Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. Texto para a disciplina Crise e Redefinição do Pensamento Social [Assunto: o papel da pesquisa empírica alternativa de novos sistemas de valores básicos, ou o Clube de Roma e a "redescoberta" do sujeito na história]. Florianópolis, UFSC, mimeo., 10 abr. 1984, 2 pp. [Texto produzido para a disciplina "Crise e redefinição do Pensamento Social" do Curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, ministrada pelo professor Paulo F. Vieira] [Ref.: T076]
 
 
O papel da pesquisa empírica alternativa
de novos sistemas de valores básicos

         ou

O Clube de Roma e a"redescoberta"
do sujeito na história

         "Nós influenciamos o futuro através de nossa ações hoje, e nossa ações são por sua vez determinadas por nossas concepções sobre a realidae sócio-cultural e também sobre como ela pode e deve ser. Nesse sentido, um papel decisivo no planejamento de processos de mudança - num contexto da crise - está reservado à pesquisa empírica alternativa de novos sistemas de valores básicos."

         A idéia acima reflete bem a problemática proposta pelo "Clube de Roma" que, por sua vez, é inspirada nas duas características fundamentais do imperialismo em nossa época. De um lado a crise cíclica do capitalismo que estamos atravessando ocorre em novas condições, tornando-a muito mais ampla e profunda que das ocasiões anteriores: já se completou praticamente a repartição do mundo entre as grandes potências e os monopólios financeiros, aumentam de intensidade as lutas de libertação nacional na Africa, Asia e América Latina, restringindo as possibilidades de reprodução ampliada do capital em termos mundiais. A crise torna-se, desse modo, um crise da própria "civilização" aos olhos da burguesia e de seus pensadores. O fato da divisão imperialista do mundo iniciada no fim do século passado já ter se completado em termos estruturais obrigou a burguesia financeira a modificar seu enfoque ético sobre o mundo. Se antes a "livre iniciativa individual" era um valor sagrado em todas suas determinações, se o automatismo das forças econômicas cegas presididas pela acumulação capitalista significava a segurança do progresso humano, hoje coloca-se o problema da intervenção consciente das "coletividades" e do planejamento para tentar evitar a catástrofe.

         A segunda característica fundamental da época imperialista que estamos atravessando é que esse novo discurso burguês que fala em "bem comum" e restrição dos interesses privados ocorre não apenas ao nível ideológico, mas dentro de condições concretas de monopolização, concentração econômica e centralização política que permitem, efetivamente, dentro de certos limites, a sua implementação. Há, de fato, condições operacionais de planejamento e operação na realidade visando disciplinar o crescimento capitalista e neutralizar os efeitos mais agudos da crise econômica. Noutras palavras, existem condições para planejar e disciplinar a "barbárie", mudando alguma coisa para que, no essencial, tudo permanecerá como está.

         No entanto, a contradição entre o novo discurso que faz a apologia do sujeito na história, colocando a responsabilidade dos homens sobre seu próprio futuro, e as propostas "empíricas" de mudança mostram bem que o "espírito humanista" da burguesia não é o mesmo de 1789. Trata-se, na verdade, de uma velha senhora com reumatismo usando jeans e falando gírias juvenis. Um falsete na voz e os gestos grotescos denunciam a farsa "revolucionária" e "humanista" dessa senhora travestida de adolescente. Vejamos, pois, a fantasia, o espírito juvenil dos adornos:

         "Nós influenciamos o futuro através de nossas ações hoje, e nossas ações são por sua vez determinadas por nossas concepções sobre a realidade sócio-cultural e também como ela pode e deve ser."

         Marx assinaria embaixo. Uma síntese brilhante sobre o papel do sujeito na história na perspectiva materialista. Uma aplicação precisa do conceito de praxis. Na Ideologia Alemã, Marx afirmou que "as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias".(1) É interessante observar que a premissa é genérica, coletiva, pois afirma que "nós influenciamos o futuro". Ora, se a premissa filosófica é coletiva, veremos que a proposta tem caráter privado.

         "Nesse sentido, um papel decisivo no planejamento de processos de mudança - num contexto de crise - está reservado à pesquisa empírica alternativa de novos sistemas de valores básicos".

         O primeiro ponto é que, num contexto de crise, quando "tudo" pode entrar em colapso e o próprio sistema ir pelos ares, é preferível planejar algumas mudanças de forma controlada. Quer dizer, o "nós" que era amplo e irrestrito enquanto premissa filosófica, transforma-se num planejamento controlado feito por alguém em nome de todos. Quem? A resposta está implícita: os cientistas sociais "realistas" que não pretendem mudar os fundamentos do sistema, mas criar um novo "sistema de fundamentos" para a realidade existente, neutralizando algumas de suas manifestações mais críticas. E como serão encontrados os valores para esse novo "sistema de fundamentos" teóricos que haverão de justificar o sistema concretamente estabelecido? Aqui a respota está explícita: através da "pesquisa empírica alternativa de novos sistemas de valores básicos". Nesse momento, a contradição que atravessa o texto proposto para a reflexão aparece em toda sua dimensão . Se os valores que fundamentam nossas ações são determinados por nossas concepções sobre a realidade sócio-cultural e também "como ela pode e deve ser", é obvio que a "pesquisa empirica" (mesmo que lhe seja dado o nome de "alternativa") não cria novos sistemas de "valores básicos". Tais valores só podem surgir de um projeto sobre a realidade sócio-cultural que diga como ela pode e deve ser essencialmente diferenciada da realidade atual. Em termos mais diretos, novos valores básicos exigem que o mundo seja pensado em novas bases concretas, isto é, sem o domínio dos monopólios e do capital financeiro internacional. A pesquisa empírica retrata o imediato, reflete a experiência positiva diante do mundo, podendo ser, portanto, um elemento importante para descortinar a realidade. Mas não pode fornecer valores outros que não sejam aqueles oriundos dessa mesma realidade, que servem de base, a sua manutenção e reprodução.

         Portanto, para encontrar realmente novos valores é preciso superar a falácia do discurso burguês e pensar o mundo na perspectiva dos despossuídos do capital, um mundo tal como ele " pode e deve ser", alicerçado na ansiedade e necessidade de milhões de homens pobres, e nos valores igualitários produzidos por sua existência concreta e lutas efetivas. É preciso pensar um mundo, em síntese, não apenas onde todos sejam atores épicos e do qual todos sejam beneficiários, mas principalmente do qual todos sejam partícipes de uma história escrita coletivamente.

         Adelmo Genro Filho

         10 de abril de 1984

         BIBLIOGRAFIA

         (1) FEUERBACH, Ludwig. A Ideologia Alemã. Editorial Grijalbo, 1977, p. 56.