistas de produção. Observemos a descrição feita pelo próprio Sodré:

         "O vasto mundo da servidão no campo é um espetáculo dos nossos dias, no Brasil. Tem suas raízes ancoradas longe, no tempo, começou com a própria colonização. Não surgiu de um processo semelhante ao que ocorreu na Europa quando, passando pelo colonato, emergiu das ruínas do escravismo romano, fundindo a deterioração deste com a decomposição da comunidade gentílica dos bárbaros. Teve outras origens aqui; ou apareceu desde o primeiro momento, ou decorreu da estagnação da produção escravista. De uma ou de outra forma ampliou sua dominação e chegou até nossos dias, entravando o processo ascensional do capitalismo em nosso país."(2)

         O aspecto principal que se pode extrair das concepções do autor, mesmo que ele não nos ofereça uma conceituação precisa de camponês, é que ele se constitui a partir de relações de produção que são historicamente anteriores e, além disso, que são estruturalmente exteriores ao modo de produção capitalista. A filiação teórica do marxismo de Nelson Wernek Sodré tem, por um lado, a marca da "II Internacional" (notadamente Kautsky), que via a história universal como uma sucessão ordenada de modos de produção enquanto conceitos puros e, em cada país, a reprodução nacional dessa seqüência. Por outro lado, do ponto de vista político, aborda a realidade pelo viés stalinista, pois defende a existência de uma etapa "anti-latifundiária e anti-imperialista" na revolução brasileira, na qual seria necessária uma aliança política com a chamada "burguesia nacional" para a independência efetiva do país e ampliação do mercado interno.

         Na mesma linha caminham as análises de Alberto Passos Guimarães e M. Vinhas. O primeiro, autor do célebre "Quatro Séculos de Latifúndio", num livro relativamente recente ainda afirma:

         "O Brasil atingiu demasiado tarde o limiar da revolução agrícola, sem que se possa firmar, ainda agora em nossos dias, que nela tenha penetrado profunda e extensamente. Nosso país, incorrendo numa inversão de ordem cronológica seguida pela maioria das nações, começou a transpor aquele limiar não antes mas após haver dado alguns dos passos iniciais em direção a revolução industrial. Essa particularidade histórica é mais um dos significativos testemunhos da rigidez do sistema latifundiário brasileiro e de sua obstinada resistência a todas as mudanças capazes de abalar sua continuidade estrutural."(3)

         Nessa obra, o autor é obrigado a falar que, hoje, o perfil da agricultura brasileira está sendo moldado pela estratégia da "modernização conservadora", isto é, modernização sem mudança na "estrutura arcáica". Porém, a tese da "rigidez" do sistema latifundiário no Brasil, avesso ao desenvolvimento predominante de relações de trabalho "capitalistas ou semicapitalistas", ainda percorre, subjacente, sua argumentação teórica. A conseqüência dessa avaliação é que o desenvolvimento econômico do país exige, como condição ao seu pleno florescimento, um "projeto nacional de reforma agrária" concebido apenas em termos tradicionais da distribuição parcelar da terra. Essa proposta tem base no fato de que, segundo o referido autor, " os números possibilitam formular a hipótese de que estaria havendo o acamponezamento da agricultura brasileira, isto é, a transformação dos estabelecimentos agropecuários, na sua grande maioria, em unidades produtivas semelhantes ao sistema de organização camponesa, baseados, preponderantemente, no trabalho dos membros da família".(4)

         Em 1966, surge o livro de Caio Prado Júnior "A Revolução Brasileira", que passa a constituir o outro pólo do debate. Para ele, seria um equívoco afirmar a existência de relações feudais na sociedade brasileira, pois a abordagem de Sodré implicaria numa transposição mecânica das teses clássicas de Marx sobre os modos de produção as quais tiveram como referência as sociedades européias. As relações sociais de produção que imperam no Brasil de modo predominante, contestava Caio Prado, são relações capitalistas. O homem do campo brasileiro é, em sua grande maioria, um trabalhador assalariado, muito embora suas verdadeiras relações de trabalho nem sempre estejam diretamente explicitadas. "Se não se pode negar a propriedade da crítica de Caio Prado Jr. à análise ‘ortodoxa’ dos estágios sucessivos, e a riqueza de sua abordagem da agricultura brasileira, parece que ele exagerou em analisá-las apenas em termos de relações capitalistas. Mesmo mostrando a contento a inexistência de relações feudais, Caio Prado Jr. acaba reduzindo as inúmeras relações de produção pré-capitalistas, abundantes na agricultura brasileira, à relações capitalistas. Na verdade, fica difícil aceitar que relações, por exemplo, de parceria, onde o trabalhador fica com uma parte da sua produção e, portanto, recebe ‘in natura’, sejam praticamente a mesma coisa que o trabalho assalariado."(5)

         Se Werneck Sodré definia abstratamente a sociedade brasileira a partir de uma visão mecânica da evolução dos modos de produção, caracterizando-a como neocolonial e semifeudal, Caio Prado, não menos abstratamente, definia a totalidade das relações sociais tomando como referência exclusiva a relação econômica dominante. Na verdade, ele realiza uma inversão na postura de Sodré, mas utilizando-se igualmente de conceitos genéricos que não são capazes de apreender a riqueza contraditória da realidade. "O trabalhador livre de hoje se encontra, tanto quanto seu antecessor escravo, inteiramente submetido na sua atividade produtiva à direção do proprietário que é o verdadeiro e único ocupante propriamente da terra e empresário da produção, na qual o trabalhador não figura senão como força de trabalho a serviço do proprietário e não se liga a ela senão por esse esforço que cede a seu empregador. Não se trata assim, na acepção própria da palavra, de um camponês."(6). No entanto, como ressalva Maria de Nazaré, ele não nega a existência de camponeses na agricultura brasileira, mas sua posição a respeito é de que se trata de "um setor residual da nossa economia".(7)

         É interessante observar que, no esquema de Sodré, o latifúndio representa um impecilho ao desenvolvimento das relações capitalistas, mantendo, até mesmo, contradições antagônicas com a burguesia nacional. Por seu turno, na perspectiva teórica de Caio Prado, o latifúndio é um anacronismo que tende, naturalmente, a ser superado pelo desenvolvimento espontâneo de modo de produção capitalista pensado também em termos de um conceito puro.

         "Assim, - diz Caio Prado Jr. - de um modo geral e em diferentes setores do país, a fragmentação da propriedade fundiária rural se vai operando. E esse desenvolvimento da pequena propriedade já começa em nossos dias a fazer sentir seus efeitos econômicos... Como antítese que é da grande, seu progresso, difícil, lento, mas seguro, representa um golpe profundo desferido na estrutura tradicional do Brasil." (8)

         A abordagem de Caio Prado implica em certas conseqüências que devem ser referidas - 1) a negação absoluta da luta pela "reforma agrária" enquanto luta pela divisão da terra, apontando para as reivindicações de natureza tipicamente trabalhistas como mais importantes no campo; 2) redução a uma expressão insignificante do camponês propriamente dito, ou seja, leva a desconhecer a importância econômica e social dos largos contingentes de camponeses que possuem alguma forma de acesso à terra, realizando um trabalho de caráter familiar; 3) finalmente, leva a perceber o camponês como "uma espécie em extinção" e, portanto, excluindo da análise milhões de homens que lutam pela terra e, através de várias estratégias, se reproduzem como camponeses na própria relação com o capital, e até aumentam de número em determinadas regiões.

         Um do importante passo em direção a uma análise mais concreta de nossa sociedade, colocando certas premissas para discutir noutro patamar o problema camponês (mesmo sem abordar diretamente o assunto), foi dado com o trabalho de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependência e Desenvolvimento na América Latina escrito entre 1966 e 76."Cardoso e Faletto demonstraram ter uma visão mais aguçada do que seus contemporâneos em relação às transformações que estavam ocorrendo em certos países da América Latina, não somente ao definir o ‘novo caráter da dependência’, como também ao ir além das teses subconsumistas. Eles se deram conta de que o capitalismo poderia se desenvolver nas economias latino-americanas mesmo com concentração de renda, pois a realização ou venda das mercadorias depende, em grande medida, do consumo das próprias empresas capitalistas."(9) De fato, o que nos importa aqui, é que o pressuposto teórico utilizado por Fernando Henrique Cardoso, ainda de inspiração marxista, teve o mérito de "revolucionar" toda uma perspectiva de análise que vigorava entre os estudiosos da questão social. No quadro dessa nova perspectiva existia, potencialmente, um novo modo de conceber inclusive a questão camponesa. Aliás, o próprio autor fornece explicitamente o novo enfoque teórico que deveria ser feito a partir das categorias marxistas, oferecendo pressupostos inclusive para a crítica de certas posições que procuram lidar com uma matriz baseada numa suposta "combinação de modos de produção". Sem dúvida, deixando de lado avaliação das propostas políticas "democratistas" que extraía de suas premissas, as reflexões de Cardoso significaram um novo patamar para a consideração das relações sociais no Brasil.

         " Entretanto, a escravidão e a servidão repostas como necessárias para a produção em larga escala numa fase do desenvolvimento do capitalismo e para a comercialização no mercado internacional, - acentuava Cardoso - tem em comum com a escravidão antiga e com a servidão feudal apenas as formas. Estas, como anotou Hobsbawm em seu percucente ensaio introdutório às Formas que precedem à produção capitalista de Marx, são necessariamente limitadas à medida em que combinam relações sociais básicas e como se combinam abstratamente (enfoque tipicamente formalista que leva, outra vez, às já referidas matrizes, ao estilo Balibar), mas como são ‘inventadas’ e ‘reinventadas’ em contextos específicos".(10)

         A crítica de Cardoso parece servir perfeitamente ao trabalho de Moacir Palmeira, cuja tese defendida em 1971, em Paris (embora não tenha sido publicada), foi uma das primeiras abordagens nesse sentido. "Moacir Palmeira introduz na análise, os conceitos de modo de produção e de formação social, inspirando-se em autores franceses da atualidade. O verdadeiro problema, diz ele, é o de entender o que tornou possível o latifúndio, enquanto forma de organização econômica e social, questão que julga não respondida, nem mesmo colocada, pelas diversas correntes que analisa. Em suas próprias palavras, trata-se, fundamentalmente de saber ' que modo de produção ou que articulação de modos de produção permitiu a emergência do latifúndio'."(11) Para ele, trata-se efetivamente de uma produção de uma "combinação" de modos de produção o que condicionou o latifúndio brasileiro e a especificidade de suas relações sociais, não podendo ser reduzido o problema ao modo de produção capitalista ou modo de produção feudal.

         Lygia Sigaud também considera, em sua tese sobre a ideologia dos trabalhadores rurais da zona da mata de Pernambuco (A nação dos homens) - referida também por Maria de Nazaré - a "plantation açucareira" como uma formação social e os trabalhadores rurais, como uma classe social desta formação. O pressuposto geral dessa abordagem, resguardadas as especificidades e distinções, é o entendimento da "formação social" como uma particularidade na qual se combinam determinados modos de produção. Para Garcia Júnior, em sua tese defendida em 1975 (Terra de Trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores), o campesinato é considerado como um modo de produção articulado e subordinado ao capitalismo. Para ele, o importante é considerar que a estrutura da produção camponesa é baseada no trabalho familiar, pois tanto a unidade de produção quanto a de consumo são constituídas por regras de parentesco e, além disso, a própria divisão do trabalho é de natureza familiar. Mas como isso não implica em nenhuma forma particular de circulação do produto, nem que a circulação seja diretamente da unidade de produção para a unidade consumo, Raul Garcia Júnior adverte que não se trata de um modo de produção em sentido estrito, mas, no estilo de Tepicht, como uma unidade precisa entre forças produtivas e relações de produção.(12)

         Otávio Velho, igualmente, considera o campesinato como um modo de produção, mas necessariamente subordinado, caracterizando os camponeses como uma "classe política", pois constituiria um grupo que não se opõe a outro no próprio processo de produção - tal como as classes em Marx - mas a outro grupo em determinado nível de relações que é externo ao processo de produção camponesa.

         "Na literatura científica, - diz Otávio Velho - e mais ainda na literatura política, tem-se utilizado essa expressão (camponês - A.G.F.) de uma forma um tanto indiscriminada. Contra isso levantou-se Caio Prado Jr., argumentando a favor da utilização mais precisa da noção de camponês, reservada, então, para designar exclusivamente o pequeno agricultor que é empresário de sua própria produção. Não se trata absolutamente, como à primeira vista pode parecer, como uma questão de importância menor. Por de trás dessa discussão está a idéia de que o abuso da noção de camponês deve-se a uma série de ‘desvios’, que vão desde a subestimação da penetração do capitalismo no campo brasileira, levando à proletarização rural, até a pregação mais ou menos ingênua de projetos de reforma agrária em que a pequena propriedade privilegiada e considerada um ideal a ser assegurado."(13)

         Otávio Velho lembra que o conceito de camponês referia-se originalmente a um fenômeno bem localizado em termos históricos e estruturais, não tendo sido inclusive um termo criado pelos cientistas sociais, mas apenas foi apropriado por estes. O conceito, em nossos dias, tornou-se o lugar de uma polêmica teórica, tendo em vista as transformações econômicas e sociais que complexificaram grandemente a situação. Não obstante, para Velho, o primeiro parâmetro que deve, inevitavelmente ser observada para que possa evitar o puro arbítrio, é a dicotomia apontada por Caio Prado entre camponês e proletário rural. Mas adverte, após relatar uma série de estudos concretos, que não se pode simplificar a questão em termos de uma oposição pura e simples entre camponeses e proletários mas como " um continuum com dois casos limites entre os quais teriam de ser colocadas todas as situações em que parceiros, arrendadores etc. podem ser encontrados em nosso interior em graus diversos de autonomia de trabalho."(14)

         Uma das vertentes de análise que talvez tenha sido quantitativamente dominante nos últimos anos é aquela defendida por Francisco de Oliveira, que busca entender a dinâmica do desenvolvimento do capitalismo em nosso país a partir de sua abordagem concreta, na qual as relações pré-capitalistas não são "resíduos" ou sobrevivências, mas constituem parte articulada à lógica do processo. Num dos pontos extremos dessa perspectiva esta Octávio Ianni, que percebe, em geral, a grande empresa agropecuária como "personagem articulador" da economia com as comunidades rurais. E vê delineando-se, progressivamente, os traços da burguesia (fazendeiros, empresários, empresas) e do proletariado (trabalhadores do campo, vaqueiros, peões) como processo mais geral e inexorável da agricultura no Brasil.(15) Porém, com uma investigação mais nuançada e uma preocupação maior com a especificidade do camponês, está José de Souza Martins. Em seu livro "O Cativeiro da Terra" ele afirma que "sendo o capital um processo, ele engendra e reproduz relações não capitalistas de produção".(16) Segundo Maria de Nazaré, o referido autor (no seu trabalho Modernização e problema agrário no Estado de São Paulo) desenvolve sua análise no sentido de mostrar como o processo de acumulação desestimula o florescimento de padrões empresariais no setor agrícola.(...) A difusão da vocação empresarial - afirma Martins, em outro texto ( Adoção de Práticas Agrícolas e tensões sociais - A.G.F.) - encontra barreiras na própria expansão da formação capitalista, nos elos periféricos da corrente produzida pela expropriação sucessiva e aos quais são transferidas as suas conseqüências ' irracionais', sob a modalidade de vivência da insuficiência econômica, mediante o aparecimento de categorias de produtores rurais não tipicamente capitalistas".(17)

         Tentado fazer um balanço crítico das investigações e conceituações anteriores, Maria de Nazaré faz uma síntese apresentando dois pontos que, do nosso ponto de vista, podem ser aceitos plenamente. A seguir, faremos um relato desses pontos.

         O primeiro é que, apesar da diversidade, há um pressuposto teórico comum de que o capitalismo significa, necessariamente, a expropriação total de todos os produtores diretos. Assim, a percepção de que existem, de fato, trabalhadores no campo que mantém vinculação com suas condições de trabalho levaria na direção de três equívocos:

         1. A negação do capitalismo, como fazem os defensores da tese feudalista;

         2. negação da base familiar da organização do trabalho, como condição para manter o argumento da natureza capitalista da sociedade, a exemplo da concepção de Caio Prado Jr.;

         3. a referência à "algo" (modo, religião, forma, etc.) pré-capitalista, não capitalista ou não especificamente capitalista, quer quando isso seria produzido pela fraqueza do capital, quer pelo próprio modo de operação do capital.

         O segundo ponto é que, o conceito de camponês utilizado é, na maioria dos casos, um conceito de camponês feudal, seja para afirmar sua existência, seja para negá-la.

         O livro recente de José Vicente Tavares dos Santos, "Colonos do Vinho", insere-se claramente no enfoque criticado por Maria de Nazaré no ponto "3", pois segue os passos de José de Souza Martins. Vejamos, para efeito de ilustração, o conceito defendido por Tavares:

         "No modo de produção capitalista, constituem-se uma classe de trabalhadores expropriados de seus meios de vida e produção e uma classe de proprietários do capital que vão se apropriar de mais valia gerada pelos trabalhadores no processo produtivo. No caso do camponês, a apropriação do trabalho excedente do produtor direto não se verifica no interior do processo de trabalho mas é realizada pelo capital, mediante um conjunto de determinações que subordinam o processo de trabalho camponês. Contudo, ainda que o capital domine e determine este processo e dele extraia continuamente o trabalho excedente, nem por isso o desestrutura."(18)

         Ora, afirmar, como Tavares, que a relação social capitalista pressupõe sempre "a separação entre o trabalhador e as condições objetivas da produção" (19), implica em supor que o capital, por sua natureza intrínseca, proletariza toda a força de trabalho, inclusive na agricultura. Trata-se, sem dúvida, de uma compreensão a-histórica do capital, como se ele fosse apenas uma entidade lógica e não uma relação social concreta que se constitui objetivamente. Além disso, Tavares confunde coisas que devem ser distinguidas analiticamente: as relações sociais de produção das relações técnicas e particulares no trabalho.

         As relações sociais de produção capitalistas envolvem, de um lado a relação mercantil e a separação dos trabalhadores dos meios de trabalho como dominantes na sociedade. As relações de trabalho, por sua vez, podem ser capitalistas por sua inserção nessa totalidade sem serem baseadas na separação formal entre trabalhadores e meios de produção.

         Portanto, as hipóteses alinhavadas por Maria de Nazaré, que indicamos a seguir, parecem colocar a questão dos camponeses de modo correto:

         "a- sob a dominação do modo de produção capitalista, o campesinato ocupa um espaço criado pelo próprio capital, em seu funcionamento no setor agrícola;

         b- este espaço é o de um trabalhador para o capital, distinto do proletariado(...)

         c- por conseguinte, o campesinato ao ocupar este espaço se transforma qualitativamente; o conceito de camponês pré-capitalista ou não capitalista torna-se inadequado para aprender esta nova realidade social e mesmo a deforma profundamente;

         d- a reprodução do campesinato, nestas condições, depende, não necessariamente do grau de desenvolvimento do capitalismo, mas fundamentalmente, das condições históricas do funcionamento do capital..."(20)

         No entanto, em que pese a importância das premissas teóricas situadas pela autora, seu trabalho, no conjunto, apresenta algumas deficiências que precisam ser indicadas, para que não se passe a (falsa) idéia que Maria de Nazaré resolveu todas as questões pendentes sobre a problemática do camponês.

         1. Em nenhum momento a autora apresenta uma definição mais ou menos precisa de "camponês", pelo menos de modo explícito;

         2. Ela aborda muito mais a lógica do capital do que a lógica que define o "ser camponês" específico no interior do processo, não parecendo perceber nitidamente essa particularidade do "sujeito histórico" camponês que, em última análise, é imprescindível para definir propostas políticas eficazes e coerentes;

         3. ao construir implicitamente o conceito de camponês como "pobre" ela tende ao fazer dele um "agente político coletivo" (uma classe?), omitindo as contradições e o próprio fato da acumulação em certas camadas do campesinato.

         Ao fim, de nossa parte, preferimos arriscar algumas conclusões provisórias ou hipóteses, porém todas de ordem negativa, deixando em aberto qualquer definição positiva. O campesinato, pelo menos no sentido indicado por Marx, não constitui efetivamente uma "classe social". O campesinato não implica, tampouco, num "modo de produção" no sentido de uma articulação histórica entre forças produtivas e relações de produção, tal como pensava A. Chayanow. Nem pode ser aceito integralmente o modelo de Mendras, o qual percebe o camponês como um ser histórico, mas, partindo de uma descrição empírica que vai "do ano mil ao ano dois mil" para construir seu modelo, não distingue especificamente o camponês inserido estruturalmente no modo de produção capitalista.(21)

         O camponês, nesse sentido, muito menos é uma sobrevivência feudal ou semi-feudal que, inexoravelmente e em breve, será varrido pela lógica do capital. Os camponeses, e isso se pode dizer, são homens, mulheres, crianças e velhos que trabalham a terra com uma divisão familiar do trabalho, na sua maioria violentamente explorados em países como o nosso. E, através de várias estratégias, reproduzem suas condições de existência, em que pese suas relações com a sociedade capitalista envolvente. São, de fato, trabalhadores para o capital. Mas, o que não pode ser esquecido ou reduzido às outras dimensões, sejam econômicas ou sociais, é que os camponeses são sujeitos ativos e devem ser pensados como tais:

         "O campesinato desenvolve um conhecimento, ou saber, que lhe é próprio, o que nos leva a propor que sua reprodução depende desse saber tanto quanto das relações de produção em que se insere; e que a reprodução dessas relações de produção depende da operacionalização do saber que rege o processo de trabalho, ao mesmo tempo que são, elas mesmas, condições para essa operacionalização." (22)

         REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

         (1) MANTEGA, Guido e MORAES, Maria. Cadernos do Presente - 1. São Paulo, Editora Aparte S.A., 1978, p. 11.

         (2) SODRÉ, NELSON WERNECK. História da burguesia brasileira. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira S.A., 1967, p. 35.

         (3) GUIMARÃES, Alberto Passos. A crise agrária. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra S.A., 1979, p. 61.

         (4) Idem p. 250.

         (5) MANTEGA e MORAES, op. cit., p. 15.

         (6) PRADO JÚNIOR, Caio, citado por WANDERLEY, Maria De Nazaré Baudel. Camponês, um trabalhador para o capital. mimeo.

         (7) WANDERLEY, Maria De Nazaré Baudel. Camponês, um trabalhador para o capital. mimeo.

         (8) PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo, Ed. Braziliense, 1970, p. 253.

         (9) MANTEGA e MORAES, op. cit. , p. 19.

         (10) CARDOSO, Fernando Henrique. Autoritarismo e Democratização. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra S.A., 1975, p. 107.

         (11) WANDERLEY, op. cit.,p. 9.

         (12) Idem p. 14.

         (13) VELHO, Octávio Guilherme. Sociedade e agricultura. Anuário da AMPOCS, p. 41.

         (14) Idem p. 45.

         (15) IANNI, Octávio. A luta pela terra. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1978.

         (16) MARTINS, José De Souza. O cativeiro da terra. São Paulo, Editora Ciências Humanas, 1980.

         (17) WANDERLEY, op. cit., p.22.

         (18) SANTOS, José Vicente Tavares. Colonos do Vinho. São Paulo, Editora Hucitec, 1978, p. 2.

         (19) Idem p. 21.

         (20) WANDERLEY, op., cit., p. 3.

         (21) MENDRAS, Henri. Sociedades Camponesas. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1978, pp. 12-13.

         (22) SUAREZ, Mireya; WOORTMANN, Klaar A. A. W.; MOTTA, Mariza V. e WOORTMANN, Ellen F.. Anuário Antropológico. 1981, pp. 149-150.