Referência:
GENRO, Tarso. A vida retomará seu ciclo. Zero. Florianópolis, UFSC, mar. 1988. p.8. [Este artigo também foi publicado no Jornal Diário do Sul, de Porto Alegre] [Ref.: S003] Acesso à Imagem: & D069

A vida retomará seu ciclo

A morte de Adelmo Genro Filho, no amanhecer do dia 11 de fevereiro, aos 36 anos, transtornou a todos os que privavam do seu convívio, seja no âmbito de sua família, seja no seu vasto círculo de relações políticas e intelectuais.

Não reivindico dor maior do que a de qualquer amigo ou familiar, mas como relacionava-me com o Adelmo - e de forma intensa - em ambas as esferas, tenho clara a dimensão brutal da sua ausência prematura, para os que tinham qualquer tipo de proximidade com ele. Com este pequeno texto quero resgatar, para os que o admiravam, aquela parte dos seus últimos momentos entre nós, que me envolveram diretamente.

Sem dúvida Adelmo Genro Filho foi uma pessoa muito especial. Todas as pessoas que tiveram algum grau de relacionamento com ele sabem disso. Sua paixão pela filosofia e pela política operária, comandaram a sua vida desde os dezesseis anos. Esta paixão ele levou até as suas últimas conseqüências, já que vinha estudando e escrevendo, ultimamente em tempo integral, sobre os problemas cruciais que - na sua opinião o marxismo deveria enfrentar, para retomar a sua postura originária de filosofia herdeira das principais conquistas teóricas da humanidade e rejeitar a condição burocrática de "receita", apta para responder a todas as indagações sobre o destino do homem.

Como intelectual foi o avesso do academicismo. As glórias do ascenso universitário não lhe seduziam e tanto isso é verdadeiro que interrompera a sua atividade de professor na UFSC, para poder dedicar-se plenamente a pesquisar e escrever sobre temas filosóficos que, pela sua incidência na "praxis", seriam capazes de constranger o movimento da história num sentido escolhido pelo sujeito político moderno - a classe operária.

A última conversa que tivemos, poucos dias antes da sua morte, versou sobre o livro de Serge, "Memórias de um revolucionário", que eu lhe recomendara um mês antes. Falamos também sobre seu último e ousado trabalho teórico que recentemente terminara, "A Filosofia Marxista e o Legado dos Hereges", que brevemente será publicado pela Editora Brasil Debates de São Paulo. Trata-se de um longo ensaio onde ele discute, entre outras, as contribuições de Korch e Bloch ao marxismo, de um ponto de vista independente da tradição "clássica".

Adelmo ficara tão impressionado como eu sobre o livro de Victor Serge e achava que o autor dera o testemunho histórico daquilo que ele vinha tentando formular na filosofia, a saber, que a paralisia teórica e a fossilização dogmática pode ser o suporte da tragédia política, dos limites e das deformações do primeiro ciclo das revoluções socialistas, que, no caso específico da Revolução Russa, estavam sintetizados na chacina de toda a velha guarda bolchevique.

Convinhamos que, se tínhamos - ainda - algum resquício de romantismo sobre o que é, de fato, uma revolução, o livro de Serge, soterrara-o definitivamente. De outra parte, nos animava ver Serge, alguém que, mesmo tendo vivido aquele período de irracionalismo, compreendia a grande possibilidade que a Revolução de Outubro abria para a humanidade, numa expectativa superior à própria Revolução Francesa, no século XIX.

A parte da conversa que girou em torno do seu ensaio "A Filosofia Marxista e o Legado dos Hereges" foi apenas uma preliminar daquilo que combinamos seria, mais tarde, uma conversa "sem teto", já que eu tinha feito apenas uma leitura rápida do texto, incompatível para responder às necessidades de um debate filosófico que considerávamos de muita seriedade.

Minha posição em relação aos seus textos sempre foi "defensivista", já que, pelos meus compromissos cotidianos não tinha condições de acompanhar a sua evolução e mesmo a totalidade das fontes dos seus estudos.

Não tenho dúvidas que ele estava a muitos quilômetros de distância e que a minha posição, mais chegada ao marxismo clássico, "via Lukács", compunha um contraponto que ele checava permanentemente, como exercício reflexivo que lhe era útil. Às vezes, nossa conversa tornava-se difícil e árdua. Era quando a política só poderia expressar-se como filosofia e eu não conseguia lidar com o seu sistema categorial. Neste ponto não eram raros os "acordos", no sentido de que eu pelo menos declarasse "insuficiente" meu "marxismo-lukacsiano" para desafiar os problemas que ele revolvia.

Creio que poucas vezes divergimos em problemas políticos de fundo, embora não raro, na discussão de posições prévias a uma postura mais consistente sobre um assunto importante, trocássemos um diálogo agudo e sem nenhuma concessão, inclusive em relação à quantidade de decibéis usados no confronto.

Estivemos juntos em momentos importantes das nossas vidas. Creio, até, que nos mais importantes. Jamais pairou entre nós qualquer sombra de desconfiança que tivesse a capacidade de abalar nossa amizade e o respeito mútuo que conseguimos dar solidez ao longo de nossa relação. Sei, que para ele, eu estava entre as pessoas especiais. Para mim, ele era mais que isso: era uma referência que estava muito mais adiante e que eu também, de alguma maneira, ajudaria a estimular.

É claro que a vida retomará o seu ciclo e que às árvores secas do inverno sucederão flores e frutos. Depois, as tardes quentes e os crepúsculos adornados de cores e de pássaros que se recolhem, continuarão a sua seqüência imemorial. A sabedoria do homem não permite que ele permaneça em crise porque a fatalidade da morte nos assedia sempre. É preciso superá-la. Mas cada um dos que conheceram Adelmo terão sempre uma reserva de dor insuperada. Fina e pontuda como um punhal mouro, nesta jornada de lutas em que é preciso ousar sempre, atitude que Adelmo jamais se negou, pois, como ele mesmo escrevera certa vez, "não há nada mais ousado no universo do que o homem...".

Tarso Genro

Advogado e escritor

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